Obs.: esse filme foi assistido durante a 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas foi publicado em circunstância da indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
A mais singela valorização da cultura indígena em obras cinematográficas já é algo de se orgulhar. Uma vez transposta, a obra pode funcionar muito mais do que apenas um filme, servindo como documento visual de memória e preservação de toda uma tribo. É claro que para isso, a abordagem precisa evitar ao máximo uma visão de “conquistador”, tentando fazer com que a câmera interfira o mínimo possível, sendo apenas um veículo passivo de reprodução. Como a mais simples gravação prevê uma intromissão, o recurso normalmente utilizado para minimizar esse impacto é o do documentário. Quando então Tanna (2016, ainda sem previsão de estreia no Brasil) nos apresenta a ficcionalização de uma lenda da tribo homônima do Pacífico Sul interpretada por seus próprios integrantes, é posta a dúvida: será esse mais um exemplo de ideal branco dos índios ou terá a dupla de diretores conseguido transmitir uma genuinidade antropológica?
Como parte de um acordo de paz, Wawa (Marie Wawa) é prometida esposa à tribo inimiga. Apaixonada, no entanto, por Dain (Mungau Dain), o dilema pelo qual passarão se desdobrará entre a livre escolha do amor verdadeiro e o cumprimento dos costumes pela segurança da tribo. Já contada em diversas outras histórias de amor proibido, a obra torna-se memorável não apenas pelo contexto e debate antropológico a que se insere, mas também pela irretocável fotografia, eficaz ritmo e coeso encadeamento narrativo.
Em primeiro lugar, o roteiro não deixa ponta soltas. Tudo que nos é mostrado em tela tem uma função narrativa. Logo no começo do filme, a imaturidade da irmã mais nova de Wawa nos leva à floresta proibida. O pai então a repreende dizendo que esse havia sido o local em que muitos conterrâneos haviam perdido a vida para a tribo rival. Por conta da desobediência, o xamã decide levar a garota ao cume do vulcão local para que ela sinta o valor do respeito. No caminho, ela quase come um cogumelo mortífero que terá papel central na conclusão da trama. Chegando no vulcão, eles são surpreendidos por integrantes da tribo rival que deixam o xamã desacordado. Ao voltar à tribo por socorro, a menina alerta a todos do ataque, redespertando a richa que sempre existiu. Possessos – em especial Dain, que diz ter tido seus pais assassinados pela outra tribo –, eles são apaziguados pelo líder deles que, procurando a paz, propõe o acordo que motivará a trama.
À essa altura, quando percebemos que já nos foram apresentadas todas as principais personagens, a dinâmica da tribo, os arredores, os antagonistas e o conflito, entendemos a força do roteiro e a naturalidade com que ele emprega diversos elementos sem que estes soem forçados ou gratuitos. Além disso, em todo esse longo prólogo, não há um momento em que os acontecimentos transcorram apressados ou lentos demais. E é justamente pelo tempo de maturação da trama que acreditamos nas atitudes e decisões das personagens. Em outras palavras, uma personagem mudar de ideia não é um problema se, para isso, o filme se der ao tempo de fazer o espectador perceber que ela ao menos pensou nas possibilidades.
Utilizando-se muito da grandiosidade da natureza, o diretor de fotografia Bentley Dean captura detalhes de erupções vulcânicas, sulcos de árvores e rituais da tribo, dando contornos de pintura a elementos inicialmente prosaicos. Junto a isso, a trilha sonora de percussão e vozes também evoca sentimentos bastante poderosos. Por outro lado, o que num primeiro momento impressionaria se mostra posteriormente como um problema para o filme. Estendendo-se por vezes demais em seus momentos de contemplação à natureza, a obra perde impacto ao, por exemplo, mostrar um corte da lava do vulcão toda vez em que passamos por lá. Se até então a beleza situava-se na magnificência do simples, a insistência dos planos acaba deixando nosso olhar vacinado; felizmente, nada que comprometa a experiência maior.
Experiência esta, que nesse ponto, revolve ao questionamento inicial: mesmo diante de um impressionante exercício cinematográfico, será a obra também moralmente admirável? Por um lado, o uso da língua nativa, o Nauvhal, parece dar ainda mais legitimidade à obra. Por outro, a direção conduzida por brancos entra em conflito com os esforços da tribo de se esquivar da dominação externa – como o líder da tribo mesmo comenta em certo momento do filme. Todavia, por mais universal que seja o tema do filme, as circunstâncias são singulares. Nem as personagens, nem as situações são tratadas como excêntricas ou caricatas. Tudo é, na verdade, muito autônomo e palpável.
E até mesmo quando, durante a projeção, habitantes (aqui sim, caricatos) de uma vila católica oferecem vestimentas aos protagonistas, referindo-se a um pecado que estes carregavam com a nudez – como analogia à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden da Bíblia –, Tanna é inteligente em fazê-los recusar e prevalecer de vez com a hegemonia indígena. Hegemonia que por mais em cheque que esteja desde as expansões marítimas europeias, busca apenas como este filme, a beleza e paz escancaradas na simplicidade.
Trailer legendado em inglês:
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com