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Um aprendizado diferente

Por Victória Martins (victoria.rmartins19@gmail.com) Estima-se que, no Brasil, cerca de 40% das crianças em idade escolar apresentam algum tipo de fracasso no aprendizado. Uma aquisição de conhecimento que não condiz com o esperado pode estar relacionada a diversos fatores, que vão desde uma perspectiva pedagógica, como a estrutura da escola e os métodos de ensino, …

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Por Victória Martins (victoria.rmartins19@gmail.com)

Estima-se que, no Brasil, cerca de 40% das crianças em idade escolar apresentam algum tipo de fracasso no aprendizado. Uma aquisição de conhecimento que não condiz com o esperado pode estar relacionada a diversos fatores, que vão desde uma perspectiva pedagógica, como a estrutura da escola e os métodos de ensino, até a falta de motivação na família e, por fim, atingindo uma concepção neurobiológica, em alguns casos.

Neste último, enquadram-se os distúrbios de aprendizagem, que atingem aproximadamente 5% da parcela de alunos com dificuldades escolares no país. Ainda que este não seja um número tão expressivo, falar sobre esses transtornos é importante para o processo de capacitação de pais, professores e especialistas, de modo que estes possam lidar com e auxiliar no desenvolvimento cognitivo de crianças que apresentam estas disfunções.

Uma perspectiva neurobiológica

“Distúrbios de aprendizagem são transtornos decorrentes do inadequado funcionamento cerebral, que se relacionam a prejuízos na leitura, na escrita e na matemática, em maior ou menor grau, podendo persistir na vida adulta dependendo das intervenções na criança e da sua gravidade”, diz a psicóloga do ensino Betânia Dell’Agli, pós-doutoranda no DISAPRE Laboratório de Pesquisa em Distúrbios, Dificuldades de Aprendizagem e Transtornos de Atenção, vinculado à Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). “É bom dizer que não há lesão cerebral, mas sim disfunção”, complementa. Nesse sentido, pode-se dizer que os distúrbios causam dificuldade para a criança acompanhar os padrões de rendimento esperados, resultando, às vezes, no insucesso escolar.

Sentada à janela do segundo andar do cinema Caixa Belas Artes, Ruth Carvalho, estudante de audiovisual, conta sobre como se sentia quando era criança e, ao passo em que era alfabetizada, convivia com a dislexia. “Escrevia muito errado, não faziam muito sentido as coisas que eu escrevia e, quando eu lia, não entendia. Então, eu podia até ler uma frase em voz alta, mas não entendia, não conseguia interpretar mesmo”, ela diz.

Pelo que passava Ruth, também passa grande parte dos estudantes que apresentam algum transtorno relacionado à leitura. Nesse âmbito, a dislexia é o distúrbio de aprendizagem de origem neurobiológica mais comum, caracterizando-se por falhas no processamento fonológico e no “reconhecimento de letras, na decodificação e na soletração de palavras”, segundo a psicopedagoga clínica Tatiana Azevedo. Dessa forma, a leitura e a escrita da criança acabam prejudicadas. Nos graus mais leves, o cérebro ainda é capaz de finalizar esses processos; mesmo assim eles se dão de forma lenta e gradual.

A escrita também está ligada a outro distúrbio de aprendizagem. A disgrafia, ou letra feia, refere-se à dificuldade da criança em gravar a grafia da letra, de modo que a escrita das palavras se dê inadequadamente e de maneira ilegível. No que diz respeito à matemática, o distúrbio mais recorrente é a discalculia. Ela causa a inabilidade de compreensão e de nomeação de números, termos, símbolos e relações matemáticas.

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O processo de leitura envolve áreas do cérebro responsáveis pela identificação da palavra, por seu reconhecimento e seu processamento. (Arte: Victória Martins/Jornalismo Júnior)

O Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) não é, efetivamente, um distúrbio de aprendizagem. Pelo contrário: ele se estabelece como um transtorno comportamental, caracterizado basicamente pela impulsividade e pela dificuldade de concentração, podendo vir junto ou separado de hiperatividade. Ao afetar o cérebro da criança, impacta o processo de recepção e assimilação das informações, e, dessa maneira, pode atrapalhar a aprendizagem. “Eu estava olhando pra professora, eu via os lábios dela se mexendo, eu sabia que ela estava falando alguma coisa, mas eu simplesmente não conseguia assimilar o que ela estava falando”, conta Roberta Scavone, estudante de Rádio e TV. A dificuldade em centrar o pensamento no que era passado pelos professores era constante.

“Essas crianças vivenciam situações constantes de fracasso que interferem inclusive na construção da identidade e da personalidade”, diz Betânia Dell’Agli. Considerados mais amplamente, para além de seus efeitos sobre o ensino, os distúrbios de aprendizagem trazem ainda dificuldades para o desenvolvimento psicossocial da criança, impactando os mais diferentes níveis de sua vida e podendo gerar baixa autoestima e sensação de incapacidade. Nesse sentido, a união da família, da escola e de especialistas, formando uma rede de conhecimento e suporte, é fundamental para seu avanço cognitivo.

Da escola para casa

Estudante em uma época em que as descobertas acerca dos distúrbios de aprendizagem ainda engatinhavam, Roberta Scavone não pôde, durante os anos de educação básica, dar um nome ao que lhe acontecia. O diagnóstico veio tardiamente, quando já estava na faculdade e resolveu procurar uma psiquiatra para entender a razão de muitas vezes não conseguir focar sua atenção e assimilar o que lhe era informado.

Não ter um diagnóstico preciso de sua disfunção foi um dos motivos de sua experiência na escola tradicional não ter sido das melhores. Segundo a professora Solange Pancotto, que trabalha com educação infantil e básica na escola pública há mais de 20 anos, ter um reconhecimento é o primeiro passo para que se estabeleça um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo das crianças que apresentam algum destes distúrbios. Isso porque é a partir dele que se pode ter um olhar diferenciado sobre a dificuldade de cada aluno, favorecendo a criação de métodos de intervenção que facilitem seu trabalho. “Cada criança aprende num tempo e cada criança aprende de um modo, então, dentro da sala de aula, dependendo do diagnóstico da criança, será como você professor estará trabalhando com ela”, afirma.

A série de problemas estruturais na educação, contudo, acaba por colocar obstáculos para a obtenção de um diagnóstico. A existência de salas lotadas é um dos fatores que influenciam nessa situação. Com muito mais alunos do que o considerado ideal, é difícil para o professor poder olhar calmamente para as crianças e identificar problemas relacionados a disfunções neurobiológicas. Além disso, a falta de assistentes treinados para auxiliá-lo é outra razão pela qual os diagnósticos tardios ainda são constantes. Há também, em alguns casos, o despreparo da escola e do docente em lidar com as dificuldades de ensino.

Especificamente no ensino público, Solange levanta a demora dos processos, que envolvem docentes, família e especialistas, para chegar a um diagnóstico concreto. Tanto a possível não colaboração dos familiares como o fato de grande parte das escolas não contar com uma equipe fixa de especialistas — a professora conta que muitos deles tem que trabalhar em diversas escolas, dedicando-se pouco a cada uma delas — podem ser fatores que tornam o diagnóstico mais distante.

No caso de Roberta, a dificuldade acabou sendo atribuída a uma desatenção qualquer, o que se refletiu em uma cobrança grande. “Os professores me tratavam como se eu fosse burra, porque simplesmente tinha momentos em que eu não conseguia prestar atenção na aula”, ela conta. Não foi muito diferente para Ruth Carvalho, que, nos primeiros anos do ensino fundamental, estudou em uma escola tradicional, onde também foi tratada como burra e reduzida a uma aluna sem força de vontade. Seus professores não sabiam como lidar com a dislexia.

Ainda que, atualmente, os avanços na área da educação tornem mais complicada a possibilidade de o estudante ser tratado abertamente como “burro”, a ideia de que as dificuldades de aprendizagem estão relacionadas à falta de disciplina e de vontade da criança continua presente. Nesse sentido, a cobrança por melhoras é intensa e, podendo vir tanto por parte da escola como da família, gera a possibilidade de nenhum dos lados perceber que a dificuldade pode estar relacionada a disfunções neurobiológicas.

É neste ponto em que se insere a necessidade de um diálogo entre pais, professores e especialistas, de modo a formar uma rede conjunta de apoio mútuo.  “Os professores não podem assumir os problemas sozinhos. Penso que quando todos estiverem sensibilizados quanto à sua responsabilidade tudo fica mais fácil”, pontua a Dra. Betânia Dell’Agli. Para a psicóloga, uma boa convivência entre as três partes, acompanhada de cooperação e conversa, é de extrema importância no processo de desenvolvimento cognitivo da criança.

Por parte dos especialistas, o auxílio à escola se dá nos atos de pensar os distúrbios de aprendizagem junto aos professores, de capacitar sua atuação e de investigar os meios de a escola olhar para a criança. “Muitas vezes, são pequenos toques, mas que, no dia a dia, o pedagogo pode deixar passar despercebido”, diz a psicopedagoga Tatiana Azevedo. Eles também podem amparar a família em suas dúvidas e anseios, além de ajudar a construir uma rotina doméstica que leve em conta o tempo da criança para aprender.

Já a escola se insere na parceria ao pensar em uma atuação interdisciplinar e em uma intervenção prática sobre cada criança e cada dificuldade, levando em conta os dilemas da família e da própria educação e as experiências de cada aluno. A família, por sua vez, é essencial para amparar as angústias da criança e aceitar suas dificuldades, dando força para que ela não deixe de se motivar a aprender. “Quando o professor aceita a fazer um trabalho conosco e se sensibiliza, é muito gratificante: a criança se sente atendida nas suas necessidades e a família se empenha, adere às orientações e o professor se sente amparado e usa seus recursos, seus conhecimentos a favor da aprendizagem da criança”, diz Betânia.

Para Ruth, mudar de escola foi o primeiro passo para que pudesse aprender a ler e escrever com naturalidade. As propostas pedagógicas dos lugares em que estudou eram muito diferentes, e foi no segundo deles que se sentiu segura para aprender da maneira que mais fazia sentido para ela.

Ela acredita que na primeira escola, de ensino tradicional, os professores não tinham muito conhecimento sobre o que era dislexia e não estavam preparados para lidar com suas dificuldades. Em contrapartida, no novo lugar, seu tempo era respeitado, e ela não se sentia envergonhada por ter um ritmo e um jeito diferente de aprender. “Foi aí que eu aprendi a ler e escrever de uma forma natural. Eu não sei exatamente quando foi, mas foi mais ou menos com 10 anos e meio, 11 anos que eu fui começar a ler e escrever de uma forma que tivesse coerência”, lembra.

Ruth conta ainda que, na sua nova escola, para além do ensino diferenciado em sala de aula, encarado em uma perspectiva lúdica, havia trabalhos corporais e exploração da parte motora no desenvolvimento da inteligência. Logo, brincadeiras como pular corda e trabalhos manuais, como tricô, escultura, marcenaria, desenho e cerâmica eram propostos aos estudantes para compor o olhar pedagógico que a escola lançava sobre as crianças, tivessem estas ou não algum tipo de disfunção ou dificuldade. “Eu acho que é uma coisa que ajuda”, diz.

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A psicomotricidade (trabalhar a inteligência e o raciocínio a partir do corpo) é um dos métodos levantados para uma pedagogia com crianças com distúrbios de aprendizagem. (Imagem: Reprodução/Blog Psicologia do Desenvolvimento)

Como cada criança aprende de maneira diferente, não é provado que este método alternativo seja a melhor maneira de trabalhar com as dificuldades. A escola tradicional também lança sua visão sobre a pedagogia com alunos que apresentam defasagens de origem neurobiológica, provando, cada vez mais, que tem todo o potencial para recebê-los bem.

A professora Solange Pancotto afirma que o mais importante no trabalho com crianças com distúrbios de aprendizagem é o estabelecimento de um nível afetivo na relação professor-aluno. A partir desta prática, o docente poderá trabalhar melhor com a criança, conhecendo suas potencialidades e suas dificuldades, com diálogo, respeito e o olhar pedagógico treinado. “Eu acredito que você tem que conquistar o aluno pela parte afetiva dele. Quanto mais próxima você é da criança, mais fácil é de você conhecê-la para poder propor aquilo que ela possa fazer”, pontua.

A professora também explica que, na sua opinião, um olhar natural sobre estes distúrbios é essencial, principalmente por vir acompanhado do estabelecimento de respeito e de valorização das conquistas de cada estudante. Para ela, é necessário que a escola olhe para o aluno como uma criança, não como o disléxico ou o hiperativo. “A gente precisa tirar esses rótulos, que são muito fortes ainda. Quando a gente consegue tirar essas plaquinhas, todo o caminho acaba fluindo.”

A escola tradicional de pouco em pouco se abre para a inclusão desses alunos. “Acho que a escola já compreende que deve trabalhar as crianças com necessidades especiais. O que é necessário neste momento é pensar no como”, levanta Betânia Dell’Agli. Contudo, em um país onde a estrutura educacional apresenta inúmeros problemas, é possível a inclusão efetiva? Como a escola deve trabalhar para que ela ocorra?

Na opinião de Roberta Scavone, a inclusão deve promover o olhar diferenciado, embora não segregacionista: ela acontece com o trabalho conjunto entre professor, aluno com distúrbio de aprendizagem e os demais estudantes. Para atingi-lo, as escolas devem investir em capacitação dos professores e em formas alternativas de ensinar, ao invés de culpabilizar a criança. Essas medidas são reforçadas por Ruth.

Betânia Dell’Agli, por sua vez, pensa que as escolas devem discutir o assunto da inclusão em conjunto, de modo que ela não seja função única do professor. “Devem ser adotadas políticas internas de atuação com as crianças que apresentam dificuldades. Mesmo assim, teremos ainda que pensar cada caso de forma individual e buscar atender as necessidades particulares”, diz.

Já Solange Pancotto é categórica ao afirmar que não é possível haver inclusão nos dias atuais, considerando o modo como a escola se apresenta. Apesar de reconhecer que os avanços foram enormes e que a sociedade tem mudado seu olhar sobre os distúrbios de aprendizagem, ela pensa que a inclusão não será real até que muitas mudanças sejam empregadas na estrutura educacional, começando pela existência de uma equipe multidisciplinar afiada em cada núcleo escolar, vinculadas não ao SUS, mas às secretarias de educação. Nesse sentido, seus pensamentos e os de Betânia convergem: ainda há muito a ser feito.

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