Por Yasmin Teixeira (yasminteixeirasilva@usp.br)
Para alguns, a alimentação trata-se apenas de um ato cotidiano, corriqueiro o suficiente para ocupar ao todo um máximo de três horas do movimentado dia-a-dia. Entretanto, para as 70.3 milhões de pessoas que enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar entre 2020 e 2022, a alimentação frequentemente ultrapassa a barreira do comum e da cozinha, para tornar-se um ato político e, principalmente, um direito ainda a ser conquistado.
Carolina Maria de Jesus, famosa escritora e moradora da Favela do Canindé durante a década de 1960, escreveu em seu livro mais famoso, “Quarto de Despejo”, que “quem inventou a fome são os que comem”. Ela descreveu o que chamamos de Nutricídio, um fenômeno comum e ainda presente na sociedade contemporânea.
Nutricídio foi um termo criado pelo médico norte-americano Llaila Afrika, autor do livro Nutricídio: a destruição nutricional da raça negra. Nele, o autor explica esse fenômeno como sendo a dificuldade ou falta de acesso à alimentos saudáveis e de boa qualidade, que necessariamente precisam estar presentes em uma dieta e cultura alimentar.
No livro, ele ressalta como esse fenômeno afeta principalmente a população preta e periférica, que após um processo de desculturalização de sua alimentação típica realizada pelos colonos, passaram a ser marginalizados a uma alimentação precária e com um mínimo de valor nutricional.
Esses efeitos intensificaram-se com a expansão das grandes marcas da indústria alimentícia, com a crescente industrialização e utilização de produtos químicos em cultivos agropecuários e, principalmente, na produção de carne para alimentação. Isso porque em 2017, de acordo com dados da Operação Carne Fraca, grandes frigoríficos como a JBS, dona da Friboi e da Seara, e a BRF, dona da Sadia e da Perdigão, foram acusadas por diversas irregularidades no tratamento e na distribuição das carnes destinadas ao consumo da população.
Sem considerar também as situações precárias às quais os animais são submetidos nessas indústrias, expostos a métodos de gestação forçada que os obrigam a acompanhar o ritmo da grande produção alimentícia. Assim, chega-se a uma questão não só de saúde populacional, mas também de ética animal, que encontram-se subordinadas ao ritmo fabril de consumo e produção de recursos alimentícios.
Bovino destinado ao abate [Imagem: Reprodução / Freepik]
O que é Veganismo Popular?
O veganismo foi definido como filosofia ainda em 1944 pela The Vegan Society. Leslie J Cross, vice-presidente da organização na época, sugeriu o sentido original como o “princípio da emancipação dos animais diante da exploração do homem”. Desde então, o movimento se expandiu e tornou-se cada vez mais notório e versátil em seu objetivo, originando diversas linhas particulares com diferentes ideais e pontos de vista. Assim surgiu o veganismo popular.
Também conhecido como anticapitalista e interseccional, o veganismo popular ergue-se como uma reação ao latente processo de esvaziamento do caráter político do veganismo. Ele procura inserir em seus ideais a índole mobilizatória e o claro objetivo de desconstrução e expansão da dieta vegana popular, separando-se da imagem elitizada e higienizada do veganismo produzida pelas mídias e redes sociais.
Isso pois, com o aumento de notoriedade conquistada pelo movimento, grandes fábricas da indústria alimentícia viram tais holofotes como uma oportunidade de enriquecimento, investindo na produção de novos produtos ultraprocessados e inflacionados, que, de certa forma, colaboram para a criação de uma imagem higienizada do movimento.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, a pesquisadora Alice Erwig graduada em Nutrição, explicou que “Esses alimentos foram a maneira que as grandes empresas de produtos animais viram de ampliar e oferecer produtos de origem vegetal. Elas não estão preocupadas com o meio ambiente ou com a sustentabilidade, mas sim com o lucro, que vêm crescendo.”
Quase como um lifestyle, essa nova versão do veganismo foi propagada pelas redes sociais e, por fim, distanciou as camadas populares do movimento, tornando-o vazio e comercializável.
Eduardo, um dos idealizadores do Vegano Periférico, projeto ativista criado em conjunto com seu irmão, Leonardo, comentou que a grande mídia não só não mostra como o veganismo é verdadeiramente, ou seja, o seu caráter popular e periférico, como reforça também estereótipos e preconceitos, principalmente ao associar o veganismo à celebridades atreladas à uma imagem elitista o que, por fim, não exerce o papel de desmistificar o movimento.
Essa versão propagada não só reforça preconceitos, como também retira o foco de reais ideais do movimento, como por exemplo seu caráter anti-especista, ou seja, contra a descriminações por espécies, e coletivista em relação à terra cultivável, que submetida à produção mercadológica, não visa a uniformidade do acesso à uma alimentação sustentável, nem à proteção animal.
“Para lutarmos pelo fim da exploração animal, não podemos considerá-la de maneira isolada da lógica capitalista e de desigualdades sociais, como de classe e gênero. Para o Veganismo Popular, tudo está conectado à lógica de consumo atual”, explica Leonardo.
[Imagem: Reprodução / Freepik]
A exploração animal e o avanço capitalista
Entretanto, o caráter vegano da luta agrária não se deu apenas com a expansão do de marcas alimentícias, mas sim da ancestral ligação de controle e posse presente na relação entre humanos e animais.
Do período nômade a contemporaneidade, o consumo de carne foi culturalmente aceito como ideal na alimentação do ser humano, apenas tendo se modificado com a exploração colonial sobre países da América do Sul e da África, quando os animais não eram mais apenas vistos sob a perspectiva da nutrição, mas também de força motriz do maquinário agropecuário, conjuntamente com os povos escravizados trazidos para território colonial.
Isso pois o “gado” foi utilizado não só pela força física, ao carregarem os instrumentos de cultivo, mas também ao serem utilizados como meio de ocupação e aumento de território. Assim iniciando um processo de expansão dos latifúndios, base do processo colonizatório no Brasil, marginalizando e expulsando indígenas pelo caminho.
Tal processo, apesar estar a quase 500 anos de distância da atualidade, continua por ser um problema na defesa da demarcação de terras indígenas e de cultivo comum ao pequeno trabalhador rural, impedindo o avanço de cultivos orgânicos e consolidando o processo de desmatamento por grandes empresas, onde quase 80% das terras cultivadas são resumidas à produção de soja para a alimentação de animais destinados ao “corte”, incentivado também a destruição da mata nativa.
O veganismo popular, caracterizando-se como aliado da luta pela demarcação do território indígena, vê o avanço da agropecuária coletiva como sinal da libertação animal e descolonização. Entretanto, assim como dito por Karolina, vegana a três anos: “Comer carne é uma afirmação política. Pessoas que buscam conscientizar sobre assuntos ambientais em geral são mortas”, o veganismo ainda é visto como um assunto estranho, até ameaçador para uma classe da população, resultado de anos de inacessibilidade e isolamento. Dessa forma, urge ao veganismo popular coletivizar o meio ambiente e a educação.
[Imagem de capa: Reprodução/Pexels]