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‘Véspera’, o espetáculo das misturas e do (des)conhecido

A peça confronta o íntimo dos espectadores ao trabalhar com o onírico e o absurdo, enquanto gera identificação
Por Catarina Bacci (cbmedeiros@usp.br)

A peça Véspera é um monólogo que junta os universos de William Shakespeare e de Clarice Lispector ao reunir as personagens Ofélia, de Hamlet, e G.H., de A Paixão segundo G.H. (Rocco, 1964). A atriz Fernanda Stefanski, além de protagonizar, foi responsável pela concepção, direção e dramaturgia da montagem. Ela interpreta um papel misto: faz, ao mesmo tempo, Ofélia em crise com o seu destino na história da peça clássica e em crise com o destino de G.H. na obra original. Também enquanto se questiona sobre o mundo contemporâneo.

De curtíssima temporada, a estreia ocorreu no dia 12 de abril, e as apresentações foram apenas até o dia 28 do mesmo mês. Os ingressos eram gratuitos e distribuídos antes das apresentações na porta do local, o Teatro Arthur Azevedo, no Alto da Mooca. Um dos diferenciais da produção era não utilizar o auditório principal, mas uma sala menor no prédio lateral do teatro. A imersão do público na mente da personagem acontece ao adentrar esse espaço inesperado para uma peça. E, também, ao se deparar com o cenário de diferentes cortinas constituindo a atmosfera irreal (por Marisa Bentivegna) e ao ser cercado pelo som ambiente levemente desconcertante (por Arthur Decloedt e Charles Tixier).

A construção do espetáculo

O real e o fictício se misturam tanto quanto o improvisado e o planejado desde o primeiro momento. Fernanda recepciona o público antes da entrada na sala e, ao começar a falar, a plateia fica em dúvida se as falas são parte de um discurso espontâneo, ou se já são uma performance. Essa confusão dos limites entre a intérprete e o que ela interpreta permeia a peça toda, sendo reforçada por falas constantes como “essa cena não existe” e “isso não estava no roteiro”. A partir do hall de entrada do teatro, a atriz guia os espectadores, literalmente, para dentro do mundo de Véspera, acompanhando-os até o local de apresentação.

O espetáculo transmite um sentimento muito pessoal desde o início: a plateia sente estar em contato tanto com o íntimo de Fernanda e suas personagens, quanto com o seu próprio. A cada cena, têm-se a sensação de conhecer mais a protagonista e como ela se entrelaça com a realidade. Ela divaga sobre os mais diversos assuntos, que às vezes parecem desconexos, mas sempre retornam ao foco da narrativa: encontrar a si mesmo como pessoa e encontrar-se em relação aos outros.

Os devaneios e o processo de autoconhecimento da mistura de Ofélia, G.H. e Fernanda vieram principalmente do confinamento durante a pandemia. A criação de Véspera começou no final de 2019 e atravessou a quarentena e os distanciamentos até chegar nas salas de ensaio presenciais na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Com a impossibilidade do contato com outras pessoas, Fernanda lidou com a solidão, que levou aos diálogos consigo mesma. Esse processo inspirou a atriz e, para ela, tornou-se a “seiva” da criação do monólogo e da composição de um dos questionamentos da personagem.

“O quão dolorido é você perguntar e não obter respostas?”

Fernanda Stefanski

O sentimento de estar sozinha estende-se da personagem à própria Fernanda, em seus momentos de reflexão e elaboração da peça. Em entrevista para o Sala 33, a atriz relaciona a experiência com o mito grego da ninfa Eco e de Narciso. Nele, a ninfa é destinada pelos deuses a repetir os últimos sons que escuta, e Narciso fala e não obtém resposta; não escuta mais ninguém, apenas a própria voz. Fernanda conta também sobre perguntar e ter que lidar com a angústia de não ter resposta: “eu ia pra sala de ensaio, e eu olhava para cadeiras vazias e tinha que me movimentar a partir dessa solidão gigante”.

Por ser um espetáculo forte na conexão e interação com a plateia, Fernanda adiciona que a falta de resposta joga para o público “uma atenção em relação ao fato de que a gente pode ser responsável por algo se nós nos abstemos”. É uma moeda de dois lados para a atriz: “ninguém responder corrobora com essa linha de pensamento da personagem sobre a solidão. E, quando alguém responde, também é maravilhoso”. Para ela, mesmo quando vem de alguém desconhecido, uma palavra pode ser “a salvação de tudo”. Assim, a mensagem dela fica: “você está implicado na consequência da sua não resposta”.

Mas, quando há resposta, a Fernanda (ou a Ofélia) incorpora a participação no texto original. A proposta é manter um texto vivo: “Ao invés de ela [Ofélia] apenas dizer palavras decoradas, ela conversa com o público”. O improviso “acontece a partir do cruzamento entre o material digerido e a relação com um ‘aqui e agora’”; uma absorção do momento presente. A atriz dá o nome de presentificação, recorrente nas obras de Clarice Lispector.

Durante a peça, há “ilhas fixas”: momentos pré-determinados para acontecer. Entre eles, o público participa ativamente da trama. Assim como no cotidiano, a atriz diz que as pessoas se alimentam de diversas informações, conhecimentos e saberes no dia vivido e, “conforme as situações vão acontecendo, esses conteúdos são acionados sem uma ordem pré-estabelecida”. Da mesma forma, Ofélia incorpora a resposta do público no texto.

A ideia de utilizar um espaço alternativo para a apresentação também veio desde os ensaios online em apartamento durante a pandemia. A atriz relata: “essa dimensão reduzida de um cômodo de uma casa já foi a primeira demão dessa pintura toda”. Ao escolher um local, já planejava manter esse caráter íntimo, próximo da plateia, não encontrado num teatro regular. A sala multiuso do Artur Azevedo se adequou bem ao propósito da diretora porque, além de ter tamanho menor e a maquinaria exposta, trazendo a sensação de bastidor procurada, é ao lado do teatro principal. A intérprete disse que completava a narrativa pensada para Ofélia: sair de um teatro e de uma peça clássica, e ir para um ambiente alternativo.

A relação de Fernanda com as personagens

A escolha de Ofélia e de G.H. não foi um plano calculado racionalmente. William e Clarice – e Hamlet e A Paixão Segundo G.H. – eram presentes na vida e nos pensamentos de Fernanda constantemente. Em seus passeios por cemitérios durante a pandemia, o encontro entre as duas personagens aconteceu. “Eu tenho uma seiva clariciana, eu tenho uma rejeição tremenda por essa mulher [Ofélia], e essa rejeição é significativa. Eu preciso entender porque eu odeio a Ofélia, e o que pode ser transformado a partir disso”, explicou. A presentificação e compreensão mais profunda dos conflitos das protagonistas foram motivações para inserir na trama o momento em que se chega ao limite e o retorno desse limite – o que ocorre tanto na obra de Clarice, quanto na narrativa da personagem shakespeariana.

A personagem de Véspera está nomeada no portal Infoteatro como Ofélia, mas se refere em primeira e em terceira pessoa a ela e a G.H. Fernanda explicou que a dissociação entre as duas mulheres fictícias foi um resultado da dissociação entre criação e criadora, e de sua própria divisão entre as funções de autora, atriz e diretora: “habitar esses três lugares: o lugar da criação, da palavra; da ação, colocar no corpo; e dessa visão do todo, de fazer as escolhas na direção. Isso acabou também sendo incorporado na personagem”. Além disso, em suas obras originais, G.H. fala de si na terceira pessoa e Ofélia é descrita como se estivesse “fora de si”.

Fernanda também respondeu para o Sala 33 qual era o seu trecho favorito da peça: os momentos de respiro. A personagem de Véspera está no que ela chama de “a zona extremamente insuportável da angústia”. A atriz entendeu que, para isso, ela precisava se angustiar junto com o público. “Vamos habitar a angústia”, afirmou. O que contrabalanceia são os momentos de prazer, quando ela e a personagem têm controle da cena e não dependem mais da resposta do público, que consegue perceber isso.

A parte específica escolhida por Fernanda foi o que chamou de uma “citação” de A Paixão Segundo G.H. Descreveu: “É um momento em que ela fuma um cigarro, vai até a janela, observa o mundo lá fora e joga a bituca de cigarro pela janela. Esse é o momento que eu tenho muito prazer; que eu estou muito controlada, que eu sei exatamente o tempo e eu não preciso de resposta. É um momento que é só para ver, é só para assistir”.

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