Por Enzo Campestrin (enzo.campestrin@usp.br)
No dia 11 de setembro de 2001, uma notícia abalou o mundo. Uma das torres do World Trade Center, principal núcleo econômico de Nova York, foi atingida por um avião comercial. A mídia mundial voltou os olhos para o até então acidente, e às 9h52 as primeiras imagens começaram a circular na imprensa brasileira pela TV Globo. Às 10h19, a transmissão ao vivo da mesma emissora capturou a cena do segundo avião chocando-se com a torre Sul do World Trade Center. Com os dois impactos sequenciais em cada torre do complexo imobiliário, os repórteres da TV Globo levantaram a hipótese de que, na verdade, o episódio era um ataque terrorista, o que posteriormente seria confirmado.
Naquele momento, milhões de brasileiros assistiam simultaneamente a cenas que jamais seriam esquecidas. Mais de vinte anos depois dos ataques às Torres Gêmeas, ainda é possível ver os impactos psicológicos deixados pelas imagens de medo e destruição naqueles que as viam ao vivo. Esta reportagem questiona se o brasileiro, mesmo tão distante, lembra o que estava fazendo no onze de setembro.
‘Cenas que nunca vão esquecer’
Tarcísio Martinelli, de 53 anos, conta que, naquele dia, foi ao trabalho como qualquer manhã de terça-feira. “Nesse meu local de trabalho, sempre havia uma ou duas televisões conectadas em canais de notícias. E no meio da programação, aconteceu um corte na transmissão normal, chegando a notícia de que um avião bateu numa das Torres Gêmeas, mas até aquele momento, parecia um acidente”, conta Tarcísio em entrevista para a Jornalismo Júnior.
As informações exibidas na mídia brasileira nos primeiros minutos de atentado vinham, na sua maior parte, da TV norte-americana, como relembrado pelo Memória Globo, que sugeria a ideia de que a colisão era um acidente aéreo. Os esforços dos veículos de imprensa se direcionavam para a causa do acontecimento e para cobrir o trabalho de resgate às vítimas, até outro fato chegar aos estúdios de telejornal.
“E logo na sequência, eu presenciei ao vivo o segundo avião se chocando contra a torre. A cena deixou todo mundo na sala de queixo caído, ninguém conseguia acreditar naquelas imagens. Acho que naquele instante, o mundo ficou em alerta, todo mundo ficou muito apavorado, isso era claro”, Tarcísio comenta.
Segundo dados do Ibope, o Plantão da Globo, que transmitia ao vivo o momento do atentado, atingiu a marca de 21 pontos na Grande São Paulo, sendo que cada ponto equivalia a 44 mil domicílios sintonizados no canal. Mais tarde, no Jornal Nacional e no último Plantão da Globo, a emissora chegou a 52 e 57 pontos, respectivamente. Esta foi a maior audiência da televisão brasileira naquele ano, e uma estimativa da Universidade da Geórgia afirma que quase 2 bilhões de pessoas acompanharam os ataques nos noticiários mundiais.
Naquele dia, mais de 1,7 milhões de brasileiros assistiam às cenas do ataque. Tarcísio relata que “era uma situação em que você não sabia nem o que pensar”. Ele conta que mesmo estando muito longe dos Estados Unidos, tinha sensação de que tudo podia ser reduzido a nada em questão de segundos, igual às Torres Gêmeas.
Ele afirma que suas lembranças sobre o dia ainda são muito claras e que o atentado o marcou. “Quem assistiu ao vivo cenas horríveis de pessoas aterrorizadas se jogando dos prédios, ou mesmo do avião se chocando, fica marcado. Acho que todo mundo que viu presenciou cenas que nunca vão esquecer na vida”, completa.
‘O trauma é um encontro com o real’
Com uma parte tão significativa da população do Brasil e do mundo impactada com as visões dos ataques, cria-se uma nova atmosfera social. É possível categorizar a experiência vivida pelos que acompanharam a transmissão como um tipo de “trauma coletivo” (ou seja, um mesmo evento que leva múltiplas pessoas ao estado de trauma), que gerou consequências diferentes em cada um dos indivíduos.
O psicólogo Gabriel da Silva Santos, mestrando do IP-USP e co-autor do artigo Analysis of psychic trauma in contemporary psychoanalytic production, afirma em entrevista à Jornalismo Júnior que “sob o olhar da psicanálise lacaniana, o trauma se constitui como uma ferida causada por um acontecimento, que por conta de sua intensidade ou de quaisquer outros fatores, não foi possível ter uma reação adequada”. A sensação de “não saber nem o que fazer ou mesmo pensar, só ver em choque”, descrita por telespectadores que viram as cenas, vai ao encontro da definição de Gabriel.
Ele afirma que o trauma é uma vivência que traz, na vida do sujeito, estímulos, como perturbações duradouras ou feridas na memória, quase impossíveis de serem elaborados de forma simples e rápida. “O trauma é um encontro com o real, com aquilo que não pode ser representado, não pode ser dito e não é simbolizado pelo sujeito, mantendo-se no seu campo psíquico-comportamental”, completa.
Gabriel ressalta que apesar de um mesmo evento conseguir instalar traumas na mente de múltiplas pessoas de uma só vez, a vivência pessoal de cada um desses indivíduos é o que determina como esse trauma será manifestado: “Para a psicanálise, é ainda mais interessante a realidade psíquica do sujeito e como ele interpreta o fenômeno, ao invés do fenômeno em si”. Ele explica que todas aquelas pessoas foram impactadas por uma violência, mesmo que visual, e cada uma delas vai interpretar essa violência é diferente. “Nós colocamos essas situações, em senso comum, como um evento traumático, mas os seus desdobramentos e se foi ‘mais ou menos traumático’ depende da construção psicológica individual”.
Os dois lados da herança
Vinte e três anos depois dos atendados terroristas, até então inéditos naquela escala, é possível ver que o rastro de destruição deixado se estende até os dias de hoje, das formas mais variadas. Cultura, política e sociedade como um todo foram perpetuamente marcadas a partir daquele dia.
O 11 de setembro foi decisivo para abalar a crença de união e progresso da globalização, além de ainda ser uma ferida recente e profunda na história estadunidense. Ao menos 50% dos cidadãos dos EUA sentem que ainda estão sob risco de ataques terroristas de grupos internacionais, de acordo com uma pesquisa feita pela AP News em parceria com a Universidade de Chicago em 2021. A pesquisa ainda afirma que 65% temem ataques de grupos internos.
As consequências dessa ferida foram sentidas, principalmente, pela população muçulmana. A islamofobia, que vem crescendo gradativamente desde o 11/09, tem atingido marcas cada vez mais preocupantes. Segundo relatório da USP, apenas no Brasil, 84% dos muçulmanos e 94,6% das muçulmanas já perceberam comportamentos de intolerância contra sua cultura. Antropólogos afirmam que o 11 de setembro foi o desencadeador da onda xenofóbica nos Estados Unidos, que foi integrada nos discursos de ódio de diversos grupos extremistas ligados à extrema-direita americana, como o “Proud Boys”, responsável pela invasão ao Capitólio em janeiro de 2021.