Por Samuel Cerri (samuel.cerri@usp.br)
Inspirada em As Virgens Suicidas de Sofia Copolla e na própria adolescência, a diretora e roteirista Caroline Fioratti leva aos cinemas Meu Casulo de Drywall (2024). A trama gira em torno da morte misteriosa de Virgínia (Bella Piero), uma garota branca de classe alta com, bem, problemas de uma garota branca de classe alta. Apesar de parecer bobo, o enredo é muito bem construído para abordar diversas temáticas da angústia da juventude e, principalmente, para transpassá-las aos espectadores, que não têm um segundo sequer de paz durante o longa.
O filme se passa em dois tempos narrativos, que se intercalam: a festa de 17 anos da jovem, cujo único problema — aparente — na vida era a superproteção de seus pais, o Juiz Roberto (Caco Ciocler) e Patrícia (Maria Luísa Mendonça); e o dia seguinte à festa, com Virgínia morta, no qual se mostram os desenrolares da morte da jovem e fomenta-se a questão: quem matou Virgínia? Para isso, o longa apresenta outras três personagens cruciais para a história: Luana (Mariana Oliveira), melhor amiga de Virgínia, Gabriel (Daniel Botelho), também amigo da protagonista, e Nicollas (Michel Joelsas), namorado da aniversariante.
No que diz respeito à fotografia, a produção é impecável. Helcio Alemão Nagamine, diretor de fotografia, e Monica Palazzo, diretora de arte, conseguiram passar muito bem a dualidade que o filme propõe no enredo. Durante a festa, as cores são vibrantes e saturadas, a iluminação é baixa, os recortes fotográficos são estreitos, enquanto que o dia seguinte dá lugar a imagens monótonas, frias, pouco saturadas e com recorte amplo da visão do cenário. Se na festa a agonia vem da pouca visão e muita informação visual, no dia seguinte a produção quer incomodar a partir do vazio, tanto de informações quanto daquele deixado por Virgínia.
Nessa interpolação, cada vez mais elementos vão sendo apresentados, com a balança de culpa da morte de Virgínia pendendo cada vez para um dos outros personagens. Na festa, Luana oferece anfetamina para os convidados, remédio tarja preta de sua mãe; Gabriel é apresentado com uma arma de fogo dentro da mochila, que mais tarde — ou melhor, no dia anterior — é revelado ser do pai de Virgínia; e Nicollas, um rapaz agressivo e abusivo com a namorada, aparece com vários hematomas pelo corpo.
Com todos esses elementos, e sabendo que o desfecho daquela noite é a morte da jovem, o espectador não consegue respirar nem um único momento. Cada recorte de cena é importante e cada diálogo sufoca. Até mesmo o silêncio — como no abraço dos pais da jovem após a tragédia — não deixa espaço para reorganizar as ideias na mente. Quanto mais o filme arrasta essa angústia, mais parece que a morte de Virgínia vai ser um alívio na tensão criada pelo enredo. Qualquer movimento diferente da jovem, como quando ela se pendura na janela para sentir a brisa, dá um frio na barriga por se pensar: será que foi assim que ela morreu?
A questão é que a morte de Virgínia não é, de fato, o centro da trama. Ela é o acontecimento chave, sem dúvidas, mas a narrativa gira em torno, justamente, do que acontece depois da festa. Se trata da culpa de Luana, que pensa ter ela mesma matado a melhor amiga; do namorado que evita a situação a qualquer custo e de maneira apática, mas por conta do lar abusivo; de Gabriel, que sabe quem matou a jovem e carrega a arma do pai dela consigo; e de Patrícia, que tenta lidar com o luto e a culpa de perder a filha de uma maneira enlouquecedora.
Se há alguém que entregou tudo em termos de atuação, esse alguém foi Maria Luísa Mendonça. A performance de Bella Piero foi boa, mas deixou a desejar — não conseguiu passar tão bem a ideia de uma garota mimada que tem feridas emocionais abertas. O restante do elenco foi excelente na atuação, mas Maria foi impecável. A mãe consegue passar o sentimento do luto de uma forma impressionante, o descuido com a própria aparência, a raiva, a tristeza, a alegria breve e repentina, a negação, tudo isso é entregue de bandeja na performance da atriz.
Um grande simbolismo retratado no filme é a sobreposição entre a mãe e a filha, caracterizado em muitos momentos. Virgínia tem pavor da ideia de se tornar a própria mãe — fato explícito quando a jovem nega usar o vestido de Patrícia ou quando odeia pensar que os corpos delas ficarão iguais na velhice —, mas ao longo do filme ela muda de ideia. Primeiro, quase transando no quarto dos pais, depois tentando ligar para a mãe no meio da festa e, enfim, indo ao quarto de Patrícia e colocando o vestido que ela tinha recusado.
Em contrapartida, a mãe, em seu processo de luto, começa mais e mais a tentar se tornar Virgínia. Abre os presentes da jovem, carrega o bolo do aniversário consigo e, finalmente, coloca o primeiro vestido que a filha usava durante a festa.
Todos tinham seus grandes problemas para lidar: Luana sofria racismo por ser a única negra no condomínio — e por isso uma de suas grandes amigas é a empregada de Virgínia, Silmara (Lena Roque) —, Gabriel se envolvia com fóruns extremistas na internet e sofria preconceito por ser árabe e Nicollas era surrado pelo próprio pai, o general Antonio (Marat Descartes), por ser homossexual (daí que surgem os hematomas no corpo do rapaz). A única que, à primeira vista, não tinha problema algum era, justamente, Virgínia: uma garota branca, rica, com uma mãe superprotetora.
Mas a questão está justamente no título do filme: Virgínia vive fechada num casulo de drywall. Quem já teve uma parede de drywall em casa sabe que qualquer mero ruído passa por ela e dá para escutar tudo pelo lado de dentro. Assim era, também, com a jovem. Além da angústia de orbitar Patrícia, a jovem encarava o pai abusivo com a mãe, o namorado gay que ela vê constantemente a traindo pelas câmeras do condomínio, os abusos que Nicollas sofria do pai, as angústias de Gabriel, um amigo de longa data, e as automutilações da melhor amiga.
Infelizmente, o filme peca em algumas coisas. Além da atuação da protagonista, a falta de um aviso de gatilhos é um problema — convenhamos que classificar o filme para +18 não dá carta-branca para mostrar suicídios e automutilações. De forma lamentável o enredo romantiza tópicos sensíveis ao som de uma música melodramática de fundo, tudo isso sem qualquer alerta prévio.
Como é um detalhe do minuto final, ele não estraga o todo da obra. Mas, ainda assim, foi uma falha muito grande. Meu Casulo de Drywall termina sendo um filme muito bom, angustiante, com fotografias excelentes e um enredo de tirar o fôlego.
O filme já está em cartaz nos cinemas. Confira o trailer:
*Imagem de capa: Divulgação/ Aurora Filmes