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Entrevista | Whit Stillman, o cavalheiro desajustado

Ícone do cinema independente americano discute sobre sua filmografia em conversa exclusiva
Por João Lucas Casanova (joaolcasanova@usp.br)

Whit Stillman é um cavalheiro. Do mesmo espécime raro, genuíno e desajustado de cavalheirismo que com frequência encontramos nos personagens de seus filmes. Talvez seja esse o aspecto que se sobressaia à primeira vista em sua obra. Os tipos, por mais absurdos que soem, nunca são representados sem um quê irredutível de verdade. O Sr. Stillman os respeita em sua humanidade complexa e parece atrelar a razão de ser de sua produção às ideias que deles fluem, num vai-e-vem mais espirituoso que pragmático.

Em suas joias do cinema independente, conversas possuem um espaço sagrado. Não é um mero apreço pelo diálogo, sempre sagaz, propositivo — ainda que, como relatou em determinado momento de nossa conversa, seu momento de ouro do cinema seja a primeira metade dos anos 1930, conhecido (in)justamente pela dependência das falas, recém-introduzidas à arte cinematográfica. 

No caso de Stillman, essa característica está mais para um reconhecimento do papel crucial exercido pela vida social na formação do indivíduo. No fundo, o diretor dá ênfase às interações, o instante de contato entre percepções, cujo tom é dado pelo diálogo, mas não apenas, porque sabe que fora disso nada existe.

“Todos os filmes são comédias românticas, em algum grau”, relata, em tradução livre. E é mesmo impressionante o quão longe o esquema garoto gosta de garota (e vice-versa) pode nos levar e revelar. Mesmo que a afirmativa seja verdadeira, é também fato que o gênero flexiona em sua produção, ou ao menos que atinja outros escopos. Por vezes, não sabemos se no centro de tudo está o amor, a moral ou o próprio indivíduo. Tudo isso se condensa com leveza, de modo quase inerente, como se não fosse possível dissociar uma coisa da outra.

E é claro que sua encenação sutil, que por vezes se confunde com uma economia, sem nunca perder a elegância, intensifica esse efeito. As ações e os trejeitos humanos, nosso jeito de ser no mundo, mote absoluto da narrativa, são privilegiados pela direção sem firulas que vemos em seus filmes.

Crônica da jovem elite nova-iorquina, Metropolitan (1990) rendeu a Stillman uma indicação de Melhor Roteiro Original no Oscar [Imagem: Divulgação/New Line Cinema]

Isso não se dá à toa. Os filmes do início dos anos 1930 representam alguns dos melhores exemplos do quão cristalina a linguagem cinematográfica pode ser. Os dançantes e alegres filmes de Fred Astaire, as comédias amalucadas de Frank Capra, Howard Hawks e companhia. Todos, de algum modo, servem para contradizer a máxima de que o período foi de vacas magras para a criatividade no cinema. E é a várias dessas obras que Stillman remete, seja em tom, tema ou sentimento.

As irremediáveis mudanças de comportamento, propiciadas pelas revoluções do século 20, surgem como motor das tramas do diretor e nunca realmente saem delas. Seus personagens, idealistas por natureza, lidam com as transformações do mundo quase que com um pé-atrás. Os papéis de gênero, as usuais performances de sexualidade esperadas pela sociedade, são tomados em sua filmografia por um olhar questionador. 

Há quem atribua, em razão disso, um caráter moralista a suas obras. Em Metropolitan, seu filme de estreia, um grupo de jovens da alta sociedade nova-iorquina passa horas a fio discutindo temas como mobilidade social, relacionamentos e cultura. Por mais surpreendente que pareça, é com consideração, e não ácido sarcasmo, que Stillman retrata essas pessoas e suas dores, que soam concretas e dignas de atenção — sem com isso abrir mão de apresentar as contradições que compõem o discurso dos U.H.B (Alta Burguesia Urbana, em português), forma como se autodefinem.

O protagonista da trama, Tom, um jovem de classe média conscientemente crítico e alheio aos bailes de debutantes e à vida de aparências, é convidado a experienciar, tal qual o espectador, aquela realidade marcada sob a constante égide do declínio. É assim que Stillman constrói sua autenticidade, dando aos personagens nada além do que são de fato: seres complexos, mas não complexados, fora da realidade, mas sempre com um pé nela.

Tom acaba por desconstruir dogmas, além de construir outros. A interação, a moldar e contrapor caráter. Quando no fim da trama tudo culmina numa corrida maluca pela “salvação” de um afeto do protagonista, já não é com purismo cético que observamos o desenrolar de príncipes e princesas, mas com coração quente e, sobretudo, verdade, que irradia do que se constrói entre os personagens.

Barcelona (1994) talvez seja o mais difícil filme de Stillman. Fruto de sua experiência como americano na Espanha durante o fim da Guerra Fria, o longa surpreende por apresentar os meandros e incongruências da ideologia americana (bem como do antiamericanismo) sem recair em reduções que tipifiquem a discussão política, solução inconveniente em assuntos de natureza tão complexa.

Há algo de curioso nesse retrato não convencional, mesmo em termos de linguagem, com um humor demasiado particular e tom díspar, sempre a se dividir entre o mundano das relações pessoais e o todo que disso escapa, que não se perdeu nesses anos todos. Na realidade, diante das atuais circunstâncias globais, o filme parece estar melhor do que jamais esteve — opinião que o Sr. Stillman tende a discordar.

Soturno, mas sem perder a piada, o 2º longa do diretor é uma agridoce viagem pela experiência americana no exterior [Imagem: Divulgação/ New Line Cinema e Criterion Collection]

Os Últimos Embalos do Disco (The Last Days of Disco, 1998) encerra a trilogia, que veio mesmo a se compor como tal somente nesse último filme, e é um retorno apaixonante a uma das eras de maior efervescência social da vida americana. Para além do teor “cinematográfico” contido em filmar “lindas garotas e discotecas”, é aqui que seu idealismo atinge a fase mais madura. Ilusões, equívocos, malícia e ingenuidade na noite nova-iorquina. 

Os dois últimos longas de Stillman, Descobrindo o Amor (Damsels in Distress, 2011) e Amor & Amizade (Love & Friendship, 2016), contemplam duas das maiores obsessões do diretor: dança e Jane Austen, respectivamente. O primeiro é tão entregue a um sentimento inocente de alegria, em sua forma mais desvairada, talvez, mas igualmente afetuosa, que a recepção morna de parte significativa da crítica não soa outra coisa que não desentendimento.

O segundo, por sua vez, é uma adaptação de ritmo ágil e soluções perspicazes de uma das mais fundamentais autoras inglesas, aprofunda diversos dos temas caros ao diretor. Dentre eles, a moralidade de uma personagem que parece não a ter em absoluto (ou somos nós que entendemos o mundo errado). Tanto Amor & Amizade quanto Os Últimos Embalos do Disco renderam também novelizações por Stillman.

Durante cerca de uma hora, por ligação, conversamos sobre língua, cinema e política. Como seus filmes, o Sr. Stillman esbanja charme, polidez sem afetação, um ótimo humor e gentileza para responder aos questionamentos deste repórter.

Cinéfilos – Quando eu entrei em contato pela primeira vez, você me relatou uma visita a São Paulo. Acredito que para divulgar Barcelona. Quais foram suas impressões da cidade? Você chegou a visitar pontos turísticos? Muitos comparam São Paulo a Nova York…

Whit Stillman – Sim, a viagem ao Brasil, acho que havia algum festival acontecendo em Búzios. Primeiro fui ao Rio [de Janeiro], depois a Búzios, onde exibiram Barcelona ao ar livre. As legendas pareciam muito ruins e todos saíram da exibição. Então eu estava lá e não gostei muito de Búzios. Parecia muito úmido. E também porque eles saíram da exibição do meu filme.

Fui a São Paulo e tive uma experiência maravilhosa. Gosto muito da cidade e tivemos uma ótima exibição. Gosto muito das pessoas. Nas metrópoles, meus filmes se saem muito bem. Nova York, São Paulo, Buenos Aires, Milão, Paris, Londres… Essas são as cidades onde nossos filmes prosperam. E acho que você tem a alta burguesia urbana e você simplesmente tem a sensibilidade urbana nessas cidades. Há lugares favoritos para exibir o filme. 

Cinéfilos – Isso foi em 1994, 1995? 

Stillman – Pode ter sido em fevereiro de 1995. Era durante o verão brasileiro. Pode ter sido no final de 1994 ou no início de 1995.

Cinéfilos – Foi por alguns dias? Você se lembra de quanto tempo ficou?

Stillman – Não foi muito tempo. Mas gostei muito. E conheci pessoas de São Paulo em Nova York, que conheciam os filmes, por isso me sinto muito próximo de São Paulo.  

Cinéfilos – E você gosta mais de São Paulo que do Rio, certo?

Stillman – Com certeza! (risos)

Cinéfilos – Eu acredito que seus filmes possuem um senso curioso de moralidade. Ao mesmo tempo que ela parece constituir muitas das relações e percepções dos personagens, não soa um aspecto cerceador e punitivo. Questões de caráter moral são tão proeminentes nos seus filmes porque você acredita ser assim também na vida real? 

Stillman – Sim, com certeza. Acho que existe uma espécie de perspectiva juvenil. Alguns jovens podem ser muito moralistas. E acho que o mundo dos nossos personagens é uma espécie de diálogo entre os puritanos e os playboys. E eu me identifico um pouco com os dois grupos. Acho que é uma questão de ponto de vista em relação à idade. Acho que os jovens, se forem religiosos, podem se tornar bastante moralistas e preocupados com a moralidade sexual. Mas também há a questão de que, à medida que as pessoas envelhecem, se tornam mais playboys e menos moralistas nesse sentido. Então, acho que esse é um pouco o diálogo que acontece nos filmes.

Cinéfilos – Você ainda se considera idealista?

Stillman – Eu realmente oscilo entre as duas perspectivas, eu diria. Tive dois do que considero “filmes Cinderela”, em que tudo correu bem e eles receberam uma ótima reação de todos os críticos. Metropolitan foi um “filme Cinderela” e, muito mais tarde, Love & Friendship também se tornou um “filme Cinderela”. Parece que todos entenderam da maneira certa e responderam bem. Então, a primeira crítica negativa de Metropolitan no New York Times foi um artigo de fim de ano em que Bret Easton Ellis, entre todas as pessoas, zombou de Metropolitan por ser pedante e moralista. E, em retrospecto, acho que é verdade. Acho que Metropolitan e Barcelona são um pouco pedantes e moralistas.

Cinéfilos – Eu concordo, mas acho que é mais do que isso.

Stillman – Espero que sim, mas acho que às vezes é bom aceitar as críticas para entender algo. Acho que é bom ver o que é essa crítica, o que ela significa e o que eles estão dizendo. Por exemplo, o único filme sobre o qual realmente mudei minha perspectiva foi Barcelona porque, quando o fiz, estava escrevendo a partir da minha experiência quando me casei com minha esposa espanhola e fui levado para a Espanha como visitante no meio da Guerra Fria e todas aquelas controvérsias sobre o papel dos Estados Unidos naquele momento.

E é muito uma perspectiva americana versus a Europa e é bastante unilateral. Está realmente tomando o ponto de vista americano, que não é apenas o ponto de vista norte-americano, acho que também é o ponto de vista da América. Quero dizer, acho que há uma diferença entre o hemisfério ocidental e o velho continente. Acho que pode haver uma identificação entre a maneira como as pessoas no México e no Brasil se sentem em relação à Europa e a maneira como os americanos se sentem em relação a isso. 

Me lembro de quando eu vendia filmes espanhóis, que foi meu primeiro trabalho no cinema. Fui ao México e as simpáticas pessoas lá ficaram realmente chocadas com a linguagem e o conteúdo dos filmes espanhóis. Eles eram tão decadentes no ponto de vista e nas piadas. Desde então, passei mais tempo na Espanha e depois muito tempo na França, e acho que comecei a ver as coisas de forma mais equilibrada entre as duas perspectivas.

E já corrigimos isso um pouco quando estávamos dublando. Gosto muito de trabalhar nas dublagens dos filmes. E quando estávamos dublando Barcelona para o espanhol castelhano, realmente tentamos tornar as piadas mais equilibradas e realmente detalhadas. Por exemplo, o sujeito que é um verdadeiro antiamericano em uma das cenas, a cena das formigas vermelhas, era na verdade um amigo suíço-alemão meu, um artista que estava interpretando esse papel. E, na versão legendada do filme, as pessoas não percebiam isso. Não é um espanhol interpretando o personagem, é um falante de alemão, e quando fizemos a versão, tivemos um amigo espanhol com uma avó alemã fazendo a dublagem. Foi muito engraçado porque ele estava fazendo isso com um sotaque alemão no espanhol. E isso adicionou comédia e tirou o peso daquele conteúdo.

Cinéfilos – Você acha que isso funcionou melhor com a audiência espanhola do que a versão original?

Stillman – Sim, foi muito útil para o lançamento do filme em espanhol, porque o filme se tornou muito mais popular na Espanha castelhana do que na Catalunha, pois a dublagem catalã foi muito mal feita, sem nenhuma dessas mudanças ou nuances. Por isso, o filme não é muito popular na Catalunha. A versão espanhola é popular na Catalunha, mas a versão catalã não.

Cinéfilos – Quais são seus pensamentos sobre dublagem? Sei que algumas pessoas são muito puristas sobre isso…

Stillman – Veja, a questão é: acho que as pessoas não entendem o ponto principal quando dizem “Ah, eu não gosto de dublagem”. E isso não é o que é interessante. O que é interessante é como fazer uma dublagem realmente boa. Porque muitos filmes em muitos países serão vistos principalmente dublados. E dizer simplesmente “Ah, eu não gosto de dublagem” não é o problema. O problema é como fazer uma dublagem realmente boa. E isso é um trabalho totalmente criativo e muito interessante. 

Quero dizer, para o cineasta, você tem a chance de refazer metade do seu filme, de certa forma, e mudar o tipo de nuances e trabalhar com esses atores com vozes realmente encantadoras. Os atores de dublagem têm vozes lindas e qualidades que você pode adicionar aos seus filmes. Você definitivamente vai perder coisas, muitas coisas, mas, ao mesmo tempo, pode adicionar outras mais.

Cinéfilos – Com a dublagem dos seus filmes, você está sempre ligado a elas? 

Stillman – Não fiz isso com Metropolitan e, quando vi a versão francesa, pensei: “Bem, isso é muito bonito, mas parece totalmente fascista” (risos). Então, com Barcelona, comecei a trabalhar nas versões dubladas em diferentes graus. Por exemplo, se eu estivesse na cidade, poderia realmente trabalhar na dublagem no estúdio, na escolha da atriz e tudo mais. E algumas coisas eu tive que fazer à distância e só pude fazer um pouco para tentar melhorar. Nas versões dubladas em italiano e alemão, não pude ter nada a ver.

Cinéfilos – Eu li uma entrevista em que você fala que, quando mais novo, queria ser F. Scott Fitzgerald. Isso clarificou na minha mente as semelhanças entre Metropolitan e This Side Of Paradise. Resguardadas as diferenças, ambas as obras lidam com uma jovem elite cuja perspectiva de futuro soa ameaçada ou, o que é ainda pior, estagnada. Por que você acredita que toda geração se sente “condenada”? O declínio é permanente ou é apenas algo que parece irremediável quando somos jovens?

Stillman –  Não, acho que há um elemento nisso que é meio que preciso, no sentido de que há uma perda de muitas normas culturais e vantagens com o tempo. Mas, ao mesmo tempo, há outras coisas que estão ficando muito melhores. Então você meio que sempre quer viver no presente e olhar para o futuro, porque precisamos fazer isso. E também porque, ao mesmo tempo, sim, estamos perdendo coisas, sabe, as pessoas não aprendem mais latim e grego nas escolas e estamos perdendo certa quantidade de conhecimento e a maneira de fazer as coisas. Sabe, dependemos tanto de todos esses “ismos” esotéricos e eletrônicos que esquecemos como fazer as coisas por conta própria. Então, há verdade nisso, mas acho que, à medida que envelhecemos, mudamos nossa ênfase e tentamos não ficar deprimidos com coisas assim.

Tão bobo quanto com o coração no lugar certo, Descobrindo o Amor adquire proporções inesperadas para o espectador que o receber de braços abertos [Imagem: Divulgação/ Sony Pictures Classics] 

Cinéfilos – Você ainda acha que estamos “condenados”, de alguma forma?

Stillman – Sim, acho que tudo isso é verdade. A perspectiva pessimista é verdadeira, mas a perspectiva otimista também é verdadeira. Acho que o meu filme que mais teve dificuldade para ser aceito foi Descobrindo o Amor. Nele, tentei mostrar como poderia haver uma espécie de “utopia retrô”. Então, se gostamos de coisas do passado, que diminuíram ou desapareceram, não precisamos ficar deprimidos. Podemos dizer: “Bem, vamos trazer algumas dessas coisas de volta. Vamos criar uma moda de dança.”

As pessoas podem criticar meu gosto musical, dizendo que estou preso nos anos 1960 ou algo assim, e o que eu gosto em música. Mas muitas vezes encontro um artista hoje em dia que está fazendo algo que eu absolutamente adoro. Acho que eles estão canalizando o que havia de bom na soul music ou no rocksteady jamaicano e tornando isso contemporâneo. E muitas vezes eles vêm de lugares surpreendentes, como o norte da África ou algo assim. Mas eu adoro o que eles estão fazendo musicalmente. E eu me lembro que, quando Amy Winehouse surgiu, eu disse: “Bem, isso é fantástico.” É exatamente o tipo de música que eu gosto e ouço. E vem de uma garota judia de Londres ou algo assim!

Cinéfilos – O seu estilo de música são as músicas que tocam em seus filmes?

Stillman – Sim.

Cinéfilos – Você ainda gosta de [música] disco?

Stillman –  Adorei a época da disco porque tínhamos perdido completamente a vida social nos Estados Unidos. Era tudo muito drogado e solitário, e então a disco trouxe de volta todo esse mundo social. E isso não desapareceu de verdade. Quer dizer, sim, aquela época clichê da discoteca acabou. Mas à noite, as casas de dança continuaram por muito tempo. Acho que agora não está tão bom. Mas quando eu estava fazendo Os Últimos Embalos da Disco, em 1997, havia várias boates muito boas, mas elas eram diferentes das grandes casas noturnas do final dos anos 1970. Eram menores e mais chiques. A disco definitivamente não desapareceu. Quero dizer, ela está em toda parte.

Cinéfilos – Relações de amizade são obviamente um grande tema dos seus filmes. Mas algo que chamou minha atenção enquanto assistia são as amizades femininas. Existe muita genuinidade na forma que você estabelece essas relações, os meandros, a malícia quase intrínseca, etc. Esse retrato surge da observação? Qual a principal diferença de retratar amizades entre homens e entre mulheres?

Stillman – Uma coisa que percebi ao escrever é que achei mais interessante criar personagens femininas do que masculinos. Como os filmes todos são, em algum grau, comédias românticas, acho que a posição das mulheres era tradicionalmente mais interessante, porque elas achavam que tinham que controlar suas escolhas românticas, mesmo que, aparentemente, não fossem elas as iniciadoras. Isso as colocava em uma situação mais interessante, enquanto a situação dos homens era apenas, você sabe, se apaixonar loucamente por diferentes mulheres e, na minha época, reunir coragem para ligar e tentar convidá-las para sair e, então, sofrer as consequências da rejeição. E tudo isso era meio chato para mim, e o papel feminino era muito mais interessante.

Hoje em dia, todas essas coisas se tornaram muito políticas. Então, se você tem muitas perspectivas masculinas e personagens masculinos, as pessoas te criticam. Achei meio ridículo que, depois de Metropolitan, quando fiz um filme sobre dois primos em Barcelona e as mulheres com quem eles se envolvem, as pessoas criticaram que as personagens femininas não eram mais importantes na história. E o problema é que você faz uma história e, tudo bem, ela é principalmente sobre o ponto de vista dos homens, e então você faz outra história e ela é principalmente sobre o ponto de vista das mulheres, que foi [Os Últimos Embalos da] Disco. Meio que criticar um filme por conta da escolha do tema é ridículo.

Cinéfilos – Foi uma resposta às pessoas que criticavam a visão masculina de Barcelona ou…?

Stillman – Não, não foi. Não foi nada intencional. Foi porque achei que era muito cinematográfico, mulheres bonitas em discotecas. Então, eu tinha duas grandes cenas em discotecas em Barcelona e elas foram muito divertidas de filmar, muito mais fáceis do que as outras filmagens, porque você pode filmar uma cena noturna em uma discoteca durante o dia.

Um dos problemas com meus filmes é que, com romance, grande parte das coisas acontece à noite. Quando se trata de festas, dança e romance, geralmente é à noite. E filmar à noite é muito cansativo. Toda a equipe fica exausta, e o diretor também. Nós nos divertimos muito filmando as discotecas em Barcelona, porque podíamos filmar durante o dia e todos curtiam a música, mesmo que não entendessem o diálogo. Parecia realmente cinematográfico: garotas bonitas e discotecas. E eu acho que é cinematográfico.

Ode irresistível a era das discotecas, o 3º longa de Stillman amplifica a capacidade de seu cinema de destrinchar as relações sociais [Imagem: Divulgação/New Line Cinema e Criterion Collection]

Cinéfilos – Eu nunca fui a um clube que toque música disco, mas Os Últimos Embalos da Disco me fez sentir algo muito desolador: a nostalgia de um tempo que nunca vivi de verdade. Todos os filmes da sua trilogia lidam com um tempo passado. Você encara a realização dessas obras como uma oportunidade de viver tudo aquilo de novo? Como reconstituir o passado mexe com você?

Stillman – É uma viagem muito gratificante ao passado quando você faz um filme, e eu sempre fiz filmes ambientados no passado. E até mesmo Amor & Amizade me deu a oportunidade de trabalhar no meu século favorito, que é o final do século XVIII. Eu simplesmente adoro esse período e foi ótimo poder fazer um filme ambientado nessa época.

Cinéfilos – Embora seus filmes abordem diferentes períodos históricos, Amor & Amizade leva isso a outro nível. Como foi o processo de filmagem de um filme de época? A escala de produção foi muito maior do que em seus outros filmes?

Stillman – Não, Amor & Amizade foi um milagre de baixo orçamento. As coisas não são o que parecem. É muito mais difícil fazer Os Últimos Embalos da Disco como um filme de época do que fazer Amor & Amizade. Filmamos em Dublin e é realmente fundamental em cidades como essa saber quando elas eram prósperas e quando não eram. Dublin era muito próspera no final do século XVIII e início do século XIX. Depois disso, não foi mais. Então, eles tinham a bela arquitetura e as estruturas daquele período. E como não prosperou mais, eles não a reconstruíram com estilos diferentes. 

Londres foi muito próspera durante a era vitoriana. Então, eles derrubaram grande parte do século XVIII em Londres e construíram a Londres vitoriana, que eu acho muito mais feia. A região de Dublin conservou muito da bela arquitetura georgiana. E todas essas coisas escondem serviços. Então, há a antiga agência de aluguel de carruagens, e você só precisa ligar para a agência de aluguel de carruagens e alugar algumas carruagens. Eles enviam pessoas que sabem como cuidar dos cavalos e montá-los. Nós apenas os vestimos com nossos figurinos e eles fazem todo o trabalho. E há casas de aluguel para todas as roupas de outras produções. Foi realmente um sonho filmar esse filme.

Adaptação de um curto romance de Jane Austen, o filme mais recente de Stillman é uma deliciosa visita à uma cultura antes apenas relanceada em suas outras obras [Imagem: Divulgação/Amazon Studios e Roadside Attractions]

Cinéfilos – Existe algum projeto em andamento que você queira ou possa revelar?

Stillman – Sim, existem. Estou cruzando os dedos. Acho que estou perto de seguir em frente com algo. Quero dizer, perto de estar perto de seguir em frente

Cinéfilos – Eu acredito muito em um cinema sobre seres humanos, em que rostos humanos, seus trejeitos e modo de ser no mundo, preenchem e irradiam a tela. Sua encenação me parece privilegiar isso. Obviamente você o faz com uma economia que não abre mão da elegância e sutileza. O que mudou no seu modo de pensar a mise-en-scène de Metropolitan à Amor & Amizade, onde o uso de recursos visuais me parecem mais amplos?

Stillman – Bem, não sei se é bom ou ruim, mas realmente não mudou nada. Eu estava aprendendo tudo com Metropolitan. Então, a primeira semana de gravação foi um aprendizado bastante dramático. Eu tinha chegado ao capítulo 9 de um livro que eu tinha, “Como Dirigir um Filme”. Eu fiz o curso noturno de produção cinematográfica da NYU [New York University], parte A. Infelizmente, não fiz a parte B, que é sobre som. Eu deveria ter feito. O diretor de fotografia, John Thomas, meio que me orientou em tudo e disse: “Agora, você quer vê-los da cabeça aos pés nesta cena?”. E eu disse: “Sim, quero vê-los da cabeça aos pés”. E ele disse: “Bem, eles ficarão muito distantes se você fizer isso. Ficarão muito pequenos na tela. Que tal filmá-los da cintura para cima? Sabe, vamos entrar e filmá-los…”. Eu disse: “Tudo bem, parece bom.”

E então eles fazem o mesmo com o contracampo, coisas como: “Agora você quer filmá-los de frente?” E eu disse: “Sim, vamos filmá-los de frente.” E eles disseram: “Não, ou você quer filmá-los por cima do ombro?”, e eu disse: “Bem, o que é isso?”, e ele disse: “Bem, os ombros abertos, você vê um pouco dos ombros deles”, então eu disse: “Por que eu iria querer ver os ombros deles?”. Ele disse: “Bem, porque você monta e vê o outro ombro e vê exatamente onde eles estão e monta isso”. Então eu disse: “Por que eu não iria querer de frente?” “Porque se estiver de frente, você só vai ver as cabeças sem corpo. Você não sabe onde elas estão.”

Então, eu tive essa formação na primeira semana de Metropolitan e, basicamente, trabalhei com um editor muito bom, que acabou sendo indicado ao Oscar, Chris Telson. Ele fez Metropolitan em Barcelona. Eu estava trabalhando com editores muito bons e realmente acredito na edição. Acredito que filmamos para a sala de edição. E eu realmente não gosto de tomadas longas e contínuas, que você não consegue cortar facilmente. Sou muito de steadicam e coisas assim. Não acho que haja nenhuma virtude real em planos sequência, particularmente. Acho que, de certa forma, uma direção pomposa afasta as pessoas do filme e as torna mais distantes do que está acontecendo. E acho bom que as pessoas se aproximem dos rostos, da dinâmica social e da conversa.

Me lembro do momento em Barcelona, quando estávamos atrasados e eu disse ao John [Thomas]: “Vamos pular a master shot [tipo de plano que enquadra todos os personagens em cena durante a ação] e passar direto para a two shot [plano em que o quadro é preenchido por duas pessoas]”. E ele ficou tipo: “Porra, como assim?”. E era verdade. Eu sabia que não iria usar a master shot. Seria muito chato. Era aquela cena em que Ted e Fred, com uma loira linda, estão conversando sobre europeus e hambúrgueres. E eu sabia que seria apenas uma two shot, campo e contracampo. Então, por que filmar a master? 

Acho que uma das minhas cenas favoritas é a cena da conversa no bar Rex’s em Os Últimos Embalos da Disco. A personagem de Chloë [Sevigny] sai e entra no táxi na tempestade, seguida pelo personagem de Chris Aggerman. Adoro essa sequência e acho que ela realmente mostra a dinâmica do grupo, os pares. Todo o projeto dos nossos filmes está ali.

Cinéfilos – Essa cena é linda. Você considera sua direção econômica? Isso é importante na realização de um filme?

Stillman – Acho que posso estar indo longe demais, mas acho que as limitações do cinema independente de baixo orçamento são realmente úteis…

Cinéfilos – Você acha isso criativo, de alguma maneira?

Stillman – Sim, acho que é muito criativo. Grande parte do estilo surgiu do fato de que, em Metropolitan, não tínhamos nenhuma grua ou dolly. Só tínhamos um dolly ocidental, que é a alternativa de baixo orçamento. Você coloca rodas de borracha em um pedaço de madeira compensada, coloca o tripé com a câmera sobre ele e o puxa sobre uma superfície lisa na frente dos personagens, e pronto, você tem seu dolly. Foi isso que fizemos para as cenas de caminhada e conversa em Metropolitan. Conseguimos fazer isso porque a Park Avenue e as partes agradáveis de Nova York têm calçadas boas, sem muitos solavancos e vibrações. Então, era possível fazer isso.

Quero dizer, ocasionalmente há tomadas mais longas ou com grua nos filmes de que gosto, como a tomada inicial de Amor & Amizade, que eu gosto muito. Foi meio que uma tomada heroica com grua que funcionou magicamente e dedicamos todo esse tempo a ela e, de repente, terminamos, então começamos a filmar outras coisas, o que levou à ideia de ter retratos de todos os personagens. Isso aconteceu porque terminamos a tomada com grua tão rapidamente que tivemos todo esse tempo para almoçar e fazer outra coisa. Então, fomos e fizemos isso, e então a brilhante montadora [Sophie Corra] encontrou o material e descobriu em uma versão do roteiro que eu tinha dado descrições de todos os personagens, porque um agente me disse que ajudaria as pessoas que lessem isso se você descrevesse todos os personagens. Então, usamos a linguagem de Jane Austen para descrever os personagens. E a montadora colocou isso com música e criou um estilo completo que nós não tínhamos pensado em fazer. 

Acho que essa é, para mim, a parte emocionante de fazer cinema. Muitas das cenas que filmamos em Amor & Amizade foram feitas porque as estrelas não estavam prontas com o cabelo e a maquiagem. Levava muito tempo em cabelo e maquiagem para fazer aqueles figurinos. Estávamos no set, prontos para começar, mas não tínhamos os atores, então filmamos os criados andando por aí, apagando velas. E tínhamos Morfydd Clark, que estava pronta para filmar, correndo por aí. “Morfydd, corra em direção à câmera, corra para longe da câmera, desça as escadas correndo.” E acabamos usando todas essas cenas que filmamos enquanto esperávamos os atores (risos).

Cinéfilos – Amor & Amizade tem um ritmo curioso. É muito ágil. Isso estava no roteiro ou é algo da edição?

Stillman – Acho que está nos dois. Fiquei muito feliz por ser tão rápido. Acho muito bom fazer filmes de 90 minutos. As pessoas falam sobre a era de ouro de Hollywood, que é o final dos anos 1930, mas eu falaria sobre a era de platina de Hollywood, que vai de 1932 a 1936. Acho que havia uma genialidade narrativa que é simplesmente notável. 

A Alegre Divorciada (The Gay Divorcee, 1934, de Mark Sandrich), um dos filmes prediletos de Stillman [Imagem: Reprodução/TMDB]

Eu estava prestes a comentar no Twitter [atual X]. Alguém postou o pôster do filme Heróis Esquecidos [The Roaring 20s, de Raoul Walsh], que é um filme de estúdio de 1939 com James Cagney e Humphrey Bogart. Muito bem produzido, muito bonito, feito com um orçamento alto. E comparando isso com os filmes de gângsters do início dos anos 30, que seriam Inimigo Público [The Public Enemy, de William A. Wellman] e Alma no Lodo [Little Caesar, de Mervyn LeRoy], de 1931, acho que os filmes de 1931 são superiores ao filme de 1939, porque há sempre algo um pouco decepcionante em Heróis Esquecidos. Há um excesso. E ele tem 107 minutos. Os outros dois têm 79 ou 82 minutos. E eles têm tanta história e tanta sociologia. São muito mais inteligentes.

Cinéfilos –  Você se considera um cinéfilo?

Stillman – Não.

Cinéfilos – Sério? Isso é surpreendente, na verdade.

Stillman – Não particularmente, porque não quero assistir a tudo. Não tenho interesse em assistir a tudo. Só quero assistir a certas coisas. Nessas áreas me torno um cinéfilo, porque quero me concentrar nisso. Acho muito interessante o início de algo. Por isso, gosto muito do início do cinema sonoro e narrativo.

Acho que os musicais que foram feitos naquela época, em 1935, 1934, eram realmente interessantes e ótimos. Mas acho que o período em que Truffaut fez Os Incompreendidos [Les 400 Coups, 1959], Beijos Proibidos [Baisers volés, 1968] e Domicílio Conjugal [Domicile Conjugal, 1970], também foi um novo começo.  

E então, quando o cinema independente anglo-americano começou, havia uma energia ali. Jim Jarmusch, Spike Lee, Wayne Wang, John Sayles, isso é realmente interessante. Mas antes disso, havia a espécie de nova onda espanhola, que era a comédia madrilenha: Fernando Colomo, Fernando Trueba. Quero dizer, [Pedro] Almodóvar surgiu disso, mas ele não fazia parte do nosso grupo. Era um pouco como os Jets e os Sharks [gangues do musical Amor, Sublime Amor]. E ele era do outro grupo, então há um sentimento de rivalidade.

Cinéfilos – Eu fiquei surpreso ao assistir Barcelona e perceber o quão bem você retratou os meandros e incongruências do americanismo e anti-americanismo, sem reducionismos que tipificam a discussão política. Ainda que em um contexto diferente, nós aqui no Brasil temos vivido um cenário parecido com o presente no filme. Não sei se você tem acompanhado, mas…

Stillman – Eu acompanho e admiro vocês por colocarem seu tirano na prisão. O Brasil conseguiu fazer o que os Estados Unidos não conseguiram. 

Cinéfilos – Pensando em Barcelona, como você vê a posição dos EUA no mundo hoje? Você acha que Fred Boynton manteria sua crença nos ideais americanos no cenário atual?

Stillman – Não acho que ele discorde do antiamericanismo agora. Mas acho que ele manteria seus ideais. Ele esperaria que voltássemos aos nossos ideais após a terrível farsa dos anos Trump. É muito chocante o que aconteceu nos Estados Unidos. Muito, muito chocante. E isso tira muito do orgulho e da complacência. Porque, por muito tempo, os americanos zombaram dos franceses por 1940. Mas nós nos rendemos a [o regime de] Vichy sem os tanques alemães. Quero dizer, os franceses lutaram bravamente e morreram contra os nazistas, mas os nazistas venceram. Não temos desculpa para isso. Nós fizemos isso a nós mesmos. É muito, muito embaraçoso e vergonhoso. E deveria ser. Então, de qualquer forma, isso é parte do motivo pelo qual minha perspectiva sobre Barcelona mudou.

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