Por: Bianca Muniz (biancamuniz@usp.br)
No último domingo, a Fábrica de Cultura do Capão Redondo recebeu o PerifaCon, a primeira Comic Con da favela. Com a premissa de levar cultura nerd para periferia de forma gratuita, o evento reuniu cerca de 4 mil pessoas.
Convenções de quadrinhos e de conteúdo nerd, as chamadas comic cons não são novidade no Brasil. Esse tipo de evento ganhou ainda mais força com a criação da CCXP (Comic Con Experience) em 2014, que atualmente é uma das maiores comic cons do mundo. No entanto, o crescimento desse tipo de atração se deu para um público que pode se locomover com facilidade até os grandes centros da cidade e pagar ingressos caros para usufruir do conteúdo, excluindo moradores de bairros periféricos.
Diante dessa situação, surgiu o PerifaCon. Em entrevista ao Sala 33, Igor Nogueira, um dos idealizadores do evento, comenta que a ideia de criar o PerifaCon surgiu da vontade de uma equipe formada por sete jovens da periferia em poder frequentar as grandes conferências nerd/geek do país, mas que não têm condições financeiras e de mobilidade urbana para isso. “A gente decidiu criar a nossa [conferência] na favela. Lançamos o projeto em setembro de 2018 e em janeiro a campanha de crowdfunding, que bombou na internet, houve uma repercussão gigantesca”.
Para Igor, o objetivo do PerifaCon é trazer, no mesmo ambiente, periferia e o centro: “fazer uma ponte entre a galera que é de quebrada, que produz conteúdo há muito tempo e que normalmente não tem visibilidade, com a galera que já está consolidada no mercado, com as grandes empresas. Poder trazer esses dois grupos no mesmo ambiente, trocando informações e dando possibilidades”. E isso foi visto com a presença de grandes nomes da cultura pop participando do evento ou visitando, como Natália Bridi e Marcelo Forlani (do site Omelete), Ivan Reis (Chiaroscuro Studios e CCXP), os quadrinistas Gabriel Bá e Marcelo D’Salete, Cris Bartis (Mamilos Podcast) e o rapper Rashid, dividindo espaços com artistas independentes e produtores de conteúdo com menor visibilidade.
É de se imaginar que um evento em sua primeira edição não tenha apenas acertos. No entanto, a produção da PerifaCon superou positivamente as expectativas de público, de organização e de atrações. Os voluntários que organizavam as filas (que para algumas atrações, eram grandes), orientavam a todos que tinham dúvidas e promoviam acessibilidade em um espaço cuja estrutura não comportava o grande fluxo de pessoas (os dois elevadores não eram suficientes para a demanda de visitantes).
Outro ponto de destaque foi a variedade de conteúdo. A feira vertical nos andares da Fábrica de Cultura contou com presença de exposições (como a “Rap em quadrinhos”, assinada por Load e Loud), editoras consolidadas como Aleph e Cia das Letras, lojas de produtos nerds, salas temáticas de jogos de RPG e jogos independentes, mesas de debate, oficinas e palestras.
Um dos principais espaços nas “cons” do mundo, é o Beco dos Artistas, área onde artistas gráficos expõem seus trabalhos. Bianca Aguiar, uma das expositoras presentes no espaço, conheceu o evento pela internet. Ela, que já tinha apresentado seu trabalho em outras feiras, como a CCXP, diz que faltava um evento desse segmento na periferia. “Eu tô adorando, tô apaixonada! Vi o anúncio do evento nas redes sociais e uma galera me indicou também. Achei a ideia super legal, tinha que ter [uma comic con] mesmo. Peguei todas as minhas coisas e vim, e está sendo surpreendente”.
Johnatan Marques, também expositor no Beco dos Artistas, foi à PerifaCon apresentar seus prints e fanarts de personagens da cultura pop, como o Superchoque, o Arqueiro de She-Ra e Miles Morales, de Homem-aranha no aranhaverso. “O legal é que, além de ser um evento de arte acontecendo na periferia, mostra que a periferia também tem artistas capacitados que podem produzir essa arte”, conta Jonathan, enquanto mostra seus trabalhos impressos e em um tablet.
Mas não só de exposição de arte vive a PerifaCon. Discussões sobre representatividade e produção de conteúdo aconteceram em mesas de debate com artistas, produtores, youtubers, nomes famosos e outros em ascensão no mercado de cultura pop.
O Sala 33 acompanhou a mesa “Produção e representatividade negra nos quadrinhos”. Mediada por Load, a mesa tinha a presença de Lya Nazura, Marcelo D’Salete, Marilia Marz e Robson Moura. O debate discorreu principalmente sobre dois pontos: como trazer personagens negros nos quadrinhos impacta na vida dos leitores, e quais medidas o mercado editorial poderia tomar para tornar essa representatividade efetiva.
Lya destacou que os quadrinhos são muito utilizados durante a alfabetização na infância, logo, são a primeira leitura de muitas crianças e moldam as percepções das mesmas. Marcelo lembrou que, durante sua infância, via os negros na música, mas não nas HQs. Ambos concordam que uma representação ideal do negro nas HQs deveria se atentar não somente em colocá-lo no meio da narrativa, mas inseri-lo corretamente, discutindo seus estigmas e particularidades em suas vivências.
Para Marília Marz, que fez seu TCC do curso de arquitetura em formato de quadrinhos, questionar a representação negra em histórias já estabelecidas é essencial. Seu trabalho, “Indivisível”, conta a história de negros e japoneses na fundação do bairro da Liberdade, comumente lembrado como um bairro japonês, mas que originalmente também tem raízes da escravidão negra no Brasil. Ela comenta que o apagamento de personalidadese espaços de vivência e resistência negra são frequentes nas narrativas.
Outra questão levantada foi a representação de negros feita através do olhar de autores brancos. Robson ressaltou a importância em se retratar o negro nos quadrinhos como protagonista humanizado, com suas particularidades, não apenas como super-heróis ou reforçando estereótipos.
Além das mesas de debate, outra atração do PerifaCon foi a “Pergunte a um(a) cientista!”, organizada pelo projeto Via Saber, uma equipe de Divulgação Científica da Universidade de São Paulo. Segundo Júlia, uma das integrantes do grupo, “a ideia é aproximar a academia e as produções científicas da sociedade em geral”. Para isso, o grupo trouxe pesquisadores de diversas áreas do conhecimento para sanar dúvidas dos visitantes.
O sucesso do evento foi além da expectativa de seus organizadores, que tiveram que interromper o credenciamento de visitantes em alguns momentos, pois o espaço não comportava mais pessoas. Ainda assim, era possível ver visitantes pulando os muros para acompanhar a batalha de cosplayers na Fábrica. Igor Nogueira, quando questionado sobre o que ele estava achando desse sucesso, não escondia sua emoção. “A felicidade é imensa em ver a adesão da galera do Capão Redondo. O que tem de gente, morador aqui do bairro ou vindo de outras quebradas de São Paulo, de outros estados… O evento foi à lotação! É incrível construir esse sonho junto com as pessoas”.
O que foi visto na Fábrica de Cultura do Capão Redondo é a prova de que há demanda por espaços de consumo de cultura nerd fora dos centros urbanos, lugares por vezes negados à população periférica – seja pela localização central, pelos altos preços ou pelo estigma criado em torno da favela. “É o que a gente viu semana passada, que o shopping JK [Iguatemi] barrou a entrada de crianças que foram ver a exposição da Disney. Aquilo foi totalmente racismo e preconceito social”, lembrou Load, durante sua fala na mesa de debate. “A PerifaCon é importante por isso: aqui ninguém vai ser barrado de aproveitar a cultura nerd”.
Igor de Araujo Nogueira meu filho. Merece muito e toda a galerinha de amigos que sempre sonharam muito além de suas realidades. Parabéns e que venham muitas.