Por Caroline Aragaki (carolaragaki@usp.br)
O título desta resenha pode gerar certo desconforto, mas está longe do sentimento que os protagonistas do livro Sereias de Titã são convocados a vivenciar. Imagine se eu fosse reconhecida como um ser onisciente com conhecimento do futuro e te contasse que você vai, de fato, ler o livro? Um tanto perturbador — essa é a essência da história que lida com questões filosóficas profundas.
Lançada em 2018 pela Editora Aleph, a obra de Kurt Vonnegut questiona a existência do livre-arbítrio e apresenta sátiras adocicadas que tornam o enredo, mesmo com um grande número de particularidades e ambientação em diversos planetas, muito próximo à nossa realidade.
Um dos eventos que pode causar estranhamento é apresentado logo no início. A cada 59 dias, acontece na Terra um fenômeno muito aguardado por todos: o magnata Winston Niles Rumfoord e seu cachorro Kzak voltam fisicamente ao seu planeta de origem. Desde que foram engolidos por um infundíbulo cronossinclástico* que os desmaterializou, percorrem todo o espaço sideral em diferentes cronologias ao mesmo tempo. São proprietários do conhecimento de tudo, detendo a famosa onisciência, inclusive quanto ao futuro.
Sempre que essa materialização acontece, uma multidão se reúne em frente à mansão Rumfoord, mas a entrada é estritamente proibida. Por isso Malachi Constant, um milionário de herança e sem grandes conquistas próprias, fica surpreso por receber um convite para visitá-la.
Ele, então, é surpreendido ainda mais quando recebe a profecia de que viajará pelo espaço e terá um filho com Beatrice, a detestável esposa de Rumfoord. Constant também participará de uma guerra entre Marte e a Terra, criará uma nova religião chamada de Deus Absolutamente Indiferente, conhecerá criaturas de Mercúrio e será levado até Titã, um satélite natural de Saturno.
Todas essas previsões de fato acontecem. E envolvem certa carga dramática que tornam a trama ainda mais interessante. Como tantas incredulidades aparentemente soltas podem seguir uma linha de raciocínio? De que maneira esses fatos acontecem é algo que a mente do leitor vai tramar, mas não necessariamente desvendar.
Cabe ressaltar que o próprio narrador entende que a história está sendo contada para terráqueos leigos. Não precisa se assustar com os termos como infundíbulo cronossinclástico*. Muito menos passar horas imaginando como seres humanos conseguem respirar em Marte sem o uso de capacetes. Todas as características desse universo insano (à sua maneira) estão descritos ali, proporcionando um embasamento maior a favor da verossimilhança.
Algo muito interessante é que são citados alguns trechos de livros que existem no universo narrativo. Bíblia autorizada e revisada, de Winston Niles Rumfoord; 14a edição da Enciclopédia Infantil de Maravilhas e Atividades para Fazer; e O Livro de Receitas Galácticas, de Beatrice Rumfoord são algumas das obras citadas. Isso faz com que o leitor adentre ainda mais na história, não se limitando ao que o narrador apresenta, mas lendo com seus próprios olhos aquilo que os habitantes de Marte, por exemplo, também chegam a ler.
A riqueza da obra também diz respeito à história em si. Não compete citar mais informações da trama ao longo desta resenha para não te tirar o gosto de se surpreender. Há muito para ser contado e a leitura dessas 301 páginas se torna longe de ser cansativa, inclusive para aqueles que não tem intimidade com a ficção científica. Política, ciência e religião criam um híbrido literário que desperta curiosidade a cada término de capítulo.