Este filme faz parte do 23º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Para mais resenhas do festival, clique aqui.
Muito se critica os filmes de super-heróis por conversarem apenas com aqueles que já conhecem o universo. No entanto, é curioso ver como os mesmos exaltam documentários musicais que pouco explicam a importância do artista documentado a um público leigo. Obviamente, em ambos os casos, é louvável quando os realizadores escondem easter eggs que somente serão captados pelos fãs mais aficcionados. Mas para isso, é preciso primeiro ter uma base de quem, o quê, como e, principalmente, por quê nosso artista merece ser homenageado em um documentário. Nesse sentido, um dos maiores erros que um documentário musical pode cometer é focar mais em rasgar elogios do que explicar o por quê deles.
Eu, Meu Pai e os Cariocas (2017), um dos filmes de abertura do Festival É Tudo Verdade do ano passado, é um exemplar desse problema. Na ocasião, ouvíamos diversos depoimentos em sequência que, nem sentimental nem intelectualmente, justificavam a excelência das músicas dOs Cariocas. E isso com um time de entrevistados que ia de Gilberto Gil a Maria Bethânia. A sensação que ficava era de uma competição de quem conseguia elogiar usando as palavras mais fortes.
Um outro problema desse subgênero é tornar o documentário mais um show do que propriamente um estudo dos marcos, crônicas pessoais ou personalidade do artista documentado. Buena Vista Social Club (1999), por muitos considerado uma obra-prima do documentário musical, passa suas quase duas horas de duração encadeando sucesso atrás de sucesso. No início do filme até conhecemos algumas nuances políticas, e mais adiante, também alguns relatos da banda. Apesar disso, saímos da projeção conhecendo certamente as músicas, mas pouco de seus autores.
Adoniran, Meu Nome É João Rubinato (2018), filme de abertura do É Tudo Verdade 2018, em São Paulo, acerta em ambos os pontos. Isso acontece, é claro, porque o documentário é repleto de elogios e de uma séries de números musicais, mas também porque vai bem além disso. Do começo até um pouco ininteligível, nos familiarizamos com a voz judiada pela bebida e pelo cigarro. A seguir, entendemos a origem de seu nome, que gostava de enganar todo mundo com histórias que se contradiziam, e que, no começo da carreira, queria replicar a persona de bom moço de Orlando Silva. “O Adoniran dos anos 30 foi soterrado pelo boêmio dos anos 50”, diz um dos entrevistados.
Se esses pequenos detalhes já não fossem o bastante, o êxito do documentário é não apenas elogiar que Adoniran sabia falar errado como ninguém, mas que existia um jeito certo que só alguém que pertencia às camadas mais baixas poderia transpor às composições. Tal êxito está também não só em ouvirmos o sambista cantando Saudosa Maloca, como explicando que a música só fez sucesso depois que os Demônios da Garoa decidiram fazer uma versão deles. Por fim, esse êxito está em relembrar como Adoniran viveu seus últimos anos em solidão a partir de relatos dos cochilos que ele tirava no hall do prédio em que antes trabalhava.
Prédios esses muito importantes porque, ainda em pé, demarcam uma história. Uma história que lá atrás já era denunciada por Adoniran (“Veio os homis c’as ferramentas / O dono mandô derrubá”), mas que ainda hoje se faz presente. E a sensibilidade do montador em contrapor imagens de arquivo dos anos 60 com outras do mesmo lugar 50 anos depois, dá um tom de desalento. O maior exemplo disso é quando ouvimos o compositor lamentar a condição do homem do século XX, enquanto vemos imagens da miséria de mendigos do século XXI. Condição humana essa que nosso “palhaço triste” viveu em pele, transformou em chacota e, enfim, transpor à arte. Digno ele e o documentário de todos os elogios e shows à parte.
por Natan Novelli Tu
natunovelli@gmail.com