Por Sofia Colasanto (sofiacolasanto2@usp.br)
No dia 26 de setembro de 2025, a cantora Gal Costa completaria 80 anos de vida, se não fosse por sua partida súbita em nove de novembro de 2022. Além de comemorar as oito décadas de seu nascimento, neste ano a artista também celebraria 60 anos do lançamento de seu primeiro compacto solo.
Em memória à Gal, a sua interpretação de A História de Lily Braun, Como 2 e 2, Vapor Barato e Brasil realizadas em seu último show, foram lançadas três anos após a sua última performance em festivais, que ocorreu no dia 17 de setembro de 2022. Uma coletânea de sucessos da cantora também foi publicada em homenagem aos seus oitenta anos. O disco de seu espetáculo completo no Coala Festival de 2022 deve ser disponibilizado nas plataformas digitais ainda em outubro. Enquanto isso, conheça a trajetória e os outros álbuns da “maior cantora do Brasil”, que emplacou sucessos através de sua voz de cristal e de sua potência interpretativa.
Eu vim da Bahia cantar
Maria da Graça Costa Penna Burgo nasceu no ano de 1945 em Salvador (BA) e cresceu no bairro da Graça. Enquanto ainda estava na barriga de sua mãe, ela já escutava música clássica e passou a infância ouvindo rádio, com uma forte intuição que seria cantora. Quando jovem, trabalhou em uma loja de discos, em que todas as tardes escutava os artistas da bossa-nova e em especial sua grande inspiração, João Gilberto.
Em 1963, através de sua então vizinha Dedé Gadelha, a incipiente cantora conheceu Caetano Veloso, e passou a integrar seu círculo social, que contava com Maria Bethânia, Gilberto Gil e Tom Zé. É com eles que, um ano depois, performou pela primeira vez no show “Nós, por exemplo”, na inauguração do Teatro Vila Velha e, posteriormente, também em “Nova bossa velha, Velha bossa nova”.
Sua primeira gravação é uma participação na faixa Sol Negro, no álbum de estreia de Maria Bethânia, em 1965. No mesmo ano, viajou com o grupo para realizar espetáculos de Augusto Boal, em São Paulo. Nesse momento, gravou seu primeiro compacto, ainda como Maria de Graça, que contém as canções Eu vim da Bahia, de Gilberto Gil, e Sim, foi você, de Caetano Veloso.
Esse período de convivência com os colegas de profissão ofereceu à cantora um frutífero momento de troca de saberes e de acompanhar as novidades daquela juventude. A partir da escuta de João Gilberto, ela buscou aprimorar a sua técnica vocal, momento em que chegou a emitir sua voz para o interior de uma panela de pressão, de modo que a maior reverberação permitisse que ela mesma se ouvisse.
Com pouca crença da gravadora no sucesso solo dos cantores, Gal Costa e seu eterno parceiro musical, Caetano Veloso, estreiaram juntos no álbum Domingo (1967). O LP conta com composições de Caetano, ainda muito ligadas à estética bossanovista, e apresenta Gal como uma menina tímida de voz suave, como nas canções Avarandado e Coração Vagabundo.

[Imagem: Divulgação/Philips Records]
É preciso estar atento e forte
O ano de 1968 marca a eclosão de Gal Costa como voz do Tropicalismo. A cantora integrou o álbum Tropicalia ou Panis et Circencis (1968), obra fundamental do movimento, em que ganhou destaque com as canções Baby e Mamãe, Coragem. Nesse mesmo ano, no IV Festival de Música Popular Brasileira da Record, Gal apresentou Divino Maravilhoso com o cabelo estilo black power, vestido coberto de espelhos e uma potência no canto muito diferente da suavidade que apresentava até então.
A mudança na postura também deve-se ao contexto político do momento, em que entoar “É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte” tornava-se cada vez mais necessário, ao mesmo tempo que perigoso. No fim daquele ano, o Ato Institucional nº 5 foi decretado, o que aumentou a censura e violência da Ditadura Militar. Apenas duas semanas após o decreto, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos sob a denúncia de ofensa à bandeira e ao hino nacional.
Em julho de 1969, com medo da violência do regime, os compositores se exilaram em Londres. Por falta de dinheiro e pela necessidade de ficar com sua mãe, Gal permaneceu no Brasil e foi encarregada de manter o movimento tropicalista vivo, mesmo com seus pensadores fora do país. Logo, em apenas um ano, a cantora lança os álbuns Gal Costa (1969) e Gal (1969), que apresentam as canções Que Pena (Ele já não gosta mais de mim), Não Identificado e Meu Nome é Gal.
No período de exílio, a intérprete fez visitas aos colegas na capital britânica e entrou em contato com a contracultura internacional, em que conheceu outra de suas grandes inspirações, Janis Joplin. Inundada de referências vanguardistas e buscando inovar em seu terceiro disco, Gal traz de Londres as canções London, London e Mini Mistério e deixa o artista plástico Hélio Oiticica a cargo da capa do álbum. Assim, nasceu Legal (1970), que revela maior experimentalismo da cantora com sua voz.
Porém, é em Fa-tal – Gal a Todo Vapor (1971) que a artista atinge o ápice de seu tropicalismo. O álbum é resultado de uma turnê de shows homônima dirigida por Waly Salomão, em que Gal explora sua sensualidade e feminilidade, por meio de longos cabelos e parte do corpo descoberto, em prol de uma nova potência interpretativa.
A ambientação do espetáculo, as roupas da cantora e a pintura de dourado em sua testa levavam ao palco as tendências da arte de vanguarda brasileira do período. Gal também inovou ao incluir novos compositores em seu repertório com Pérola Negra, de Luiz Melodia, e Dê um rolê, de Moraes Moreira e Luiz Galvão.

Naquele momento, a cantora passou a frequentar um trecho da Praia de Ipanema, que cinco décadas depois seria reconhecido como Patrimônio Cultural da Natureza Imaterial, cujo nome é “Dunas da Gal”. A área, que era dividida do restante da praia pela construção de um emissário submarino, foi durante quatro anos um importante ponto de encontro entre intelectuais, artistas e surfistas em meio ao regime ditatorial. Gal Costa era figura recorrente no local, sempre acompanhada de amigos, sua voz e seu violão.
Em Índia (1973), Gal eleva seu erotismo como forma expressiva e de atrair o público, ao mesmo tempo em que não deixou de transmitir sua intenção contracultural. A capa do álbum foi censurada pela Ditadura Militar por ser considerada provocativa, de modo que o disco só podia ser vendido com um invólucro preto. Nessa turnê, Gal também estabeleceu a sua clássica postura performática, em que apresentou-se sentada em um banquinho, tocando violão, e deixando suas pernas à mostra.

Gal Tropical
Gal Costa tinha um forte senso de modernidade e sempre buscou inovar, de modo que é impossível caracterizá-la por apenas um estilo musical ou movimento artístico. Mesmo integrante feroz do Tropicalismo, a cantora demonstrou como sua arte não se resumia à essa estética. Em Cantar (1974) e Gal canta Caymmi (1976), a artista buscou reconectar-se com a suavidade de sua voz e apresentou músicas mais alegres, como Barato Total, Flor De Maracujá, Modinha para Gabriela e Só Louco.
Em 1976, Gal se uniu à Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil para formar o grupo Doces Bárbaros. A proposta era realizar uma turnê de shows e posteriormente um álbum em comemoração aos dez anos de sucesso de carreira de cada um dos integrantes, que iniciaram juntos na Bahia. O disco apresenta canções inéditas e interpretações emblemáticas, como Esotérico e Um Índio e é uma mescla entre o frescor jovial e o amadurecimento de cada integrante desde o início do Tropicalismo.
Logo, Gal deixou para trás sua vertente vanguardista e passou a se aproximar cada vez mais do popular e carnavalesco. Seu primeiro disco de ouro foi com o álbum Água Viva (1978), que inclui as canções Folhetim e Paula e Bebeto. Porém, sua grande virada estética realmente acontece em Gal Tropical (1979), que teve uma turnê internacional. O álbum foi um sucesso, lhe rendeu seu segundo disco de ouro e emplacou importantes músicas de sua carreira, como a potente Força Estranha e a agitada Balancê.

[Imagem: Reprodução/Instagram/ @galtodas]
Em sequência, continua com grandes êxitos de vendas com Aquarela do Brasil (1980), Fantasia (1981) e Minha Voz (1982). Também é nesse momento que Gal estreiou sua importante parceria com Djavan, que lhe rendeu as gravações de Açaí e Azul. Plural (1990) também é um sucesso de público e crítica. Porém, no início da década a mãe da cantora faleceu, fato que também abalou sua carreira.
Sua retomada ocorreu no disco O Sorriso do Gato de Alice (1993). Em um show dirigido por Gerald Thomas, Gal chocou e provocou, sempre com muita expressividade e potência. Em seguida, a cantora passou a gravar grandes coletâneas de revisitação de compositores como Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]
Mãe de todas as vozes
Gal Costa não deixou sua relevância ser ultrapassada pelo tempo. Em seu álbum Recanto (2011), com produção de Caetano Veloso, Moreno Veloso e Alexandre Kassin, a artista explorou sintetizadores e moduladores de voz como nova forma de expressão artística. Com composições inéditas e uma estética nunca antes vista em sua obra, a cantora retornou ao seu experimentalismo e atraiu o público jovem.
Em seguida, Gal buscou estar cada vez mais próxima da nova geração de compositores, como ocorreu em Estratosférica (2016) e A Pele do Futuro (2018), em que gravou canções de Mallu Magalhães, Criollo, Céu, Pupillo, Tim Bernardes e Marília Mendonça. Em seu último álbum de estúdio, Nenhuma Dor (2021), a cantora gravou duetos de seus grandes hits com diversos artistas, como Rubel, Silva, Zeca Veloso, Jorge Drexler e Zé Ibarra.

[Imagem: Reprodução/Youtube/Coala TV]
Desde 2021, Gal Costa estava em turnê com seu show As várias pontas de uma estrela, quando precisou fazer uma pausa em sua agenda para retirar um nódulo na fossa nasal direita. A cantora faleceu três semanas após o procedimento, no dia nove de novembro de 2022, em decorrência de um infarto agudo e de um câncer na cabeça e pescoço. A morte da cantora gerou forte comoção nacional e relembrou a todos de sua importância para a música brasileira. Assim, o Brasil se despediu da cabeluda de voz cristalina, que embalou décadas com suas sublimes interpretações.
“Sou filha de todas as vozes
Que vieram antes
Sou mãe de todas as vozes
Que virão depois”
Mãe de todas as vozes, de Nando Reis
*[Imagem de capa: Reprodução/Acervo IMS]
