por Diego C. Smirne
d.c.smirne@gmail.com
No século XXI, ninguém (ou quase ninguém) mais acredita em vampiros, lobisomens, bruxas. Cada vez menos pessoas acreditam em superstições como as propriedades protetoras do alho, a boa sorte que traz uma ferradura ou um pé de coelho, o azar que acompanha quem passa por baixo de uma escada, quebra um espelho ou tem o caminho cruzado por um gato preto. Cada vez mais pessoas deixam de acreditar na existência de Deus, que dirá no Diabo. São tempos difíceis para quem conta histórias de terror.
Há ainda muitos artifícios manjados para dar sustos, o que explica a generosa dose anual de filmes de terror tolos, que às vezes até divertem, porém dificilmente deixam uma semente na memória para germinar tarde da noite. Mas para quem de fato se propõe a contar uma boa história, a gelar o sangue de uma plateia cética e fazê-la ter pesadelos por noites seguidas, é necessário um raro talento. Robert Eggers possui esse talento.
Com seu longa de estreia, A Bruxa (The Witch, 2015), Eggers venceu o prêmio de direção do Festival Sundance em 2015, conquistou a crítica e a seita The Satanic Temple e assustou até mesmo o Rei do Terror, Stephen King, que rasgou elogios ao filme através de sua conta no Twitter. E certamente agradará muito também ao público sedento por bons lançamentos do gênero, que fujam ao desgastado found-footage, aos clichês, aos sustos fáceis.
O filme se passa na Nova Inglaterra de 1630, quando famílias de imigrantes puritanos ingleses tentavam fazer da colônia norte-americana um novo lar. A primeira cena mostra o julgamento de William (Ralph Ineson), que é exilado da comunidade junto de sua mulher e quatro filhos por seu orgulho e arrogância. A família então encontra um local para se estabelecer à orla de uma misteriosa floresta, e lá mantém uma produção de subsistência, plantando milho, criando cabras e galinhas, e ganha um novo membro, o bebê Samuel.
A existência tranquila começa a se esvair quando a filha mais velha, a adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy), leva o irmãozinho para brincar próximo à floresta e ele, de repente, desaparece. Daí em diante, o pequeno paraíso da família profundamente temente a Deus torna-se um inferno, à medida que o milho para de crescer, os ovos apodrecem, o bode Black Phillip se comporta de maneira estranha, e a jovem Thomasin se vê sempre envolvida nas inexplicáveis desventuras que acometem seus familiares.
Um dos maiores trunfos de Eggers é a maneira com que consegue transportar o espectador para um tempo em que a vida era permeada, senão dominada pelo medo: o medo de uma terra desconhecida, da escuridão da noite, de ter a alma condenada ao inferno por falhar com Deus… o medo do que se esconde na floresta.
A perfeita fotografia de Jarin Blaschke é um dos fatores que nos coloca dentro da obra. Composta de uma paleta de cores mortas e acinzentadas e ressaltando a meia luz das velas, ela nos faz lembrar que, não muito tempo atrás, a chama delas era a única coisa além das estrelas e da lua cheia que nos afastava da escuridão total.
Além disso, o diretor usa sua experiência prévia como designer de produção e figurinista para fazer com que cada elemento na tela seja o mais fiel possível à época. O roteiro, também escrito por ele, segue essa regra, com diálogos em inglês arcaico, muitos deles retirados de testemunhos e documentos de episódios como os famosos julgamentos das Bruxas de Salém, que ocorreram mais adiante no século XVII.
Para garantir a imersão mesmo do mais cético espectador no tenebroso clima do filme, a angustiante trilha sonora de Mark Korven tem clara influência do clássico O Iluminado (The Shining, 1980), de Stanley Kubrick, e as atuações do elenco majoritariamente desconhecido são irretocáveis, especialmente as da estreante Anya Taylor-Joy, com seu olhar inocente e perturbado, da mãe Katherine (Kate Dickie) e do filho pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw), além da voz espantosamente grave de Ralph Ineson.
A Bruxa, co-produzido pela brasileira RT Features, é extremamente tenso do início ao fim. Eggers usa com maestria a velha estratégia de mostrar apenas o necessário para incitar a imaginação. Como no atemporal romance Drácula, de Bram Stoker, no qual o vampiro aparece de fato em pouquíssimas páginas, embora esteja sempre presente, a bruxa do filme tem raras aparições, mas o pouco que vemos dela é hediondo. O horror fica muito mais concentrado na família, que, a exemplo do que acontece na trama de O Iluminado, gradativamente perde a sanidade em meio à desgraça que não se sabe se vem da própria casa, dos Céus ou da floresta.
Exibindo um vasto repertório do simbolismo e do folclore sombrio das servas de Satã, um profundo apego aos detalhes, bom olho para talentos e o domínio das técnicas dos mestres do gênero, Robert Eggers alcança seu objetivo proclamado: contar uma aterrorizante história típica dos tempos coloniais da Nova Inglaterra (região onde nasceu), um “pesadelo do passado” que engloba o fanatismo religioso, o tabu da sexualidade da mulher, a hipocrisia familiar e o medo visceral do sobrenatural. E o faz de uma maneira artística que remonta aos contos de fadas dos irmãos Grimm, estilo tão incomum nas produções de terror. A categoria encontra em Eggers um nome promissor, e em A Bruxa, definitivamente, um novo ícone.
Confira o trailer de A Bruxa, com estreia no dia 3 de março: