Que bela e complexa experiência é voltar ao passado e percorrer as próprias lembranças, agora com olhos de um observador resiliente e contemplativo. Em Dor e Glória (Dolor y Gloria, 2019), Salvador Mallo, interpretado por Antonio Banderas, é um cineasta imobilizado pelo bloqueio criativo e pelos males do corpo e do espírito. O relançamento de um antigo filme seu é o gatilho para que ele retorne à infância e às escolhas da vida e da profissão. Tudo fica ainda mais interessante por se tratar de uma representação semibiográfica de Pedro Almodóvar, roteirista e diretor desta obra, que considera a mais intimista de sua carreira.
Grandioso em sua despretensão, o longa conta com uma narrativa bem amarrada e interessante. O fato de se ancorar na simplicidade e evitar grandes conflitos dramáticos faz com que o roteiro transmita naturalidade. A melancolia, que acompanha toda a história, é tão bem trabalhada que se torna atraente e acolhedora. Algumas cenas também são divertidas, porém o humor é discreto e pode ser encontrado, principalmente, no sarcasmo e na graça diante dos infortúnios da vida.
Cheio de cores, o filme ainda é visualmente mais sóbrio que outros do mesmo diretor, como Tudo sobre minha mãe (Todo sobre mi madre, 1998) e Volver (2006). Uma animação é utilizada já no início da exibição para esquematizar as patologias do protagonista e, curiosamente, o material é inspirado em resultados de exames médicos de Almodóvar. O figurino extravagante e os chamativos objetos em cena também são cedidos pelo diretor, imprimindo muito da sua própria identidade visual à produção.
A dinâmica maternal é o centro do longa. Quando criança, Salvador acompanhava o trabalho e as cantorias da mãe, junto às colegas lavadeiras. Foi com esse contato inicial com a música, que Salva, como era chamado, desperta para a arte. Na figura da progenitora na época de meninice do cineasta, temos Penélope Cruz, que oferece expressividade à rígida, porém carinhosa, personagem. Na fase posterior, é interpretada pela veterana Julieta Serrano e é nesse momento que também presenciamos a angústia do diretor por não corresponder às expectativas da mãe.
Um elemento importante, porém, segundo Almodóvar, não correspondente com a realidade, é a relação do protagonista com as drogas. Além dos mais diversos medicamentos para a dor física que persegue Salvador, o envolvimento com a heroína é, ao mesmo tempo, um alívio e uma prisão. Introduzida pelo ator e antigo parceiro de trabalho Alberto Crespo (Asier Etxeandia), a droga é um meio para os flashbacks do cineasta. A dinâmica entre ambos é engraçada e Alberto é um personagem polêmico e muito carismático.
Outro tema de destaque na trama é a homossexualidade, tratada de forma autêntica e orgânica, manifestando-se na infância, representada com graciosidade pelo ator mirim Asier Flores. Já na vida adulta, o romance com Federico (Leonardo Sbaraglia) também é abordado de maneira singela, fugindo de estereótipos já utilizados à exaustão pelo cinema.
No elenco, como mais um simbolismo da vida e carreira de Almodóvar, atores fantásticos que o acompanham há anos, como os já citados Julieta Serrano, Penélope Cruz e Antonio Banderas, este último interpretando com maestria seu alter-ego. Vencedor do prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes deste ano pelo papel, Banderas encarna seu grande mentor e se transforma. Utilizando muito da linguagem corporal do diretor, o ator entrega uma atuação respeitosa e brilhante.
Com estreia marcada para o dia 13 de junho, um dos trunfos de Dor e Glória é fazer o público ficar com uma pulga atrás da orelha em alguns momentos, afinal, estamos diante de Salvador Mallo ou Pedro Almodóvar? Além de instigar a curiosidade, o filme é bonito, envolvente e um presente para os fãs do diretor! Confira o trailer: