Quem imaginaria que apenas 12 anos depois da invenção do cinematógrafo pelos irmãos Lumière, em 1895, a cidade de São Paulo receberia um teatro para a exibição de filmes com orquestra? Na época de sua inauguração, o Bijou Theatre, primeiro cinema da cidade (mas não do país, o Rio de Janeiro abrigava uma sala desde 1896), localizado na rua São Bento, lotava cerca de 400 lugares diariamente em suas sessões às 18h30.
Mais de cem anos depois, mesmo com pirataria, televisão à cabo e com o advento dos serviços de streaming, os paulistanos continuam frequentando o cinema. E não apenas as salas 3D ou Imax com os lançamentos de Hollywood, mas o cinema de rua, que resiste com público fiel apesar da concorrência do shopping e da internet.
“A instabilidade desses cinemas é algo que me preocupa. Não há políticas voltadas para a manutenção das atividades de cultura desses espaços” diz Lia, revisora de textos, em referência aos cinemas de rua em geral e ao Cine Belas Artes em particular. O cinema, localizado na rua da Consolação, já esteve fechado e teve dois patrocinadores diferentes em menos de cinco anos.
Os protagonistas
Se fosse possível traçar um perfil homogêneo dos frequentadores de cinema de rua de São Paulo, este seria muito próximo de Lia: jovem, com idade entre 18 e 35 anos, politicamente engajado e morador da região central. Ao longo de algumas semanas, o Cinéfilos conversou informalmente com o público desses cinemas e realizou cinco entrevistas em profundidade. Talvez o traço mais marcante que essas pessoas têm em comum seja a prioridade que a cultura tem em suas vidas.
Lucas Daher, estudante universitário, afirma que o hábito de assistir a filmes no cinema vem de uma tradição familiar e que se intensificou desde que ele se mudou para São Paulo, há seis anos. Lia também destaca que a oferta de cinemas na capital paulista é boa se consideradas outras cidades, o que faz com que pessoas possam frequentar esse tipo de espaço.
A professora universitária Mara Regina de Oliveira conta que a programação artística dos cinemas de rua de São Paulo se tornou um diferencial do nicho. “Aqui sobrevive um número razoável de cinemas de rua onde prevalece uma programação mais artística”. Além de complexos como a Reserva Cultural e o Espaço Itaú de Cinema, ela frequenta mostras especiais em museus e espaços culturais, como o Cine Segall e o Instituto Moreira Salles (IMS) que, segundo ela, tem preços mais acessíveis do que as salas tradicionais e exibem uma programação mais relevante.
O administrador de empresas Fábio Maciel considera tal relevância como o principal atrativo dos cinemas de rua, apesar de preferir a comodidade das salas de shoppings. Ele conta que costumava baixar filmes fora do circuito — como aqueles que concorrem a prêmios no Oscar, por exemplo — e que quando percebeu que eram exibidos em salas de cinema de rua com programação menos comercial, passou a frequentar estes espaços.
Gustavo Azevedo, advogado, conta que somente recorre aos cinemas de shopping quando o filme que procura não é exibido em cinemas de rua. Assim como Lia, Lucas e Mara Regina, ele evita as salas mais comerciais e o ambiente fechado desses espaços. Mara destaca que gosta do intercâmbio entre o cinema de rua e a cidade, algo que não acontece no shopping. Segundo ela, isso cria uma dinâmica econômica que incentiva comércio e restaurantes, ampliando as opções de lazer na região central da cidade.
O cenário
Apesar da alta procura e das sessões constantemente lotadas, os cinemas de rua em São Paulo são conhecidos e frequentados por uma parcela pequena da população da cidade. Isso porque as principais salas se concentram na região central com programação que não é apelativa à grande parte da população, representando um verdadeiro nicho para o cinema alternativo (leia-se não comercial) e estrangeiro (leia-se não americano). Lucas considera que a curadoria das salas na região da avenida Paulista é muito parecida e que poderia haver mais diversidade.
Mesmo que o acesso à avenida Paulista seja amplamente facilitado por transporte público, a grande maioria dos entrevistados mora ou trabalha a uma curta distância dos cinemas de rua da região, tendo a possibilidade de ir à pé; todos citaram a localização das salas como um fator determinante. Isso reforça a ideia de que este tipo de entretenimento faz parte da rotina dessas pessoas, que cultivam o hábito para se manterem atualizadas sobre os lançamentos do cinema ou para terem um momento de descanso e lazer.
Gustavo conta que se esforça para visitar o cinema ao menos uma vez por semana independentemente da programação. Às segundas-feiras, dia em que o ingresso costuma ser mais barato, ele escolhe a sessão que melhor se encaixa em seu horário para assistir o que quer que esteja em cartaz. Por confiar na programação das salas que frequenta, ele diz ter poucas surpresas ou decepções.
Mara Regina compartilha o sentimento: há ocasiões em que ela passa o dia no cinema, emendando uma sessão na outra, pois tem a confiança de que todos serão bons. “Os cinemas de rua tem uma seleção que garante que não vamos nos arrepender de assistir. Dá para perceber que existe uma curadoria”, ressalta a professora.
Pessoas como Mara, Gustavo, Lucas, Lia e até mesmo Fábio, que só vai de vez em quando, são os responsáveis por manter as salas de cinema de rua em funcionamento. Preocupados com a sobrevivência desses espaços em tempos de cortes na cultura, os cinco escolhem, ainda que por motivos distintos e com maior ou menor frequência, esse tipo de espaço para seu lazer.
A curadoria dos cinemas de rua segue como principal diferencial, que ao mesmo tempo atrai e afasta parcela do público, mas garante a sobrevivência desses espaços e sua resistência há mais de cem anos — à televisão, à internet, ao streaming e aos blockbusters —, como ícones do cenário cultural da cidade de São Paulo.
Se por um lado a internet representou uma ameaça a estes estabelecimentos no início dos anos 2000, hoje funciona como plataforma para que o público entre em contato com atores e diretores menos conhecidos e tenha a oportunidade de prestigiar seu trabalho nas telas de cinema, frequentemente lotando salas, como nos tempos do precursor Bijou Theatre.