Você já parou para pensar se atletas são artistas? E se artistas são atletas? Para a maioria das pessoas, os feitos de alguns esportistas podem sim ser considerados obras de arte, mas dificilmente a prática de um profissional na música, no teatro ou na dança seria considerada esporte. As relações entre arte e esporte são complexas e se confundem principalmente em modalidades com coreografias definidas, como patinação artística, ginástica rítmica e nado sincronizado. Mas entender como esses campos se aproximam e se afastam é fundamental para analisar seus papéis no entretenimento, na educação e na representação social.
Para compreender as relações entre esporte e arte, é preciso olhar para como esses campos se organizaram na modernidade. Segundo Victor Melo, pesquisador de história e estudos culturais do esporte na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o principal ponto da discussão é lembrar que tanto o esporte quanto a arte são experiências estéticas, ou seja, experiências que mobilizam os órgãos dos sentidos. E não apenas para quem pratica a ação, mas também para quem assiste. “Não é por acaso que a gente chama o público de esporte de torcedor. Ele torce, se contorce, se movimenta. Essa é a principal forma de apreensão do fenômeno esportivo, uma forma sensorial, assim como é na arte”, afirma.
Mesma linguagem, histórias diferentes
Esporte e arte compartilham a mesma linguagem sensória. Com base nessa ideia o esporte seria, então, uma arte de performance. A arte esportiva às vezes tem um roteiro definido, como nas modalidades com coreografia, e às vezes é feita sem roteiro, como no futebol ou no vôlei.
Se esporte e arte compartilham a mesma base estética, por que o esporte não é visto como arte no dia a dia? Victor explica que esse afastamento é uma construção cultural. Segundo ele, uma linguagem estética comum não é suficiente. É preciso considerar a formação desses dois campos na prática. “Quando ocorre a formação do campo esportivo moderno na Inglaterra do século 18, ela ocorre separada do campo artístico. A arte se constitui mais ligada à erudição, enquanto o esporte se constitui mais ligado à cultura popular, de massa. Isso leva a uma aparente separação entre os agentes que frequentam esses dois espaços”, diz.
Apesar da separação dos campos, a presença da arte era forte no início dos Jogos Olímpicos modernos. A ideia era retomar o espírito dos antigos festivais gregos, em que as pessoas se reuniam para participar de competições esportivas, artísticas e cerimônias religiosas, como aponta a pesquisadora Juliana Carneiro em seu artigo O lugar da cultura nos jogos olímpicos.
Nas quatro primeiras edições dos Jogos Modernos, de 1896 a 1908, festividades artísticas já celebravam o evento, mas a arte não era uma parte formal do programa olímpico. Somente a partir das Olimpíadas de Estocolmo (1912) os Jogos tiveram competições tanto esportivas quanto artísticas, e dois atletas chegaram a ganhar medalhas nas duas categorias.
Foram sete edições olímpicas com o modelo de integração entre esporte e arte enquanto modalidades competitivas. A partir dos Jogos de Helsinque (1952), o campo da arte passou a estar presente nas Olimpíadas apenas como exposições e festivais culturais.
Mas, afinal, todo atleta pode ser um artista?
A resposta seria sim e não, a depender de como você aborda a questão. Pensando no uso prático das palavras, atletas e artistas diferem porque a construção social em torno deles é historicamente diferente. Mas, para Victor, um artista pode sim ser atleta e um atleta também pode ser artista. “Há quem diga que o treinamento do atleta é uma diferença. Ora, um grande pianista também treina horas por dia. Todo grande artista treina muito sua execução. Treinamento não é algo que separa”, afirma. No entanto, ele destaca que é importante considerar se a prática corporal que está sendo feita atende a critérios precisos de avaliação de resultados, uma característica típica do esporte.
Victor argumenta ainda que, nas duas áreas, algumas pessoas deixam marcas na história e outras não. Mas aqueles que não se tornam tão reconhecidos como Pelé, Sócrates, Neymar ou Messi não deixam de ser artistas-atletas. O importante é se a pessoa vive aquela experiência como uma experiência artística ou uma experiência esportiva, competitiva.
Apesar da importância da experiência individual, há visões complementares. Luciano Colpas é professor de Educação Física há 20 anos na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, o esporte só é arte quando existe a liberdade de criação, o domínio da técnica e a intencionalidade do movimento. “Dentro de um jogo, posso ter aqueles movimentos burocráticos e posso ter arte também. A criação do jogador pode produzir isso. Mas todos produzem arte? Não. Nem todo pintor pinta bem. Nem todo jogador joga bem. A arte é o fazer bem feito, pra mim essa é a noção do belo”, argumenta.
Além da ação, a inspiração: da arte para o esporte
O entrelaçamento entre esporte e arte vai além da “hora do jogo”. Um campo tem se inspirado no outro há séculos, seja para diversificar os treinamentos ou para representar uma época.
Um exemplo bastante atual é o da patinação artística. Segundo a Confederação Brasileira de Desportos no Gelo, há três mil anos pessoas já patinavam em superfícies geladas, mas foi apenas no século 18 que a arte se combinou aos patins. Algumas décadas depois, Jackson Haines, bailarino e patinador estadunidense, incorporou elementos de balé às suas apresentações de patinação, o que o tornou o “pai da patinação artística”.
No campo esportivo, as primeiras competições da modalidade ocorreram por volta de 1880, com o primeiro campeonato mundial em 1896, na Rússia. Mas a entrada no panteão olímpico ocorreu apenas 12 anos depois, em 1908, nos Jogos Olímpicos de Verão de Londres. O feito se repetiu em 1920, na Bélgica, até que, em 1924, a patinação artística entrou como modalidade na primeira edição dos Jogos de Inverno.
Segundo Simon Adelson, técnico de patinação artística, cada programa de patinação é muito complexo, pois precisa considerar não apenas componentes técnicos, mas também artísticos, como fluidez, performance e interpretação. Para maximizar a qualidade do trabalho, os treinadores procuram aproveitar as habilidades dos atletas e buscar inspiração nos movimentos de outras modalidades de esporte e em práticas artísticas.
O próprio Simon, que patina desde criança, tem formação em educação física e dança, com oito anos de aprendizado junto ao balé de Cuba. “A relação de movimentos entre diferentes práticas é muito forte, principalmente aquelas que envolvem plasticidade, como ginástica artística, artes marciais, capoeira. É muito bonito isso”, afirma.
Ele também considera que o interesse pela patinação artística tem crescido muito no Brasil. Um dos fatores responsáveis pelo crescimento é a facilidade de acesso aos patins in line, que são patins de solo, com uma fileira de rodas em sequência, e que geralmente funcionam como porta de entrada para a patinação. Outros fatores são o aumento das transmissões esportivas dos jogos de inverno, o ambiente refrescante da pista de gelo em meio ao calor tropical, e o destaque de Isadora Williams, patinadora artística que compete internacionalmente representando o Brasil.
Mas a arte também tem um papel importante nesse processo. “Muitos atletas vieram para [a patinação no] gelo devido a filmes que eles viram”, conta Simon. Alguns exemplos citados por ele são as séries cinematográficas Castelos de Gelo (Ice Castles, 1978 e 2010), Um Casal Quase Perfeito (The Cutting Edge, 1992, 2006, 2008 e 2010) e Nós Somos os Campeões (The Mighty Ducks, 1992, 1994 e 1996).
Do esporte para a arte e a política
Além do cinema e da televisão, as artes plásticas e a pintura têm fortes inspirações no campo esportivo. O movimento artístico impressionista, assim como o cubista e o expressionista, se aproximaram da temática esportiva para representar as mudanças de seu tempo histórico. Um caso emblemático é do movimento futurista, vanguarda artística que surgiu na Itália no começo do século 20 e que usava imagens e movimentos de práticas esportivas para se opor à imobilidade que seus representantes viam na arte de sua época.
A adesão ao esporte como modelo também passa pelo seu caráter popular, de mobilizar multidões. Não por acaso, o esporte enquanto prática e representação na arte foi incorporado por movimentos políticos que buscavam a adesão e o controle de grandes massas, como o fascismo e o nazismo. O futurismo foi um desses movimentos muito ligados ao contexto fascista italiano.
Victor explica que as relações entre esporte e política ocorrem porque o esporte é profundamente trabalhado na construção da ideia de nação, já que ele ajuda a reforçar as “comunidades imaginadas”, um conceito do historiador Benedict Anderson. Mas a aproximação com o esporte não é privilégio só de movimentos de direita ou conservadores. Grupos políticos progressistas e revolucionários também se expressam no esporte e a partir dele reforçam suas ideias. “Nenhum artista, nenhum atleta produz fora de seu tempo. Ele pode criticar seu tempo ou tentar apontar um futuro, mas sempre estará imerso nas questões políticas e sociais da época em que vive. Elas sempre interferem na linguagem e na narrativa adotada”, destaca.
Justamente por representar aspectos importantes de cada época, o esporte deve ser entendido além da experiência corporal. É preciso olhar para as relações políticas, sociais e econômicas que estão por trás do contexto esportivo, pois ele é um reflexo da sociedade em seus problemas e avanços.
O papel da educação nas relações entre esporte e arte
Uma visão mais completa e diversificada do esporte é o objetivo da educação física atualmente. Por muito tempo, o ensino das práticas corporais nas escolas ficou restrito a ensinar a jogar. E até o jogar era pouco diverso: futebol, vôlei, basquete e handebol dominavam as quadras escolares.
Luciano Colpas, em suas duas décadas de experiência como educador físico na Escola de Aplicação, acompanhou as mudanças nesse cenário. Ele explica que durante muito tempo a Educação Física foi pautada pela proposta da ditadura militar brasileira, que tinha o objetivo de fortalecer fisicamente a classe trabalhadora e reforçar o tecnicismo. Mas desde a década de 1990 essa visão tem sido questionada. A educação física passa, então, a se estabelecer como ciência e como um espaço para explorar práticas corporais diversas.
Seguindo essa nova proposta, o currículo da Escola de Aplicação passou a incluir atividades de luta, ginástica, atletismo, danças tradicionais, danças contemporâneas e brincadeiras corporais, além dos jogos que já eram trabalhados antes. Em cada uma das práticas, Luciano considera fundamental ensinar a fazer movimentos conscientes e bem executados, mas também refletir sobre aspectos sócio políticos, econômicos, culturais e artísticos.
O projeto Futebol Arte, coordenado pelo professor, tinha como premissa o respeito à criação do outro. A proposta era trabalhar a ética coletiva e a criatividade. Por isso, nenhum estudante do projeto podia fazer uma falta intencional. Por mais que as faltas estejam previstas nas regras do esporte, com penalizações definidas com base na severidade, qualquer jogador que rompesse de forma violenta o movimento criativo do colega era penalizado com a retirada de campo. “Sempre falo para meus alunos: quando um artista faz uma obra, uma exposição, as pessoas não vão lá riscar, jogar no chão, destruir. Há uma preservação da criação. Aqui também não se pode romper a arte de outro jogador”, relata.
Formar pessoas com esse novo olhar para o esporte exige conhecimento e espaço físico adequado. Assim, trocar experiências de ensino, manter-se atualizado e ter uma rede que permita a prática e o debate de atividades diversificadas faz diferença. Ele conta que a Escola de Aplicação tem uma salão liso, com espelhos, onde os estudantes podem verificar a beleza e precisão de seus movimentos. A ligação com o Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPEUSP) também abre muitas portas para o contato com a realidade de outras modalidades como tênis, remo e rúgbi.
“Tenho colegas que passam metade das aulas [de educação física] tentando separar brigas dos estudantes. Como você discute a estética do esporte, a arte, o feminismo, a homofobia? O contexto de violência é grande. Antes é preciso ensinar o diálogo no dia a dia”, questiona Luciano.
Mesmo com os desafios de cada realidade escolar, o esporte e sua relação com a arte são um caminho para ampliar os horizontes da experiência como atleta, público, artista e cidadão imerso em um contexto histórico. Um caminho cheio de beleza, movimento e, claro, muita emoção.
Excelente reportagem!!! Passei p os alunos do Ensino Médio é Fundamental da Escola Estadual Ernesto Monte Bauru. Parabéns!
Excelente abordagem. Parabéns.