Quase que no mesmo momento em que a pandemia do novo coronavírus surge, pensa-se em vacina, pensa-se em uma saída e, principalmente, em quanto tempo ela chega. Os profissionais engajados para que isso aconteça também almejam a realização de uma campanha de vacinação bem feita, vacina para todos e uma população imunizada. Existe, inclusive, um sentimento de gratidão e orgulho em participar da realização do que vem a ser a saída desses tempos de instabilidade emocional, sofrimento e muito luto. É uma pena, no entanto, que a saída também cause instabilidade emocional nos que trabalham para a volta de um mundo em que podiam se ver sorrisos nas ruas.
Por dentro de um polo de vacinação contra Covid-19 no estado de São Paulo, converso com colegas de trabalho sobre suas experiências durante a campanha de vacinação, o quão diferente é um trabalho como este e o que acontece antes, durante e depois da tão sonhada furadinha contra o coronavírus. Também explico, aqui, um pouco da dinâmica de um polo de vacinação e o que trabalhar nesse momento nos traz.
O polo de vacinação e a dinâmica de trabalho
Às 7h da manhã, os funcionários começam a chegar e bater o ponto. Só retornarão a esse relógio às 19h. As vacinas, por questões de segurança e armazenamento, não ficam no ginásio de esportes — um dos sete locais escolhidos no município* para a realização da vacinação — chegando, então, pouco antes das 8h, escoltadas pela guarda municipal. Os horários são marcados por conta da pouca disponibilidade do imunizante. Isso não impede que muitas vezes, os pacientes cheguem antes mesmo dos funcionários, cientes de que seu agendamento é para um período posterior. Em um de meus primeiros dias, foi única a minha surpresa ao chegar às 6h45 e encontrar um senhor, do lado de fora, aguardando sua vacina em uma manhã fria e cheia de neblina. Isso porque, com a frequência desses encontros, fica difícil continuar a se surpreender.
É completamente compreensível a ansiedade de ver o momento de receber sua boa dose no braço se aproximando, e qualquer pessoa que esteja no polo de vacinação percebe isso às oito badaladas, quando os pacientes entram para preencher a ficha que precede a vacinação.
Os pacientes, ao chegarem, são primeiro atendidos por um recepcionista. Em casos de superlotação, alguns cidadãos esperam na arquibancada, enquanto outros, dentro da quadra, em bancos trazidos de UBS´s. O profissional lhes entrega uma senha e um termo de consentimento. Neste são perguntados nome, data de nascimento, se existiu, nos últimos três dias, sintomas de febre ou gripe, alergia a alguma outra vacina, entre outros. Na mesma folha, um pequeno texto que não chega a um terço de página, ignorado pela maioria, explica, entre algumas dúvidas frequentes, que a vacina não pode ser escolhida e apresenta as que podem estar disponíveis no dia. Atrás, exigindo uma assinatura, há uma declaração de que a aspiração do imunizante no frasco foi presenciada, e não é espantoso que ela chegue assinada antes mesmo que qualquer procedimento seja feito.
Assim que a senha é chamada no painel, o paciente vai de número a Ser. As condutas seguidas no computador envolvem checar o agendamento, agendar a segunda dose, confirmar idade ou, em caso de comorbidade, verificar se os documentos apresentados são verídicos e estão dentro da validade. Não é incomum surgir receitas que excedam o prazo estabelecido ou tentativas de se vacinar por parte de quem não se encaixa no quadro de comorbidades. Em casos muito mais raros, aparecem receitas falsas ou adulteradas.
Depois desse atendimento, o paciente aguarda para receber o imunizante e mais tarde, passa mais uma vez pela administração, onde a confirmação de sua dose será encaminhada para o estado, que garantirá, a partir daí, o envio da segunda dose na data agendada.
Quando, no estacionamento do ginásio, durante o horário de almoço, pergunto para Paloma, 20, qual a importância deste momento para ela, ouço o que se espera de um profissional de saúde na linguagem de uma jovem: “é muita né, porque o povo não toma cuidado na rua então você tem que prevenir de algum jeito. Porque você pelo menos, você se cuida, mas o outro não cuida de você né, então é cuidado tanto para você quanto pros outros”
Paloma é uma jovem de baixa estatura, animada e disposta, com um tom de cabelo que varia entre o laranja e o ruivo. Vem de uma família de enfermeiros e entrou recentemente no mundo da enfermagem, terminou o técnico há um ano. Ela me conta que, dependendo do dia, vacina entre 200 e 300 pessoas e passa a maior parte do plantão de 12 horas em pé, parando somente durante sua hora de almoço. Quando a entrevista foi feita, o plano de vacinação de São Paulo ainda não tinha sido antecipado. Hoje, a média de agendados mais que triplicou.
A jovem, apelidada de “chaveirinho” pelos colegas de trabalho, me conta, com brilho nos olhos, como se sentiu ao saber que trabalharia na vacinação: “eu pensei ‘nossa vacinar a população, tentar sair desse caos todo.’” Mas se pergunto quanto a hoje, se ainda existe esse sentimento de admiração e orgulho, ela responde rindo: “tem alguns momentos que sim, mas tem outros que não porque o povo é muito grosso, né.” Paloma me diz que, não raro, pessoas perdem o foco na vacinação enquanto concentram-se em tirar fotos e, ao final, indagam se foram mesmo vacinadas. “Tipo, um exemplo foi uma moça que eu vacinei, eu mostrei o frasco, [mostrei] aspirando, na frente dela, apliquei e depois ela disse que não viu e que não tomou a vacina. E ficou me olhando feio ainda! E eu fiquei em choque.” A técnica ainda relata que, nesse momento, estavam apenas as duas no box — a sala de vacinação improvisada — e que por isso ninguém poderia testemunhar a seu favor.
O correto é que dois técnicos se auxiliem em um mesmo box para evitar os conflitos que envolvem vacinar contra a Covid-19. Não é estranho que o intervalo de tempo em que a técnica se viu sozinha tenha sido o suficiente para que o episódio supracitado achasse seu espaço para acontecer.
Pode ser o fascínio que mantemos em comum com as mariposas por luzes e telas brilhantes, ou o tempo que se passa em casa na pandemia, e que faz com que o contato seja com um aparelho. Quem sabe se não é por você ser um dos poucos que, contra o desejo da União, conseguiu se vacinar. Ninguém pode dizer que não é a felicidade de receber uma dose de esperança no braço. O fato é que a nova cor da moda é o verde da carteirinha de vacinação e, em alguns momentos, registrar sua chance parece mais importante do que vivê-la, o que não ajuda os profissionais nem os pacientes.
“Funcionária Pública não tem direito de imagem”
“Já era um sonho para mim, não tinha nem ainda sido aprovada nenhuma vacina e eu falava pro meu esposo, pra minha família ‘nossa, eu queria muito trabalhar na vacina da Covid’”. Cláudia**, 26, informa que o trabalho não é perfeito como havia imaginado. “A gente tem muita dificuldade, muita desconfiança da população por conta do que aconteceu de doses não aplicadas e tudo mais. Tem todo um estresse porque também tem burocracia né, essa vacina é muito importante então gera-se toda uma ansiedade em volta dela.”
Cláudia também é técnica e aperfeiçoa-se mais na profissão à noite, quando se dedica a faculdade de enfermagem. Mostra amar seu trabalho, dentre algumas outras formas, através dos divertidos e sempre harmoniosos pijamas cirúrgicos, que usa por mais de 12 horas. Trabalha com entusiasmo e faz questão de que os pacientes saiam sabendo de tudo o que precisam sobre a vacina. Mas me conta que esperava um outro cenário, com mais doses disponíveis e uma estrutura melhor.
O estresse e a ansiedade de que ela fala são percebidos por todos os funcionários com os quais conversei, da administração ao operacional, e segundo a técnica, são muito levados à sala de vacina. Quando pergunto sobre a exaustão recorrente aos técnicos e enfermeiros, ela me diz que o sentimento é resultado do desrespeito ao espaço do profissional. Concorda que fotografar a vacinação pode ser legal, mas que “falta respeitar o profissional que trabalha o dia todo para que isso aconteça”.
Assim como Paloma, Cláudia comenta o desconforto de, além de receber o paciente na sala de vacinação já sendo filmada, explicar e executar todo o procedimento sem receber atenção. E lidar com isso pode se tornar muito sério e estressante, como na lembrança de Paloma.
A estudante e técnica se recorda de escutar “funcionária pública não tem direito de imagem”, ou menções à posse da imagem de profissionais, algumas vezes, o que me fez lembrar de já ter escutado “tá na constituição que eu posso filmar vocês” algumas outras. Ela imagina ainda algumas razões para isso; “tem uma questão política envolvida e você traz opiniões”, referindo-se a ‘sommeliers’ de vacina e orientações políticas que levam alguns pacientes a exprimir “eu não vou tomar a vacina do Dória”, por exemplo, e ainda menciona a quantidade de fake news e desinformações. Também diz se sentir ofendida com comentários diretos ou sutis a respeito de desvio de doses por parte dos profissionais.
É incontestável que desvios estejam mesmo acontecendo e em um momento como esse, de tanta angústia e desassossego, é fácil esquecer-se de que o outro também é gente, também está com medo e só quer que as coisas deem certo. De um lado, o paciente desconfia dos funcionários. Do outro, os funcionários, do paciente. São dois estranhos que precisam um do outro, da vacina, de respeito e respeitar. São dois estranhos que mesmo vivendo o mesmo momento dramático, não se reconhecem.
Cláudia entra em um assunto muito presenciado pelos agentes administrativos: os escândalos quando alguém não consegue se vacinar por não ter feito o agendamento ou por não atender ao protocolo.
De início, fui encaminhada para trabalhar em um polo de vacinação localizado em um bairro mais central da cidade e, consequentemente, mais procurado pela classe média alta. Lá, não contávamos um dia em que não fosse escutado “você sabe quem eu sou?”, “vocês estão me negando vacina!”, “eu vou ligar para o prefeito!”, entre algumas outras “carteiradas”. Nada se pode fazer, em situações como esta, além de explicar que a vacina não se compra ali e que todos, independentemente do sobrenome, são iguais. Não são escolhidos pelo vírus e nem por nós. Isso não significa que ameaças não sejam feitas aos funcionários e que, rotineiramente, o cansaço mental supere o físico.
Fazer este trabalho, colaborar por um suspiro de alívio é indefinidamente gratificante e, apesar de ser pesado algumas vezes, é trabalhar com a esperança.
Shirley, de 22 anos, não compreendeu de início a importância de seu trabalho. Me conta que o reconhecia como qualquer outro e que só depois se “ligou” da importância. A jovem de cabelos curtos e cacheados é agente de administração pública, carrega ao todo quatro anéis de coco nos dedos e responde sempre com gírias soltas. Suas atividades envolvem agendar e checar se o paciente está apto a se vacinar. Hoje, ciente da relevância do que faz, encara o trabalho como “um pontinho de esperança, sabe? Meio que a salvação da humanidade, literalmente”. Shirley percebeu o valor do que fazia através das demonstrações de gratidão dos pacientes, e diz que só vê a exaustão do trabalho quando, seguindo ordens, é confrontada por pacientes por não poder agendá-los ou encaminhá-los à vacinação, quando eles não atendem ao protocolo. “O pessoal não entende que as coisas são burocráticas mesmo, mas não é minha culpa. Depende de toda uma hierarquia do rolê, que não cabe a mim resolver”.
Apesar disso, assim como todos os entrevistados, Shirley entende os motivos pelos quais atende pessoas com tanta raiva e ansiedade. É muito provável que, em uma outra conjuntura, com vacina para todos e menos desinformação — que circula como mera opinião — não teríamos de explicar por que alguém não pode se vacinar hoje ou que, nesse momento, não existe vacina melhor que outra. Em um outro cenário, não teríamos de explicar que é preciso voltar para tomar a segunda dose, ou não será efetiva a eficácia que a vacina pode garantir; que a dose não te livra de usar máscara e que não é a primeira coisa que se usa da China.
O que a gratidão de trabalhar na vacinação da Covid-19 cobre?
Foi unânime, assim como os desabafos de esgotamento, as lembranças de afeto e agradecimentos. Paloma sorriu quando se recordou dos que riem e agradecem, se emocionam e reconhecem seu trabalho. Cláudia, apesar de não ser religiosa, sentiu e foi marcada por um senhor que jurou rezar por ela. Shirley não esquece de quando quase chorou com uma senhora contando sua emoção de se vacinar uma semana depois do falecimento de sua filha que contraiu Covid trabalhando na linha de frente em um hospital.
Já recebemos lembrancinhas e até uma caixa de abacates do sítio de um paciente, mas o que marca, verdadeiramente, são as emoções. E já não falo mais das ruins. O Esquecer que o outro é como você acaba quando ele te conta, em meio a lágrimas, que não acredita que chegou a sua vez e que pode seguir mais esperançoso mesmo que tenha perdido alguém que poderia estar ali sorrindo com ele.
Não uma ou duas vezes, escutei soluços abafados pelo pano, enquanto direcionava alguém para a sala de vacinação. Quando soube que trabalharia na vacinação da Covid, eu me emocionei. Toda vez que colocava a minha letra na carteirinha de vacinação de alguém eu me sentia mais próxima do que é permitido agora. A gratidão de trabalhar com a vacinação neste momento não cobre muita coisa, mas não deixa de existir.
* O município não é revelado por escolha da repórter, por se tratar de uma reportagem envolvendo funcionários públicos.
** Alguns nomes foram alterados a pedido dos entrevistados.
Adorei a matéria! Super pertinente a época que vivemos e apresenta uma visão pouco conhecida pelo público. Parabéns Beatriz.