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A humanização em postos de saúde

Como atendimentos a longo prazo e a coletividade contribuem no tratamento da população

O senso comum diz que o setor privado, com convênios caros e atenção individualista, garante um melhor bem-estar físico e mental. Mas segundo uma pesquisa da Datafolha de 2018, 77% dos entrevistados aprovam o Sistema Único de Saúde (SUS). Talvez o senso comum deva ser revisto considerando o tanto que o SUS, a sua atenção primária e Unidades Básicas, contribuem para a vida da população.

A Unidade Básica de Saúde (UBS), o conhecido “postinho”, está na base desse sistema e é onde mais se destaca. De acordo com o Portal Brasileiro de Dados Abertos, “o objetivo desses postos é atender até 80% dos problemas de saúde da população, sem que haja a necessidade de encaminhamento para hospitais”.

Tal estrutura começou a ser pensada na década de 70 quando grupos sanitaristas se uniram para criar uma nova forma, mais humanizada, de proporcionar a saúde e para elaborar um sistema público que atendesse a todos. Fundado em 1988 na redemocratização, o SUS foi o resultado natural desse processo e trouxe o princípio da saúde como direito universal para o Brasil.

Três décadas depois, em uma pesquisa realizada pela Datafolha em 2018, encomendada pelo Conselho Federal de Medicina, o SUS foi bem avaliado pela população. Dos entrevistados, 97% procuraram o serviço entre 2017 e 2018 e 77% classificaram o sistema como Excelente/Bom/Regular. A maior procura foi por vacinas e postos de saúde.

Mas uma coisa é falar em histórico, números e porcentagens, outra coisa é ver o funcionamento na prática. Procurei uma UBS plenamente funcional para usar como exemplo do cuidado em ação.

 

O Real Parque

Localizada na Avenida Barão do Melgaço, a Unidade Básica de Saúde do Real Parque atende a população do bairro de mesmo nome, parte do Morumbi, parte do Jardim Panorama e da comunidade indígena dos Pankararu que mora em São Paulo. Aliás, é devido à demanda Pankararu que essa UBS existe para começo de conversa. Houve a cobrança com o subsistema de saúde indígena no SUS para criação da UBS e posterior expansão para a população não indígena.

A equipe é formada por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, farmacêutico, serviço social, psicólogo, dentista, auxiliar de dentista e Agentes Comunitárias de Saúde (ACSs), além, claro, da parte administrativa. Apesar da área física pequena, o Real Parque atende uma grande população e tem diversos grupos coletivos para o cuidado para além da medicação.

 

O acolhimento e a longitudinalidade

“No Real Parque em especial a gente trabalha com um território bem heterogêneo”, conta a enfermeira Catiane Alves de Moura. De acordo com ela, as unidades de atenção primária costumam ter características bem diferentes de um território para o outro. “No Real Parque, a gente tem consolidada uma equipe indígena, uma equipe de estratégia e a gente tem uma área posto, que é uma área que ainda não foi privilegiada pela conquista da estratégia.”

Segundo a enfermeira, o Real Parque funciona com um sistema de referência em que cada população tem os profissionais de saúde responsáveis por ela. Deste modo, preferencialmente, eles serão atendidos pelas mesmas pessoas. Isso garante a longitudinalidade, ou seja, o segmento do cuidado a longo prazo.

Já para as áreas ainda não completamente organizadas dentro do sistema de saúde, como parte da comunidade Jardim Panorama, o Real Parque oferece o “acesso facilitado”: há um acolhimento inicial, com uma escuta qualificada para determinar qual o melhor atendimento, seguido da consulta em até dois dias e depois a pessoa é encaminhada para um segmento.

Este pode ser dado em retornos na própria unidade, em visitas domiciliares (dependendo da situação do indivíduo) ou ainda em grupos promovidos pela UBS. A escuta qualificada é o que determina quais indivíduos podem esperar (uma vez que suas demandas não são de urgência) e quais devem ser atendidos mais rapidamente.

Os Agentes Comunitários de Saúde se encarregam de reconhecer as vulnerabilidades e demandas que não chegam à UBS. Eles são, em sua maioria, mulheres e moradoras da comunidade. “São os olhos que a gente não tem lá.”  Catiane as descreve: “Elas estão mais próximas, entendem melhor a dinâmica e fazem visitas”. As ACSs visitam parte da população e reconhecem pessoas que precisam de um atendimento diferenciado (como pessoas acamadas que precisam de visitas domiciliares) ou que ainda não foram acolhidas pela UBS (por exemplo, gestantes que ainda não começaram o pré-natal).

O acolhimento é o início da atenção primária da saúde (conhecido entre os profissionais pela sigla APS). É o primeiro e principal contato que um indivíduo tem com o SUS, independente de ocorrer espontaneamente ou por intermédio de uma ACS.  A residência médica especializada em APS se chama “Medicina de Família e Comunidade”. O objetivo é dar um seguimento ao cuidado daquela pessoa e preferencialmente de sua família também. Muitas das demandas e queixas referentes à saúde podem e devem ser resolvidas no âmbito da atenção primária. Há um acolhimento específico para cada população, a fim de garantir um seguimento a longo prazo.

O Real Parque tem a grande peculiaridade de atender uma comunidade indígena. A médica de família e comunidade, Viviane da Silva Freitas, comenta que esse território é identitário, não é um território físico circunscrito, devido às particularidades da tribo. Há profissionais voltados para atender os Pankararu, assim com uma ACS específica para essa população. Em Abril, houve eventos na UBS celebrando o mês indígena. “É um jeito de mostrar para a comunidade quem são os Pankararu, falar um pouco de saúde indígena, falar de indígenas. No Brasil está se falando muito mal deles.” Entender e atender essas demandas são o que fazem o Real Parque ser uma referência.

 

Relação com os profissionais de saúde

Após o acolhimento, a formação de vínculo entre o indivíduo e o profissional de saúde é fundamental. O sistema de referência mencionado é o primeiro passo para isso, uma vez que a pessoa sempre veria os mesmos profissionais.

Catiane conta como o seguimento a longo prazo ajuda a criar o vínculo. Com o tempo, isso permite que a pessoa se abra sobre suas queixas ou que o profissional perceba os problemas. Muitas vezes uma queixa repetida pode ser sinal de uma doença mais grave ou de um sofrimento emocional que o indivíduo busca resolver.

Ao conversar com a médica residente de família e comunidade, Heloana Aparecida Jacinto Marinho, outras formas de criação de vínculo ficam mais evidentes. “É diferente quando você conhece a pessoa pelo nome, sabe de tudo da vida dela e ela também sabe da sua.” Para ela, os diagnósticos ficam mais em perspectiva quando se conhece a dinâmica da pessoa e da família. Esse contato constante e o vínculo são fatores que protegem os pacientes, algo que diminui a chance de diagnósticos precipitados e a possibilidade de dar condutas que poderiam causar malefícios. A residente cita o exemplo de uma dor de cabeça tensional que não necessita de uma tomografia para ser diagnosticada, pois o profissional de saúde conhece a dinâmica familiar e sabe que estão em um período de estresse.

De acordo com ela, a atenção primária, aliada a programas sociais, reduziu a mortalidade materna e infantil. A médica residente ressalta como boa parte das questões de saúde são tratadas no âmbito familiar e que às vezes mal aparecem nas consultas. É o respeito à pessoa e o vínculo que trazem mais dessas questões à tona, nem que seja apenas para registro. Isso é importante para observação do indivíduo em si que, em alguns casos, pode ter padrões que precisam de mais atenção ou de um tratamento específico.

 

Coletividade e o indivíduo

Além de olhar para a individualidade e para a família, a UBS e a atenção primária tem um foco grande na comunidade. A coletividade e o contato com outras pessoas são estimulados, muitas vezes, como parte importante e imprescindível do processo de cura.

Catiane destaca como isso não significa ignorar a individualidade de cada um, mas abandonar o individualismo e perceber como a pessoa está integrada à comunidade de diversas maneiras. “Quando a gente trabalha no coletivo, nós não deixamos de entender o sujeito como único, mas a gente entende que ele é único no meio de algo.”

Na década de 70, durante a concepção do sistema, as ideias para essas práticas coletivas foram levantadas. Em 1988, na criação do SUS, elas foram implementadas de maneira informal. No ano de 2006, essas atividades foram formalizadas. Doze anos depois (2018), foram expandidas.

São as chamadas Práticas Integrativas e Complementares. Conhecidas como PICs, formam grupos de pessoas com sintomas semelhantes e aos quais são oferecidas um grupo de discussão e tratamento. Alguns desses grupos podem se assemelhar à ideia pré-concebida de terapia em grupo, mas outros, como o grupo de acupuntura no Real Parque, são específicos daquela região e para aquela população.

Na UBS do Real Parque, alguns desses grupos incluem:

  • Grupo de cessação do tabagismo;
  • Grupo de Mulheres (com foco em saúde mental);
  • Grupo do Homem (um grupo que, curiosamente, se reúne em um bar, mas que mostra bons resultados para a saúde dos membros);
  • Grupo de adolescentes (um grupo com foco em saúde mental, discussões sobre automutilação e suicídio que os jovens não têm em outros lugares);
  • Grupo de saúde dos trabalhadores (para cuidar da saúde mental dos trabalhadores da própria UBS);
  • Grupo de artesanato;
  • Grupo do chá (um grupo com práticas de fitoterapia);
  • Grupo de acupuntura;
  • Grupo de Lian Gong (prática corporal chinesa).

Outras UBSs podem oferecer outros tipos de grupos, todos preconizados pelo SUS.

Catiane tem formação em auriculoterapia (acupuntura com a aplicação de sementes no pavilhão auditivo) e Viviane em acupuntura (a versão tradicional com agulhas). Juntas, elas coordenam o grupo de acupuntura. A enfermeira brinca que os médicos “receitam” o grupo para os pacientes.

“Todas essas práticas integrativas é a pessoa que se cura. O máximo que a gente faz é agulhinha, aurículo, que ajuda no processo”, conta Catiane. “As práticas promovem muitos ambientes coletivos. A gente tem pacientes que são atendidos no individual, mas o que a gente atende mais e tem melhores resultados são os grupos.” Viviane completa: “É um grupo que proporciona um vínculo entre as pessoas”. A médica fala sobre “desmedicalizar o sofrimento” através dessas práticas e desse contato.

Catiane conta o caso de uma senhorinha de 70 anos que se tornou uma terapeuta popular no grupo. Ela teve a iniciativa de procurar exercícios de alongamento no YouTube, passou a praticar em casa e a ensinar para o grupo antes dos agulhamentos. A senhora pode não saber os termos técnicos para os movimentos, mas os exercícios possibilitam uma maior aproximação do grupo, tanto que de uma outra mulher pediu para a senhorinha ir na casa dela ajudar com os alongamentos.

A enfermeira também comenta como os grupos podem ser um ambiente de socialização. Um exemplo disso é um senhor que vai em todas os encontros do grupo. Após os agulhamentos, quando os integrantes já estão liberados para ir, ele fica acompanhando as conversas. “Ele pode não se expressar muito verbalmente, mas aquele é um espaço que proporciona algum contato com outras pessoas”, relata Catiane.

Esses podem ser exemplos anedóticos, mas mostram como a coletividade ajuda as pessoas no processo de cura.

As PICs do Real Parque começaram com o oferecimento por parte dos profissionais. Com tempo e paciência, a população foi entendendo como funciona e aderindo. Alguns são grupos abertos em que qualquer um pode participar; outros tem vagas limitadas, a demanda é grande e nem sempre é possível atender todos ao mesmo tempo.

Uma das diretrizes do SUS é a formação de recursos humanos: profissionais que possam atender ao sistema. Trata-se do treinamento, desde a formação, dos futuros profissionais para melhor atender a população. Atualmente, no Real Parque, passam alunos da graduação de Medicina e de Enfermagem da USP, residentes em Saúde Indígena, residentes em Medicina de Família e Comunidade e residentes de Psiquiatria.

Heloana está a pouco mais de dois meses na unidade, mas conta como sua experiência no Real Parque tem garantido um grande aprendizado: “Eu aprendo bastante a como ter uma atitude mais de ouvir, de humildade”.

 

Em defesa do SUS

Catiane reconhece que há limitações, como falta materiais e profissionais. “Por exemplo curativo: nem sempre recebemos tudo que é preciso para fazer o melhor tratamento possível para feridas crônicas. Mas a gente consegue dizer o quanto precisamos, há insumos para os materiais e a secretaria fornece o que é pedido.” A enfermeira cita o exemplo da vacinação contra febre amarela, que não só nunca faltou no posto, mas também faz do Real Parque um centro de referência.

“Comparativamente, o SUS gasta menos para atender mais gente numa lógica que é menos mercadológica do que o sistema privado”, afirma Heloana. A residente considera que o Real Parque é bem aceito pela população e tem bons resultados, mesmo que isso não seja evidente em números de atendimentos ou número de pedidos de exames. “O mais interessante é propor um jeito de olhar a pessoa e a saúde da comunidade de uma forma mais ampliada. Ali, as pessoas acham que vão ser bem acolhidas em suas demandas.

 

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