Jornalismo Júnior

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Observatório: Os escândalos que assombram a Igreja

Compreenda o histórico de abusos sexuais e as medidas adotadas pelo Vaticano

Entre os dias 21 e 24 de fevereiro deste ano, o Papa Francisco convocou 180 bispos e cardeais para discutir, pela primeira vez na história, os seculares abusos sexuais cometidos pelos representantes da Igreja Católica Romana. A cúpula se deu após uma série de casos de pedofilia terem eclodido na mídia mundial.

O principal escândalo ligado à Igreja envolveu 685 representantes clericais e mais de mil vítimas. Tudo veio à tona quando, em agosto de 2018, após dois anos de investigação, a Suprema Corte da Pensilvânia revelou mais de 300 padres abusadores. O documento também relata casos que ocorreram há 70 anos e que foram acobertados pelo Vaticano e pelas autoridades civis. O relatório revela que, para encobrir os sacerdotes, Roma os transferia para outras dioceses e os colocavam em funções paroquiais mais neutras.

Quanto a essa negligência da Igreja, o Papa Francisco se pronunciou: “Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial assumimos que não soubemos estar onde tínhamos de estar, que não agimos a tempo reconhecendo a magnitude do dano que estava sendo causado em tantas vidas”.

Com a visibilidade desses crimes, várias vítimas se sentiram estimuladas a compartilhar suas histórias, bem como a denunciar seus agressores. Jim Vansickle,  revelou ao El País: “Revivi durante uma semana esses 37 anos de silêncio e frustração e decidi que tinha de ajudar esses meninos, é o que fiz de mais difícil na vida. Em março, saí e contei minha história”.

Os casos de abuso sexual também tiveram grande ocorrência na América Latina. Em julho do ano passado, o Ministério Público do Chile revelou ter investigado 158 pessoas ligadas à Igreja Católica. As ocorrências iniciam-se em 1960 – foram cerca de seis décadas de silêncio por parte do clero.

A ocorrência que teve maior repercussão foi a de Fernando Karadima, sacerdote com grande influência no país. Em 2004, uma de suas vítimas, James Hamilton, denunciou seus abusos, que duraram 20 anos. A Igreja o ignorou. Seu caso veio a público em 2009, após o divórcio da vítima e, somente em 2011, o padre foi julgado pela instituição, com outras graves acusações.

O Papa Francisco escolheu como bispo de Osorno, em 2015, Juan Barros. Ele foi formado por Karadima, e as vítimas do sacerdote revelaram que Barros era seu cúmplice. Porém, o Pontífice ignorou a ligação entre eles e em discurso aconselhou aos religiosos da cidade chilena: “Pensem com a cabeça e não se deixem levar por todos esses esquerdistas, que foram os que armaram essa coisa toda”.

A fala do Papa revoltou a população e levou a uma série de protestos no país. Em abril do ano passado, o Pontífice admitiu:  “No que me diz respeito, reconheço e quero que transmitam fielmente que cometi graves equívocos na avaliação e percepção da situação, especialmente por falta de informações fidedignas e equilibradas. Desde já peço perdão a todos aqueles que ofendi”.

Em maio de 2018, todos os bispos do Chile apresentaram renúncia ao Papa.

Em Santiago, protestos contra Juan Barros. [Imagem: Reuters]

O encontro de fevereiro ficou no âmbito mais teórico, com os representantes da Igreja se posicionando contra os casos de assédio e prometendo combatê-los. Ao seu fim, o arcebispo de Brisbane, Mark Coleridge, disse: “Nós não vamos continuar a impunidade. […] no abuso e na sua ocultação, os poderosos [do Vaticano] se mostram não como homens do céu, mas como homens da Terra”.

Em contraste, Alessandro Battaglia – vítima de abuso – pronunciou chorando: “Não ouvi nada de concreto, eles é que nos destruíram. Não foi suficiente, não estamos satisfeitos.”

Após a cúpula, o Papa emérito, Bento XVI, escreveu uma carta aberta – com a autorização do pontífice atual – na qual aponta a Revolução de 68 e a educação sexual como as principais causas dos abusos presentes na sociedade, incluindo na  Igreja. Por meio de sua escrita, ele ignora todos os casos de pedofilia que ocorrem desde a Idade Média, além de colocar os membros do clero como vítimas.

O alemão também escreve: “As roupas da época provocavam igual agressão, as principais escolas tiveram que mudar os uniformes para facilitar o clima de aprendizado”. O que culpa a vítima pelo o ato de violência, como se a vestimenta da pessoa pudesse justificar uma agressão sexual.

Celibato: o (não) dogma

Alguns fiéis culpam o celibato pelos escândalos. O livro Youcat, (abreviação de Youth Catechism), – que tem o intuito de apresentar a doutrina da Igreja em linguagem acessível – explica que celibato é renunciar ao casamento e à vida em família. “Bispos e padres devem viver como Jesus: Jesus não se casou. Ele viveu apenas para Deus e para servir as pessoas”, sendo esta também a missão dos clérigos.

Cardeais e bispos reunidos na Praça de São Pedro. [Imagem: Alessandra Benedetti/Corbis: Getty Images]

Originalmente, os primeiros sacerdotes católicos não precisavam ser celibatários. Raphael Felipe, seminarista e  estudante de teologia, explica em entrevista à Jornalismo Júnior que o celibato passou a ser obrigatório no Concílio de Trento (Concílio da Igreja em resposta à Reforma Protestante) somente no século 16.

“Antes do Concílio de trento, havia uma questão muito grande na Igreja. Por exemplo, o Padre ele tinha sua esposa e seus filhos, e quando ele morria, a esposa queria ter os direitos da Igreja, os filhos queriam tomar posse da vida da comunidade, atrapalhava o outro padre a chegar. Fora que os compromissos familiares ficavam intercalados com os compromissos paroquiais do padre”, diz Raphael sobre o histórico do celibato

Ele também comenta que todo religioso que se consagra dentro da Igreja Católica é chamado ao celibato: “Tanto para o padre, quanto para a freira. Na Igreja Latina, que é a Igreja Católica Apostólica Romana, ele é obrigatório pelo código de Direito Canônico.”

Sobre celibato, Maria Elza, freira da Comunidade Irmãs Sacramentinas de Bérgamo, comenta em entrevista à Jornalismo Júnior:

“É um compromisso que os sacerdotes livremente assumem. […] é vocação, não um chamado a uma vida infeliz; irrealizada; amargurada. Se um celibatário não está bem na sua opção, acho que é necessário fazer um discernimiento e repensar a própria opção de vida. Para mim, o celibato  é uma possibilidade de entrega total ao serviço do próximo.”

Vale ressaltar que o celibato clerical não é um dogma – coisas que a Igreja considera “verdades absolutas”, pontos fundamentais e indiscutíveis de sua fé, que não podem ser modificados – mas um regulamento da instituição, como a própria já havia admitido e como afirmou o Papa Francisco em conversa com jornalistas em 2014: “O celibato não é um dogma de fé; é uma regra de vida que eu aprecio muito e acredito que seja um dom para a Igreja. Não sendo um dogma de fé, sempre temos a porta aberta. Neste momento, contudo, não temos em programa falar disso”.

Para Raphael o celibato “não é motivo para escândalo, não é motivo para fundamentar pedofilia, porque pessoas casadas também praticam isso. Quantos e quantos casados que dão escândalos, que cometem pedofilia?”.

[Imagem: Gerald Herbert – AP]

Na cúpula de frevereiro, alguns bispos e meios de comunicação conservadores culparam a homossexualidade pelos abusos clericais. Hans Zollner, membro da comissão de proteção à criança do Vaticano defendeu que abuso “pode ser heterossexual ou homossexual” e que “o maior problema é o poder”.

A fala do religioso traz uma questão que está ganhando adesão: que escândalos sexuais de membros do clero são casos de abuso de poder. O Papa Francisco é o primeiro a tratar esses escândalos dessa forma. Isso também colabora com o discurso daqueles que são contra o celibato. Ao posicionar o padre como “casado com Deus”, o celibato o aproxima à figura divina.

Nelson Giovanelli, responsável brasileiro junto ao Vaticano pela Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, revela à Jornalismo Júnior que o abuso sexual se configura como abuso de poder, já que o sacerdote faz “o uso dessa autoridade para benefícios próprios, no caso, para um prazer sexual”.

Os filhos do pecado

Outra questão a ser discutida é quando os escândalos resultam em filhos. Alguns deles são consequências de abusos, mas há também aqueles que nascem de relações consensuais. Essas pessoas sempre foram silenciadas, mas esse cenário está em mudança.

A Conferência dos Bispos da França anunciou na última semana que ouvirá três pessoas que nasceram de relações proibidas pela Santa Sé. Segundo o jornal Le Monde, os franceses ouvidos são membros da associação Filhos do Silêncio, da qual fazem parte cerca de 50 filhas e filhos de padres.

O Secretário Geral da Conferência, Dom Olivier Ribadeau Dumas, afirma ter escutado o sofrimento de pessoas vistas como fruto do pecado, rejeitadas e criadas em segredo. A questão é um tabu dentro da Igreja, pois, assim como os próprios abusos, a existência dessas pessoas confirma que a quebra do celibato pelos religiosos é mais frequente do que deveria ser. No caso, não deveria nem existir.

Anne-Marie Jarzac, presidente da Filhos do Silêncio, em entrevista ao jornal Le Monde diz ter esperado muito tempo pelo encontro. Filha de um padre com uma freira, a francesa de 67 anos afirmou que “pela primeira vez, a Igreja abriu suas portas. [..] Não há mais negação, mas escuta e reconhecimento do que vivemos”.

Além disso, o New York Times divulgou, em fevereiro, que o Vaticano confirmou a existência de diretrizes secretas para padres com filhos. O jornal afirmou que as diretrizes recomendam a esses religiosos largar o sacerdócio e “assumir suas responsabilidades como pais ao devotar-se exclusivamente à criança”. O documento demonstra uma mudança de direcionamento da Igreja: quebra o histórico de encobrir a existência dessas pessoas e coloca o bem-estar da criança no centro da atenção.

Papa sendo ovacionado no Vaticano. [Imagem: ddp USA/REX]

Vós sois a luz do mundo

Em concordância com essa mudança, o Papa Francisco emitiu, este mês, o decreto Vos Estis Lux Mundi, no qual ele define como delitos contra o sexto mandamento (Não pecar contra a castidade):

  1. em forçar alguém, com violência, ameaça ou abuso de autoridade, a realizar ou sofrer atos sexuais;
  2. em realizar atos sexuais com um menor ou com uma pessoa vulnerável;

III. na produção, exibição, posse ou distribuição, inclusive por via telemática, de material pornográfico infantil, bem como no recrutamento ou indução dum menor ou duma pessoa vulnerável a participar em exibições pornográficas.

O documento decreta que todos os representantes da Igreja devem denunciar para a Santa Sé caso tenham ciência de qualquer um desses delitos.

A escritura abre amplas discussões. Por exemplo, sobre os assédios sofridos pelas freiras. Como o Papa reconheceu em discurso: “É verdade… há padres e até bispos que fizeram isso. Eu acho que ainda está acontecendo, porque uma coisa não acaba simplesmente porque nos tornamos cientes dela”.

Esses abusos, que acontecem há séculos, ganharam maior visibilidade devido à força do movimento Me Too, que as incentivaram a denunciar a violência que sofreram. Doris Wagner Reisinger (ex-freira), em entrevista para a BBC, relata o que sofreu: “Um dia ele começou a me abraçar e, em determinado momento, foi ao meu quarto à noite, me despiu e me estuprou […] Eu não conseguia entender que havia abusos naquele mundo, naquele mundo perfeito em que estava vivendo. Levei anos para perceber que o que estava acontecendo era estupro e que eu podia falar sobre isso”.

O revés do decreto é que não torna obrigatória a denúncia dos casos de abuso para as autoridade civis. Nelson explica que isso depende das leis de cada país: “alguns têm a obrigatoriedade da denúncia na autoridade civil, outros não. Em muitos países, especialmente nos anglo-saxônicos, ambos os processos ocorrem em paralelo”. Essa questão pode ser bastante problemática, ao considerar que o Vaticano apresenta histórico perturbador de encobrimentos em prol de sacerdotes violentos.

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