Por Giovanna Castro (giovannacastrop@usp.br) e Samuel Cerri (samuel.cerri@usp.br)
O Projeto de Lei (PL) 2630/20, mais conhecido como PL das Fake News ou PL da Censura, passou por muitas mudanças e polêmicas em sua tramitação desde que foi sugerido em 2020, época marcada pela disseminação de notícias falsas acerca da Covid-19.
Três anos após sua criação, a invasão do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF) por bolsonaristas em 8 de janeiro e a onda de atentados a escolas no Brasil foram duas das situações, ocorridas em 2023, que insuflaram a necessidade da discussão da lei, que busca estabelecer normas acerca da responsabilidade de grandes empresas da internet.
Esses ataques têm em comum a origem em discursos de ódio compartilhados de forma livre em redes sociais — após as ondas de ataques a escolas, o ministro da Justiça Flávio Dino determinou a abertura de um inquérito para investigar células nazistas e neonazistas no país pela Polícia Federal (PF). Aqueles favoráveis ao PL culpam a alegada falta de controle da divulgação desse tipo de material nas plataformas digitais.
A (o)posição das Big Techs
As Big Techs, grandes empresas que dominam o mercado tecnológico, enxergam o projeto de lei com preocupação. É provável que, com a aprovação do PL das Fake News, seus lucros venham a diminuir por conta da menor disseminação de notícias falsas.
Em 2019, a Universidade de Oxford publicou um estudo concluindo que fake news geram mais engajamento nas plataformas digitais do que informações verídicas da mídia hegemônica. Além disso, o gasto com a regulamentação que terá que ser feita nos conteúdos das plataformas também poderá diminuir o rendimento das empresas.
“O PL 2630/2020 impõe uma série de obrigações para as empresas no ambiente digital, tendo enfoque na criação de um arcabouço legal para facilitar o combate às notícias falsas e aos ilícitos digitais. Dentre esses encargos, é possível listar a elaboração de relatórios semestrais de transparência (artigo 23) e a atuação diligente para prevenir e mitigar riscos causados por publicações em suas plataformas (artigo 11)”, explica Igor Burigo, advogado especialista na área de direito digital.
No final de abril e início de maio, essa preocupação se converteu em investidas contra o PL por empresas como Google, Meta, Telegram e Spotify.
Sobre as atitudes das Big Techs, Burigo afirma que “as notas publicadas pelas plataformas não são ilegais. O compartilhamento de sua opinião sobre o PL 2630/2020 é protegido pela garantia fundamental à liberdade de expressão e não pode ser censurado sob qualquer fundamento. A questão é que, ao defender o seu ponto de vista sobre a proposta legislativa, algumas empresas utilizaram-se de informações inverídicas para chamar a atenção dos usuários das plataformas, o que não pode ocorrer”.
Dentre as informações inverídicas, as empresas afirmaram que o PL criaria um sistema de vigilância permanente, semelhante a países com regimes antidemocráticos.
A resposta das Instituições
O deputado federal Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, classificou as atitudes das Big Techs como “contundentes e abusivas” e afirmou que estavam espalhando fake news para interferir na tramitação do PL. Lira encaminhou uma notícia-crime contra as empresas de tecnologia à PGR, órgão do Ministério Público Federal (MPF). Acatando o pedido, a vice-procuradora geral da república, Lindôra Araújo, pediu ao STF a abertura de um inquérito para investigar essas ações.
O envio de uma mensagem a todos os usuários do Telegram alegando que o PL seria uma forma de censura, por parte da própria empresa, fez com que o ministro da Corte, Alexandre de Moraes, ordenasse a exclusão da mensagem.
O ministro determinou, também, a abertura de inquérito para investigar a conduta dos diretores do Google e do Telegram. A PF deverá ouvir e investigar os dirigentes em um prazo inicial de 60 dias, analisando a atuação das empresas contra o projeto de lei.
Com relação à exclusão das mensagens disparadas pelo Telegram, utilizou seu decreto de investigação aos executivos de Big Techs como prerrogativa para expandi-la ao aplicativo. A decisão do ministro, que citou o inquérito das Fake News e o inquérito das mídias digitais, bem como a determinação de investigação das Big Techs por parte das PF, pode ser lido na íntegra aqui.
Alexandre de Moraes, ao mandar a Polícia Federal ouvir os executivos das Big Techs, segue o devido processo constitucional. É o que afirma Vitor Blotta, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, as Big Techs possuem limites constitucionais: “qualquer empresa tem o dever de prestar informações fidedignas, claras e identificáveis. [Ao ferir esse dever elas] poderiam ser responsabilizadas, por exemplo, pelo MPF”.
“Agora a gente tem um outro problema [além das fake news] que é o alcance dessas informações e o trabalho de diminuição do alcance de outras informações que circulam nessas redes. Talvez elas [Big Techs] pudessem ser responsabilizadas por alguma coisa em relação ao alcance e essas medidas de sistema que elas fizeram ao longo dessas propagandas mais do que do conteúdo propriamente dito”, explica o professor. Em sua avaliação, “faz sentido pensar em questão de abuso do poder econômico”.
Quando questionado sobre o ministro do Supremo, Blotta afirma que Alexandre de Moraes, enquanto magistrado do STF, deve seguir um devido processo constitucional que consiste em “o juiz ser provocado e envolver Ministério Público e a Procuradoria Geral da República para avaliar, fazer os pedidos e denunciar”.
Esse foi o caso do inquérito das Big Techs — Blotta explica que se a notícia-crime foi feita a pedido de Arthur Lira, a jurisdição que a recebe tem que ser correspondente. Se ele é um deputado federal, a jurisdição correspondente é o MPF e o STF.
Burigo concorda que não houve transgressão aos limites da função como magistrado do STF, mas apresenta outro lado da discussão: “a posição do magistrado apenas fortalece a narrativa da empresa, que sustenta que a aprovação do projeto de lei criará um ‘sistema de censura’ no país”.
Na visão dele, por mais que existam dispositivos legais que amparem a decisão do ministro Alexandre de Moraes, a posição dele poderia ter sido mais branda: permitir a manutenção do conteúdo com a supressão das informações falsas e, assim, direcionar no sentido de garantir a liberdade de expressão de forma mais enfática.
“O Ministro não pode atrair para a competência do STF um tema alheio aos inquéritos que por lá circulam. Investigar diretores das Big Techs sem foro privilegiado por supostamente terem divulgado desinformação em suas plataformas é um abuso”, avalia André Marsiglia, advogado especialista em direito digital e liberdade de expressão
Com o embate entre Estado e Big Techs e o entrave criado no Congresso Nacional para a aprovação do PL 2630, o STF se articula para estabelecer regras que regulem e responsabilizem as grandes empresas de tecnologia, ao mesmo teor do projeto de lei. A intenção do Supremo é julgar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o que pode responsabilizar as Big Techs por conteúdos ofensivos postados nas plataformas. O relator do tema é o ministro Dias Toffoli e o julgamento está marcado para o final de junho.