Por Ana Alice Coelho (anaalice.coelho@usp.br)
É dezembro de 1987. Caminho por uma rua escura, em direção a um clube gótico popular nesta época. As avenidas de São Paulo brilham com os enfeites de Natal que adornam as casas. Ansiosos com a chegada do verão, um grupo de bêbados dança ao som da banda Fundo de Quintal na fachada de um bar qualquer. Bem longe, duas donas de casa assistem à abertura da novela “Mandala”, incomodadas com as buzinas dos carros que enfrentavam vestígios do horário de pico. Uma dupla de adolescentes sai de uma locadora com um VHS de A Garota de Rosa-Shocking nas mãos e saias xadrez combinando.
Os anos 80 estão sendo ótimos anos para os vampiros. Com a ascensão do New Wave e Rock Gótico, cada vez mais vê-se jovens nas ruas com suas roupas pretas combinando com a maquiagem pesada que usam ao redor dos olhos. A palidez e os cabelos arrepiados já não são estranhos. São alternativos, descolados, cool. Muitos rostos conhecidos em bandas famosas usam o artifício para esconder a imortalidade. Pode-se aparecer com os lábios sangrando em um show do The Sisters of Mercy e tudo o que diriam seria “pô, que maquiagem duca!”.
Eu não compartilho da euforia que rodeia a década. Meu coração não pulsa no ritmo das músicas animadas que saem das caixas de som. Meu coração não bate há muito tempo. Dias, semanas, anos, milênios. O tempo se arrasta de forma diferente quando não se pode morrer.
Fui transformada em 544. O Império Bizantino adoecia, invadido pela peste justiniana. Famílias deliravam em febre, esperando pelo momento em que os bulbos tomariam suas peles. As ruas banhavam-se em vômito, e os poucos saudáveis que restaram partiram, abandonando suas coisas como se fugissem do próprio diabo. Em Constantinopla, 10.000 almas sucumbiam por dia, arrancadas pela peste bubônica. Quase fui uma delas. Infelizmente, Ele me encontrou antes que a praga pudesse me levar. Achou-me em delírio, traumatizada pela perda, rezando por salvação. Prometeu que nunca mais precisaria testemunhar tal destruição, que eu viveria feliz. Mentiu.
Desde aquele dia, presenciei incontáveis mortes. Não apenas as causadas por enfermidades, mas também pela mazela da humanidade. A epidemia em Honshu, surtos de lepra, pandemias de cólera. Não encontrava felicidade em nada. Aos poucos, fui perdendo a empatia pelas vidas humanas que tirava. Na verdade, acreditava que estava fazendo-lhes um favor. Ninguém merecia o fardo de viver uma realidade tão cruel. Era isso o que eu repetia dentro do caixão deteriorado em que dormia, na esperança de me sentir menos desprezível. Nunca funcionou.
Quando não estava caçando, passava minhas noites sentada à beira de fogueiras, assombrada pelo calor de um nascer do sol que eu nunca mais poderia ver. Em 1910, atraída pelo brilho de uma Belle Époque que começava a ruir, instalei-me na França. Era fácil acreditar que a humanidade iria prosperar, enganada pelo luxuoso estilo de vida da elite europeia. Quatro anos depois, a Grande Guerra eclodiu.
Ao contrário das outras pestes que assolaram o mundo antes , essa era causada por um vírus ainda pior. Havia quilômetros de terra onde não se via um milímetro de grama, cobertas pelo sangue de homens que se odiavam. Passei dias me alimentando de corpos sem alma. Não eram cadáveres. Soldados. Desprendidos do mundo que habitavam. Apavorados por uma guerra que um dia desejaram. Não gritavam quando a figura soturna invadia seus dormitórios imundos e pútridos. Enxergavam nos meus olhos o mesmo terror que viam quando se encaravam nas poças de água suja nos momentos pós-batalha. Esperavam, calmos, o fim de seu tormento. Eram encontrados sorrindo, não muito mais pálidos do que quando serviam seu país, agarrados à fotos das viúvas que deixaram.
Há muito tempo, encontrava-me como aqueles soldados. Vivia numa realidade desfocada, mal lembrava os rostos de quem me alimentava. Passava os dias escondida em um casebre caindo aos pedaços, nas sombras de uma cidade abandonada. Naquele ponto, já tinha aprendido a me desassociar dos gritos afiados que cortavam a madrugada. Mães e pais sofrendo a perda de filhos, jovens lamentando a ausência de seus irmãos. Meu coração pararia se já não estivesse morto.
Os dias passaram, os óbitos aumentaram, e eu sobrevivia do sangue débil de angústia dos militares franceses. A guerra acabou. A humanidade foi feliz, por um breve momento. E então veio outra. E esta também teve um fim. Não sei os detalhes da segunda. Me recusei a ver os mesmos rostos tomados de pesar. Guardei-me no meu caixão, alimentando-me do meu próprio sangue durante os seis anos de batalha.
Suportei os próximos anos marcados por doenças psicossomáticas. Dias acumulados de trauma vieram cobrar seu preço. Mesmo sem ser ameaçada pela morte, meu cérebro ainda me fazia refém dos sintomas de um corpo comum. O desinteresse constante e a irritabilidade já eram meus companheiros na jornada imortal. Comecei a ter insônia. Os tremores vieram logo depois. Passava dias andando em círculos pela casa que ocupava na beira do rio Sena. Quando as memórias da guerra beliscavam minha mente, observava o feixe de sol que abria espaço pela janela semiaberta. A ansiedade parecia tomar conta do meu sistema, e a exaustão crônica embriagava meus sentidos.
Em fevereiro de 1972, cheguei ao Brasil. Mesmo com as constantes mudanças de residência, os parisienses começaram a estranhar a falta de cabelos grisalhos e rugas no rosto. Ainda pensava em continuar na cidade, até começar a receber ameaças pelo telefone. Aterrissei em São Paulo e fiquei até hoje. Agora, seguindo pela rua escura e ouvindo The Cure pelo walkman, lutava contra o tédio e esperava que a enxaqueca desaparecesse antes de chegar ao clube.
Abri a porta vermelha da balada e logo senti o cheiro forte de álcool inebriar os meus sentidos. A música alta estourava nas caixas de som. Cheguei ao balcão de bebidas, grudento pela cerveja seca mal limpada e pedi uma Piña Colada, que fingiria beber durante as próximas duas horas. Minha intenção era pegar um dos bêbados, tomar o sangue, dançar um pouco e voltar para casa. Mas senti uma presença seguida de um perfume doce e forte, e quando olhei ao redor, eu a vi. Ela me olhava com fascínio, como se encarasse uma lápide antiga em um cemitério abandonado. Disse “jaqueta maneira”, ou algo assim. E então aconteceu.
Percebi o sangue correndo pelas minhas veias. Senti o fluxo passando pelos meus átrios e a contração dos ventrículos. Me sentia vibrar, não pelos tremores que já me eram comuns. O processo que eu notava no interior de outros reverberava no meu próprio corpo. Depois de séculos, ouvi meu próprio coração bater. Quando as ondas sonoras do seu riso chegavam até minhas orelhas, ele acelerava, e mais rápido cada vez que as luzes vivas dos refletores passavam por seus olhos castanhos. Pela primeira vez depois de anos sobrevivendo, descobri-me viva. Acima de tudo, me senti viva. E eu vi, pela primeira vez depois de muito tempo, a luz do nascer do sol refletida nas íris de uma mulher. E então, calor.





