Jornalismo Júnior

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Revista Recreio: ciência para crianças

Pesquisadoras argumentam a produção do Jornalismo Científico nas revistas infantis brasileiras e questões como consumo, ensino didático e publicidade
Por Luana Mendes (luanalimamendes@usp.br)

A Revista Recreio fez parte da infância e juventude de gerações brasileiras. Com inúmeras publicações pensadas para o público infantil, ela é referência nas produções midiáticas desse mercado no país. Contudo, a conexão do periódico e o material vinculado é bem mais extensa, e perpassa a publicidade, o uso em sala de aula e até mesmo o rigor com as informações.

Em entrevista ao Laboratório, Sheila Alves, doutora na linha de Ensino de Ciências e Matemática pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), e Thaís Helena Furtado, doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) debatem a relação entre o discurso científico e a produção pensada no público infantil.

A Recreio 

Conhecida pelo design singular e cores chamativas, a Revista Recreio fez parte da vida de crianças e pré-adolescentes desde o final dos anos 60. Publicada semanalmente, a revista trazia artigos interessantes, atividades diversas e também brindes, sendo editada numa primeira fase até 1981, reconhecida como a “revista brinquedo”.

Nos anos 2000, acompanhando a modernização e o ritmo da internet que começava a se popularizar no Brasil, a revista ganhou uma cara nova. Linguagem dinâmica, assuntos diversos e até um upgrade nos brindes que a acompanhavam, com séries colecionáveis como Cyberbots, Galácticos e Reino dos Dragões.

Capa da Revista Recreio com personagens animados de "A Era do Gelo", com texto e ilustrações promovendo quadrinhos e jogos
Colorida, divertida e com referências do cinema e do mundo dos quadrinhos: a Recreio era a sensação do momento.
[Imagem: Divulgação / Revista Recreio]

A Recreio valorizava a qualidade gráfica e a formatação das matérias, com múltiplos elementos que lembram as páginas de internet. Segundo pesquisas do Publiabril em 2012, época em que a Abril comandava a edição e impressão do periódico, o público estava na faixa de 6 a 11 anos e era de classe A, B e C. Um exemplar dessa revista custava na época R$9,95, sendo facilmente encontrada nas bancas, uma das razões de seu grande alcance e popularidade.

Ela era dividida em 42 seções. Apesar de não ter sido criada especificamente como uma revista de divulgação científica para crianças, acabava por incitar a curiosidade, já que na maioria dos exemplares possuía ao menos algum artigo relacionado à ciência. As seções Natureza, Seu corpo, Bichos, Pesquisa Escolar, Espaço, Experiência e Ecologia se alternavam entre as edições, abordando temáticas que fomentaram o interesse dos leitores por assuntos científicos. 

Descontinuada em 2018 em meio a uma crise no setor editorial, a revista permanece na memória de jovens e adultos que, na infância, se interessavam pelos conteúdos e curiosidades vinculados ao periódico. 

Como produzir Jornalismo Científico para crianças?

É notável que o público-alvo de pesquisas e artigos científicos não são crianças e jovens. Entretanto, a ciência faz parte do interesse e da curiosidade dos pequenos leitores. É assim que, com o intuito de democratizar e expandir os horizontes, as adaptações dos artigos acadêmicos surgiram. 

Contudo, o cuidado relacionado aos conteúdos que chegam até as crianças nem sempre foi tomado nas produções. Jornais de grande circulação ao longo das décadas produziram suplementos infantis, como a Folhinha (Folha de São Paulo/SP), Gurilândia (Estado de Minas/MG) e Globinho (O Globo/RJ). Entretanto, o apelo à simplificação, a infantilização da informação e a ausência de um rigor da produção são questões que entram em cheque com a proposta de se produzir um material de qualidade para o público.

“Em geral, a primeira questão é que o cientista que divulga ciência para crianças precisa conhecer o mundo das crianças minimamente”, destaca Sheila Alves. A pesquisadora é coordenadora do grupo de pesquisa “Divulgação científica para as crianças” e do projeto de ensino “Ciência Hoje das Crianças: leitura que alimenta a curiosidade”. Em seus artigos, a relação entre aprendizado e ensino de ciências está sempre presente, considerando os pontos de cuidado ao pensar conteúdos para crianças.

Por meio da linguagem e das imagens, ela destaca a importância da relação verbo-visual para o caráter didático da aprendizagem. Ao pensar em um artigo científico para as crianças, o lúdico deve unir-se com a informação, tanto para aproximar de seu cotidiano quanto para alimentar a curiosidade. “Brincadeira para criança é trabalho. Muitas vezes o cientista não considera esses aspectos como questões importantes para se pensar o artigo”, pontua Alves.

Além disso, levar em consideração a faixa etária, o contexto social e até mesmo questões do mundo são pontos relevantes na construção da informação para esse público. As crianças hoje são diferentes das de dez anos atrás, e seus gostos, interesses e a forma de expressá-los mudou. Até mesmo a percepção da capacidade de opinião dentro e fora de casa das crianças é distinta.

Uma criança usando fones de ouvido está sentada em uma mesa com um laptop, focada em um tablet colorido. Desenhos estão fixados na parede ao fundo.
Atualmente existe uma maneira de divulgar a ciência para as crianças que, diferente daqueles jornais e revistas, você encontra facilmente na internet, outras pessoas especializadas naquela divulgação.
[Imagem: Reprodução / FreePik]

Thaís Helena Furtado, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFRGS) e co-fundadora e diretora do COLO – Coletivo de Jornalismo Infantojuvenil, pontua a questão da participação infantil em seus trabalhos. A partir da análise de Manuais de Redação dos principais jornais brasileiros, a pesquisadora notou a distância colocada entre o repórter e as crianças nas orientações, de modo a se preocuparem com a proteção legal da criança muito mais pelo receio do descumprimento da legislação do que com o papel de cidadã e consumidora de jornalismo.

“O que acontece no jornalismo infantil e, mais ainda, no jornalismo tradicional, é que a criança não é considerada protagonista. Ela não é vista como uma fonte possível em geral para o jornalismo.”

Thais Helena Furtado

O distanciamento do repórter e seu público leitor, motivado pelo desconhecimento ou desinteresse  em aprofundar questões particulares, reflete cada vez mais no material produzido. Ao confeccionar um jornal ou uma revista para crianças, a cautela com os termos que estão sendo utilizados, a forma em que se constrói as frases e até mesmo as fontes de entrevista influenciam na recepção do público infantil. 

A responsabilidade do jornalista nesse momento é ampliada. O olhar para a importância da participação das crianças na construção da matéria, pensando no que realmente elas acham interessante e relevante, e a cautela ao redigir e entrevistá-las. “Na verdade o compromisso com o jornalismo, ao escrever para crianças, até tem que ser maior. É levar em consideração mais ao pé da letra ainda os valores do jornalismo.”, destaca Furtado. “A gente devia fazer com todo mundo, né?”

Revista Midiática x Divulgação Científica

Para além dos procedimentos cautelosos de adaptar artigos, estruturá-los de maneira adequada ao desenvolvimento da criança e unir informação e ludicidade, há também a preocupação de ser um assunto que fomente o interesse das crianças. Mas, como podemos atraí-las sem deixar de lado especificações do jornalismo e de artigos científicos?

“Quem dá vida ao texto é o leitor, e o leitor precisa querer ler o seu texto já de início. A leitura é um desejo. É pelo texto imagético, pelo texto escrito que ela vai se interessar por aquela informação”

Sheila Alves 

Sheila trabalha em suas pesquisas com a revista Ciência Hoje das Crianças, criada em 1986 para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ela tem uma proposta diferente da Revista Recreio, de apoio à pesquisa escolar e alternativa ao material estritamente didático. Porém, por que muitos têm como referência de revista científica infantil a Recreio?

 “A Recreio era uma revista midiática com muito mais alcance pelas crianças, e com grande importância também. Nela existia o espaço para divulgar ciência ou informações de ciência, e era de acesso nas bancas pelas crianças.”, pontua Alves.

Capa da revista Ciência Hoje das Crianças, com destaque para temas da Antártica
Preocupados em não apenas apresentar o conteúdo, mas colocá-lo em contexto, a Ciência Hoje das Crianças atua ressaltando a relevância das pesquisas para transformar a realidade nacional.
[Imagem: Divulgação / Acervo Ciência Hoje]

Apesar das diferenças nas propostas e no modo de exibir o material, ambas as revistas conseguiam suscitar o interesse do leitor sobre os assuntos por meio de ferramentas comuns, como gravuras, fotos chamativas e forma de linguagem condizentes com o momento e a maneira de se comunicar das crianças.

Contudo, é importante ressaltar que a Recreio não fornecia informações de primeira fonte, isto é, quem escrevia para a revista não era o cientista, mas sim um jornalista, que apenas passava a informação. Assim, o periódico utilizava recursos imagéticos para impactar o leitor, diferentemente da Ciência Hoje das Crianças, que tinha como objetivo instigar a curiosidade por meio da divulgação científica.

Exibir a informação por segundas fontes é um dos problemas do material produzido pela Recreio ao levar em consideração o jornalismo científico e seu uso didático. A construção textual e visual da revista passava sempre a visão de que a informação era fornecida por ela mesma, não havendo referências bibliográficas ou sequer a menção do pesquisador no decorrer do texto.

Considerando a composição do jornalismo, vários princípios são negligenciados na justificativa de “simplificar” ou “facilitar” a leitura da criança. Porém, ignorar e omitir a maneira que foram construídos os artigos da revista é desconsiderar o público infantil como cidadãos no jornalismo, aponta Thais Furtado. “Para as crianças não importa quem tá falando, a revista está falando para ela. Mas eu acredito que seria importante, sim, marcar as fontes para as crianças saberem de onde está vindo aquela informação.”

“Na verdade, a questão da Recreio não colocar suas fontes é um pedacinho de uma questão bem mais ampla, que é a de deixar a criança como se fosse um sujeito que não tem capacidade de opinar sobre política, sobre economia, sobre a vida dela em casa. Normalmente, quando a criança é ouvida no papel de consumidora, né?”

Thais Helena Furtado 

A revista infantil como produto

As crianças ao longo dos anos ganharam um espaço muito importante na sociedade. Antes ignoradas e com pouca relevância social, como durante a Idade Média, hoje são valorizadas dentro das famílias e na comunidade. É nessa perspectiva que as crianças passaram a ser um mercado observado e vislumbrado, sendo foco de campanhas publicitárias.

Em seu doutorado,Thaís Furtado analisa o discurso da Revista Recreio em relação ao jornalismo infantil e o desejo de consumo. Por meio do Discurso Jornalístico, do Discurso Publicitário, do Discurso Didático Científico e do Discurso de Entretenimento, o jornalismo infantil revisativo da revista consegue acionar o desejo de consumir dessas crianças. Exemplos são as séries colecionáveis vinculadas às revistas, os espaços publicitários de brinquedos nas páginas, a divulgação de novos jogos ou filmes na própria capa, entre outros.

Apesar de ser uma revista midiática, com foco na venda e no retorno lucrativo, entra em debate até que ponto é aceitável o conteúdo publicitário vinculado concomitantemente aos artigos da revista, especialmente considerando o público leitor. Os debates acerca da regulamentação são recentes, e circulam tanto nos meios impressos quanto no on-line. Ainda que as revistas destacadas não estejam mais em circulação há algum tempo, é possível exercer questionamentos sobre o formato de jornalismo infantil existente, pensando no futuro do modelo.

Capa da Revista Recreio, com elementos como o filme ET, um bicho de estimação, o robô e o minigibi de brinde e o título "Atenção, terráqueos!"
Sheila Alves destaca que, em todos os exemplares analisados em sua pesquisa, há textos relativos à ciência para crianças, mas em nenhuma delas assuntos dedicados a essa área foram expostos na capa. 
[Imagem: Divulgação / Revista Recreio]

Ao priorizar a aprendizagem da criança por meio dos mais diversos formatos, o uso das revistas infantis como alternativas viáveis aos livros didáticos é amplamente discutido. Nem sempre o material didático consegue satisfazer as exigências do ensino ou corresponder aos objetivos que o professor se propõe a ensinar, de modo em que os periódicos possibilitam uma abordagem diferente, lúdica e mais próxima do cotidiano.

Sheila Alves menciona que as crianças conseguem perceber a diferença de propostas entre a Recreio e a Ciência Hoje das Crianças, mas que ambas ainda ensinam pelo viés didático da revista infantil. Durante a sua pesquisa de Doutorado, ela observou as interações e práticas de letramento mediadas pela revista Ciência Hoje das Crianças em sala de aula. Por meio do material, foi possível notar a construção de uma relação cognitiva entre alunos e professores, além de incentivar a participação do leitor em atividades interativas de leitura da revista. 

No entanto, o uso dos periódicos no ambiente escolar precisa ser pensado e monitorado, com o fim de contribuir para a aprendizagem. “Acredito que a solução é o professor mediar essa leitura, levar exemplos diferentes aos alunos, ensiná-los a olhar a internet e ver o que é bom para ler em casa”, destaca Alves. “Quem é que está escrevendo? É só uma curiosidade científica ou é uma fake news? É o adulto que vai conduzir esse caminho.”

Thaís Furtado evidencia que o jornalismo deve ter cautela para não ser refém do ensino, do que querem que os alunos aprendam na escola ou o que os pais acham relevante. Independente da área de produção nos periódicos infantis, o jornalismo tem o dever de prezar com a informação, e não com ideologias próprias dos leitores. 

“Acredito que essa questão de estar sendo distribuído dentro das escolas é o que tem fidelizado. Porque não é uma decisão de consumo da criança, ela acaba consumindo na escola, ela fica fiel àquele produto, àquela revista como um produto.”

Thais Helena Furtado

“Se a divulgação científica enquanto gênero já é complexa, pensar no gênero de divulgação científica para crianças é mais complexo, ainda mais num país diverso como o Brasil, com realidades tão distantes”, ressalta Alves. Porém, diferente do adulto, a criança tem a necessidade de consumir um material com elementos didáticos. Incentivar a curiosidade e produzir o melhor material possível para o público infantil são pilares dos profissionais que trabalham na área.

“Elas têm o direito de aprender e a gente o dever de ensinar.”

Sheila Alves

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