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‘Um Corpo Que Cai, por Kim Novak’: o retrato da queda e do vôo de uma atriz | 49ª Mostra Internacional de Cinema de SP

No documentário, Kim Novak refaz o percurso da própria alma: da menina sufocada à mulher que se liberta
Por Marcelo Donegá (marcelo.henrique.souza@usp.br)

O documentário Um Corpo que Cai, por Kim Novak (Kim Novak’s Vertigo, 2025) foi uma das obras exibidas durante a  49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Sob o roteiro e direção de Alexandre O. Philipe, o longa estreou nos cinemas brasileiros na terça-feira do dia 21 de outubro.

A produção aborda de forma intimista a vida da atriz Kim Novak, que estrelou filmes aclamados de Alfred Hitchcock como Birds (1963), Psicose (1960) e Um Corpo Que Cai (1958), que inspirou  o nome do documentário. A obra de uma forma poética traça paralelos entre a vida da atriz com o filme. De maneira sensível, o filme aborda temas complexos como fama, sensação de pertencimento e proximidade com a morte.

O longa não se destina a quem busca os relatos sensacionalistas dos bastidores de Hollywood ou especulações típicas de tabloides sobre a vida dos astros. Ele vai muito além disso, pois é um mergulho subjetivo, um encontro entre a atriz e suas próprias memórias, costurando as duas pontas da existência. Há uma espécie de reconciliação entre o que foi e o que ainda pode ser. O encanto dessa obra não está em revisitar a Kim moldada pela indústria, mas em revelar a sua humanidade e aquilo que nos espelha. O espectador se reconhece em suas fragilidades, no desejo de ser validado, no medo da passagem do tempo e na delicadeza de envelhecer.

Kim Novak começa o documentário hesitante, quase em um fluxo de consciência, revelando sua vulnerabilidade diante da câmera. Ela fala do medo de envelhecer, do corpo que muda, da mente que hesita e da necessidade de libertar memórias trancadas no “closet do cérebro”. 

No decorrer do filme, há várias digressões metalinguísticas relacionando o filme Um Corpo Que Cai com a vida da artista. O clássico hitchcockiano conta a história de Judy que se deixa moldar pelo detetive Ferguson para se transformar em Madeleine, um símbolo feminino de beleza e elegância. 

“Cair… é uma forma de  voar. Porque só quem se entrega à queda descobre o próprio céu”, fala de Kim Novak [Imagem: Reprodução/Imdb]

Judy Barton e Madeleine Elster são duas faces de uma mesma mulher que simbolizam o coração da obsessão de Scottie Ferguson. Madeleine é uma figura idealizada, elegante, enigmática e aparentemente assombrada por um passado trágico. Judy, por sua vez, é a mulher real por trás da encenação, uma jovem comum que se deixa manipular para interpretar um papel fatal. 

Quando Scottie, devastado pela perda de Madeleine, reencontra Judy e tenta moldá-la novamente à imagem da mulher morta, o filme expõe o conflito entre aparência e essência, desejo e ilusão. Judy torna-se vítima e cúmplice de uma fantasia masculina destrutiva, revelando a crítica de Hitchcock à idealização do amor e ao poder obsessivo do olhar.

No longa, Novak conta que em alguns momentos de sua vida se sente mais parecida com Judy e em outros, como Madeleine. Ao mencionar isso, a artista explica como o processo de se transformar nas duas foi doloroso, causando sequelas emocionais para o resto de sua vida.  Da mesma forma que Judy enfrenta dificuldades ao se transformar em Madeleine pela pressão do detetive, a atriz sofre ao se transformar nas personagens, mediante a cobrança de Hollywood. Há uma intersecção entre o filme e a realidade no processo de fabricação de uma mulher.

Na segunda parte, Kim Novak mergulha num território mais onírico e simbólico. Ela começa a falar da arte como salvação, que é a herança do pai que pintava ovos coloridos com abelhas,  imagens que ela traz de volta em suas próprias telas, como se colorir fosse uma forma de ressurreição. 

Ela então reflete sobre o peso de Hollywood: o controle dos produtores, o corpo transformado em produto, a obrigação de ser sempre bela. Em sua voz, há exaustão e ternura  “estou cansada de ser desejável”, confessa. Diz que atuar virou um ciclo perigoso: ao interpretar tantas mulheres, começou a perder os contornos da própria identidade. Ser atriz, naquele mundo, era constantemente ser possuída.

“Pior medo ao virar atriz: tornar-me ‘Kim Novak’.” Perder-me nos muitos papéis; olhar no espelho e não reconhecer quem eu era”

                                                                                                                     Kim Novak

Nas lembranças, surgem figuras luminosas: Jimmy Stewart, símbolo de gentileza e honestidade, com quem ela podia ser apenas humana, e Greta Garbo, espelho e inspiração por ser uma mulher que escolheu a solidão como forma de liberdade. Kim reconhece nela o que sempre buscou: o direito de ser ela mesma, sem precisar representar. 

Embora Kim Novak almejasse papéis mais complexos e instigantes, a indústria cinematográfica insistia em reduzi-la à condição de ícone de sedução. Uma situação que espelha, de certa forma, a trama de Um Corpo que Cai, em que a obsessão do detetive John “Scottie” Ferguson o leva a moldar Judy em Madeleine, a mulher idealizada que já não existe.

Kim Novak não queria usar o emblemático terno cinza em Um Corpo Que Cai [Imagem: Divulgação/Universal]

Na terceira parte, o documentário muda de tom e inicia mostrando o afastamento de Kim da indústria, comprando uma casa à beira-mar, que é o refúgio onde conhece Warlock, um gato ferido que adota e que, segundo ela, “a escolhe”. É o início de uma nova vida, uma existência feita de pintura, vento, chuva e silêncio. Ali, cercada por pedras e mar, Kim descobre que pode amar o mundo mesmo na impermanência: “É a vida e a morte. Faz-me amar a vida.”

Na parte final, a voz de Kim torna-se mais lenta e mais firme, quase um sussurro em paz. Ela não fala mais de medo, mas de entendimento. Depois de experienciar a vida como filha rejeitada, atriz moldada e mulher isolada, ela reconhece que sua vida foi uma sucessão de quedas necessárias.

Em uma das cenas, Kim observa a si mesmo na tela, não com orgulho, mas com compaixão. Nesse ponto, o documentário intercala as suas palavras com a imagem de Vertigo, onde é possível observar imagens emblemáticas do filme como as escadas, o abismo e o olhar hipnótico de Judy se tornando Madeleine. Ela entende que a mulher que se deixava moldar por um homem era uma parte de si que finalmente pôde ser curada. 

O documentário atinge um tom espiritual quando Kim reflete sobre o tempo e a pintura como um ritual de permanência, onde cada pincelada é uma respiração que resgata a memória do esquecimento. Enquanto pinta o invisível (o vento, o som, o efêmero), o filme encerra-se com o som do mar e a câmera se afastando da casa, revelando o horizonte. A espiral que surge no céu, presente também em seus quadros e em Vertigo, já não causa vertigem, mas serenidade, num gesto de despedida e aceitação da morte.

Em Um Corpo que Cai, Kim Novak refaz o percurso da própria alma, onde cada trauma vira arte, a perda vira cor, e a queda vira vôo. Ela não se justifica mais: ela se expressa. E ao fazer isso, deixa de ser personagem para tornar-se presença como um eco eterno entre a  tela, a pintura e o céu.

Apesar de todos os conflitos, medos e inseguranças, Kim mostra a importância de trilhar o seu próprio destino, que é demonstrado na cena que Kim entoa orgulhosa a frase que aprendeu com sua mãe “Eu sou a capitã da minha própria nave”.

Esse filme fez parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Para mais resenhas do festival, clique na tag no começo do texto.

Kim Novak’s Vertigo já está disponível nos cinemas brasileiros. Confira o trailer:

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