Alfred Hitchcock é a Agatha Christie dos filmes de suspense, talvez com um pouco mais de requinte. Assim como a simpática gordinha inglesa escreveu dezenas de romances policiais durante suas longas décadas de atividade, o simpático gordinho inglês dedicou a maior parte da sua carreira a suspenses, também por muito tempo. As semelhanças estendem-se também ao fato de ambos serem considerados mestres de seus respectivos gêneros, tendo criado e dominado muitos elementos que viriam a se tornar clichês em obras posteriores.
Esnobado na Europa e celebrado na América, a unanimidade da maestria de Hitchcock só começou a se formar quando os críticos da Cahiers du Cinema, revista francesa, usaram o gordinho como ícone da recém-formulada teoria do autor, na qual o filme é a visão de um diretor, assim como um quadro é a de um pintor ou uma casa é a de um arquiteto. Os críticos eram gente como François Truffaut e Jean-Luc Godard, o alto calibre do jornalismo cultural francês da época. A campanha foi um sucesso e hoje o gordinho inglês não só é respeitado como cineasta, como freqüentemente cotado para encabeçar listas de melhores diretores de todos os tempos.
Essa virada de opinião foi essencial para o inglês. Apesar da bilheteria razoavelmente bem sucedida na sua época de filmagens na Inglaterra, quando ele foi para Hollywood que sua visão pôde ser exercida definitivamente, graças ao recente apoio dos críticos da nova geração e às bilheterias satisfatórias. Seus filmes mais memoráveis datam dessa época, do fim dos anos 40 ao começo dos 60, como Psicose, Festim Diabólico, Janela Indiscreta e Um Corpo que Cai.
O gordinho inglês foi um terremoto cinematográfico, deixando escombros por quase todo lado. Psicose, por exemplo, colocou na mesa as cartas que dariam origem ao gênero slasher, os filmes de serial killer como Halloween, Sexta-Feira 13 e A Hora do Pesadelo.
Festim Diabólico é uma trama de assassinato que se desdobra em doses de tensão e pinceladas de filosofia, como Nietzsche e sua teoria do super-homem. Janela Indiscreta foi recentemente regravado com Shia LaBeouf no papel originalmente de James Stewart. Os genes de Hitchcock seguem inabaláveis no DNA de Hollywood, mesmo após mais de três décadas de seu último filme, Trama Macabra, de 1976.
E as inovações técnicas? Em Festim Diabólico, o gordinho inglês se desdobra em múltiplos efeitos de câmera e cenário para iludir os escassos cortes presentes, usando portas que se abrem e fecham e passeios pela sala onde se passa a trama. O diretor queria que o filme simulasse uma peça de teatro, mas a duração dos rolos de película não permitira uma gravação de um único take, isto é, sem interromper a filmagem. Movimentando a câmera e explorando momentos em que a tela se tornava preta, o cineasta camufla as limitações da película que se opunham a sua visão e ainda cria uma experiência muito distinta de se assistir a um filme.
Até quando deixa a desejar Hitchcock insere um detalhe marcante. No decepcionante A Tortura do Silêncio, com Montgomery Clift, uma mulher com crise de consciência observa a nuca de um padre que sabe de seu segredo. O diretor, ao invés de expressar o dilema na expressão facial da atriz, simula o olhar com a câmera. Patético se descrito, interessante se assistido, é um dos raros momentos memoráveis do filme.
Hitchcock foi um gênio do suspense por perceber e explorar o fato de que a tensão se cria quando o espectador e as personagens possuem um descompasso de informações conhecidas. Na série de entrevistas Hitchcock/Truffaut, com o crítico tornado diretor François Truffaut, o cineasta inglês exemplifica a diferença de suspense e surpresa com essa lógica. Ele diz que, quando assistimos a duas personagens jantando e de repente uma bomba explode, isso é evidentemente uma surpresa. Porém, se o diretor gravar a mesma cena mostrando que há uma bomba embaixo da mesa, com uma contagem regressiva para a explosão, obtém-se então o suspense, pois os espectadores já anteviram o que acontecerá e, por isso, entram num estado de tensão, enquanto as personagens seguem desavisadas.
Essa lógica da informação que chega a tempos diferentes ao espectador e à personagem é o alicerce da tensão. Quando se instala esse momento, é o cineasta quem conduz a platéia e é sua mão que vai fornecer a medida ideal. Esse mecanismo está presente em obras como Tubarão ou Alien e O Sexto Sentido ou Silêncio dos Inocentes, suspenses icônicos pós-Hitchcock.
A influência de Hitchcock é bem sutil, portanto. Há poucos cineastas que explicitaram a herança, como Gus Van Sant, que dirigiu a refilmagem de Psicose, e Brian de Palma, em Vestida para Matar, com Michael Caine, e Dublê de Corpo, ambos dos anos oitenta. O argumento do filme estrelado por Michael Caine deriva muito de Psicose, enquanto Dublê de Corpo mescla Um Corpo que Cai e Janela Indiscreta.
Mais explícitos são os detalhes da obra de Hitchcock que acabaram por espalhar-se por todo lado, principalmente os de caráter visual. Em Tubarão, além da já citada lógica do suspense, Steven Spielberg retoma uma técnica que Hitchcock explorou em Um Corpo que Cai: aplicar um zoom, aproximando a imagem, e afastar-se com a câmera simultaneamente. No terror praieiro de Spielberg, o efeito é demonstrar a desorientação do protagonista ao notar um movimento suspeito na praia; no filme de Hitchcock, a técnica é o ponto de vista de Scott, interpretado por James Stewart, que sofre de vertigens e acrofobia devido a um trauma.
Alfred Hitchcock esmera-se tanto na condução do suspense, esforça-se tanto para extrair o máximo de tensão de cada movimento captado pela câmera que acaba por desleixar-se com o final da história. Os casos mais gritantes são Disque M para Matar, um filme brilhante com um encerramento tão convencional quanto frustrante, e O Homem que Sabia Demais, com James Stewart, em que se percebe claramente a mão de um produtor e o receio de desagradar a platéia, evitando finais mais ousados. É difícil conceber um diretor que teve a coragem de matar a protagonista de Psicose no meio da trama render-se a modelos tão moralistas e hollywoodianos quanto os dos finais dos filmes citados.
Mas não são deprimentes todos os fins. Sabotador, de 1942, só deixa de ser um suspense hitchcockeano lado B nos minutos finais, ao usar como cenário um grande ponto turístico de Nova Iorque. Um Corpo que Cai também teve uma atenção especial ao seu fim. Essa tendência acabou prevalecendo nos filmes mais recentes de suspense: M. Night Shyamalan, de O Sexto Sentido, tem sua obra praticamente construída em cima de roteiros com finais surpreendentes, de nível bem acima da condução. Almodóvar também aprendeu a importância de um fim em alta voltagem a um suspense, como se pôde conferir em A Pele que Habito.
A Agatha Christie dos filmes de suspense segue como um monumento britânico ao cinema mundial. Hitchcock une as duas tendências da sétima arte, entreter e deslumbrar, ao mesmo tempo em que nos dá repulsa e desejo de manter os olhos na tela. Basta assistir à cena do chuveiro de Psicose, em que a faca não toca o corpo da atriz, mas temos a impressão de um assassinato, para conferir a perfeição do gordinho inglês. Pensando bem, Agatha Christie ainda teria de matar muita gente de maneira bem mais intrincada para a balança da metáfora ficar equilibrada.
Por Henrique Balbi