Jornalismo Júnior

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Entre luzes e sombras, filmes noir refletiam o pensamento social das décadas de 40 e 50

Entenda como produções comerciais e baratas representavam minorias de forma ambígua
Heloisa Falaschi (heloisafalsch@usp.br), Hellen Indrigo (hellenindrigoperez@usp.br) e Nicolas Sabino (nicolassabino@usp.br)

Em 2010, Marya E Gates, historiadora e crítica de cinema, começou a utilizar a #Noirvember nas redes sociais para incentivar os usuários a assistirem filmes de época com enredos sobre crimes e atmosfera cínica durante o mês de novembro. Chamado de noir, esse tipo de filme começou a receber mais destaque entre as gerações mais novas depois de viralizar nas redes, e o evento passou a ser algo aguardado por fãs do mundo inteiro.

O que é filme noir?

Sem um consenso claro entre os especialistas em cinema, o noir é tido entre um gênero — como comédia, ação e terror — e um estilo de filmagem cinematográfica. Surgiu nos Estados Unidos durante as décadas de 1940 e 1950 para contar histórias de suspense criminal.

A inspiração vem muito dos livros policiais da época, que tinham como principais autores Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Os temas sombrios e complexos tratados nas obras, como corrupção e injustiças sociais, foram importados pela sétima arte e refletiram nesse tipo de filme.

Outro fator importante que contribuiu para o formato novo de cinema foi o período após a Segunda Guerra Mundial, que fez as histórias transmitirem uma sensação de desilusão e pessimismo. O sentimento generalizado de abalo na sociedade americana  durante o Pós-Guerra e início da Guerra Fria foi intenso e impulsionou o tom próprio do noir.

Anos mais tarde, em 1946, o gênero foi cunhado por Nino Frank no artigo Un nouveau genre ‘policier’: L’aventure criminelle (Um novo gênero policial: a aventura criminosa, em tradução livre) para a revista L’Écran français, em que descrevia que a nova safra de filmes de Hollywood tinha um visual sombrio. Noir vem do francês e significa negro, um aceno para a sua pegada mais obscura. Frank afirma no artigo que “os filmes ‘noir’ não têm nada em comum com os típicos dramas policiais”.

“É um dos grandes gêneros cinematográficos, que substituiu os faroestes; […] bem como da substituição da vasta natureza romântica pela da “fantasia social.”

Nino Frank

Desesperado por um futuro melhor, o protagonista de Almas Perversas (Scarlet Street, 1945) passa a cometer crimes para ascender socialmente [Imagem: Reprodução/IMDb]

O noir também contestava os valores do cinema clássico hollywoodiano que, baseado no “sonho americano”, apresentava os protagonistas com uma moralidade intacta. Essa maneira de retratar os protagonistas vinha atrelada ao Código Hays, um conjunto de regras de censura aos estúdios de Hollywood que regulamentava o conteúdo moral dos filmes. 

Palavrões, sexualidade explícita, violência gráfica, miscigenação e vários outros temas eram barrados pela indústria para manter uma imagem pública favorável. No noir, tudo que não podia ser representado diretamente nas telas ganhava um ar metafórico para contornar as limitações.

A estética que esses filmes seguiam vem muito do expressionismo alemão, com elementos que servem para desorientar o espectador: planos tortos, plongée e contra-plongée, fumos, neblina, chuva e ambientes urbanos noturnos. O visual sombrio era caracterizado pelas paletas de cores limitadas ao preto e branco, o que intensificava a atmosfera dramática e fazia fortes contrastes. 

Em entrevista ao Cinéfilos, Márcio Rodrigo, professor de cinema e audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), afirma que a principal característica dos filmes noir é a forma como os personagens são retratados. Segundo ele, nenhum personagem chega ao final da trama da mesma maneira que parecia ser no início dela. Além disso, não há bons e maus: todos são ambíguos e transitam entre as diversas formas de agir.

Inspirado na obra de Dashiell Hammett, O Falcão Maltês (The Maltese Falcon, 1941) é um clássico do cinema noir [Imagem: Reprodução/IMDb]

A narrativa entre luz e sombra

A época em que surgiu marcou profundamente as características do gênero. Seus elementos visuais e narrativos eram fortemente interligados. Aspectos como o grande contraste entre a luz e sombra trazem à tona o pessimismo do período em que foram produzidos. 

Márcio Rodrigo aponta que os filmes noir também exploravam a área da psicologia. Ele cita a influência das teorias de Freud que, naquela época, já era um grande nome da psicanálise nos Estados Unidos.

A exploração do inconsciente, a parte da mente que guarda a memória, vontades, impulsos e outros sentimentos de forma reservada, marca presença nas obras. As ideias de perda de consciência, não-controle e manifestação de lembranças por meio de sonhos auxiliam a construir parte estética e narrativa desse estilo.

Curva do Destino (Detour, 1945) engloba a estética de sonhos e sombria por meio da nebulosidade apresentada em uma de suas cenas iniciais [Imagem: Reprodução/Youtube/ @TimelessClassicMovie]

O professor ainda menciona que, nos anos 1940 e 1950, muitos filmes estadunidenses eram impactados pela obra de Jean-Paul Sartre, e o noir não ficou de fora disso. O autor foi responsável pela filosofia de que o ser humano não nasce com um caminho ou destino traçado e que suas ações tomadas durante a vida constroem a sua existência, o que caracteriza a teoria existencialista.

“A existência precede a essência.”

Jean Paul-Sartre

A visão de que a humanidade era condenada a ser livre também ajudava na construção dos ares pessimistas e soturnos. Em A Sombra de uma Dúvida (Shadow of a Doubt, 1943), por exemplo, o personagem Tio Charlie (Joseph Cotten) é a representação dessa liberdade sombria.

Tio Charlie era um assassino de viúvas, solitário e desamarrado em relação às convenções sociais da época. Ao longo da história, o personagem mostra ser vítima de seu próprio livre arbítrio ao tentar fugir das consequências de seus erros cometidos.

O aspecto nebuloso dos filmes transcende o visual ao ponto de invadir a narrativa. Márcio Rodrigo aponta que os personagens também não eram mostrados em sua totalidade ao longo dos longas. “É sempre difícil determinar quem é o mocinho e quem é o vilão no final de um filme noir”, conclui.

Apesar de obras do gênero serem, em sua maioria, em preto e branco, isso não se trata de uma regra desse tipo de cinema [Imagem: Reprodução/IMDb]

O fato de filmes noir serem produzidos em preto e branco está mais ligado a fatores produtivos do que a uma questão unicamente estética. Eram obras feitas de maneira comercial e com baixo orçamento, também chamadas, na época, de filmes tipo B.

Os recursos e o tempo eram escassos e dependiam da habilidade dos diretores para a produção de um material comercialmente interessante, ou seja, que tivesse lucro. O período de gravações era reduzido dada a rotatividade das locações e tudo deveria ser gravado dentro de um estúdio. Esses aspectos eram pensados a fim de evitar o gasto de dinheiro e trazer o maior retorno financeiro possível para as obras.

O alto contraste e a ausência de cores ajudavam na construção de uma atmosfera mais melancólica e misteriosa e a poupar gastos. Entretanto, existem filmes noir que fugiram desse padrão. As cores começaram a ser popularizadas com a maior disseminação do Technicolor — sistema de colorização de filmes —, o que permitiu que o gênero deixasse de lado o preto e branco.

Um corpo que cai (Vertigo, 1958) apresenta elementos e formato que se relacionam ao noir, como a presença de um detetive, uma femme fatale e desilusão [Imagem: Reprodução/TMDb]

Em Um corpo que cai, o diretor Alfred Hitchcock utiliza elementos que se relacionam ao cinema noir, apesar de ser colorido. Embora não seja um noir clássico — termo que se relaciona aos produzidos entre 1940 e 1950 —, ele apresenta características narrativas e estéticas que o englobam dentro do gênero.

O cinema noir como espelho da sociedade

Em entrevista ao Cinéfilos, Tatiana de Araújo, doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), aponta que o cinema contribuiu tradicionalmente para moldar a forma com que o público entende determinados momentos sociais.

Essa influência, porém, não é direta, já que depende do entendimento pessoal de cada indivíduo sobre as mensagens veiculadas nas obras cinematográficas. Para a pesquisadora, a intenção subjetiva dos diretores importa menos do que a análise dos formatos utilizados para contar a história em si, porque esses elementos são responsáveis por influenciar as interpretações do público na prática.

No caso dos filmes noir produzidos nos Estados Unidos, o uso da ambientação e da oposição entre claro e escuro pode ser entendida como um artifício que representa a visão da classe conservadora da época sobre questões raciais, de sexualidade e de gênero.

De acordo com Tatiana, os personagens pretos, imigrantes ou gays habitavam o espaço das grandes cidades, dos bares e das casas noturnas, considerados desconhecidos e sombrios. Esses ambientes eram utilizados na construção de uma sensação de perigo para o protagonista, normalmente um homem heterossexual e branco.

“É possível ler a oposição entre claro e escuro a partir do entendimento da luz como representativa de algo positivo. Já a sombra representa os ambientes e as pessoas de um universo desconhecido, perigoso, no qual ninguém merece confiança.”

Tatiana de Araújo

A representação feminina no gênero também acompanha a lógica da oposição entre luz e sombras e pode ser vista em conformidade com a tensão enfrentada pelos papéis de gênero na época. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a sétima arte buscou representar a ansiedade de personagens masculinos com seu retorno à sociedade, sentimento que incluía uma preocupação com mulheres ocupando postos de emprego durante o período em que os homens lutavam no front. “Uma interpretação corriqueira referente à representação feminina no cinema noir é que essa dialogava com a vontade de que as mulheres voltassem para o lar no pós-guerra”, comenta.

Em Fuga do Passado (Out of the Past, 1947), a relação estável entre Jeff (Robert Mitchum) e Ann (Virginia Huston) é abalada pelo retorno do homem a um universo de perigo, corrupção e mulheres enganosas [Imagem: Reprodução/IMDb]

Essa questão apresenta-se nos filmes por meio da dualidade entre as “esposas” e as chamadas femme fatales. Enquanto a personagem da esposa se mantém resguardada nos subúrbios e no espaço do lar, as femme fatales habitam os ambientes noturnos e sombrios e se relacionam de forma intrínseca à atmosfera de paranóia característica dessas obras. Além da ambientação, os elementos visuais e os figurinos também reforçam a oposição entre esses estereótipos e demarcam os espaços ocupados por cada um.

De acordo com o texto Women in Film Noir (Mulherem em Filmes Noir, em tradução livre), escrito por Janey Place, a femme fatale é, normalmente, uma personagem de cabelos longos que fuma, usa maquiagem e joias e é vista, ao mesmo tempo, como uma figura de desejo e perigo. Essas mulheres são marcadas pela atmosfera de sedução e obscuridade, e revelam suas verdadeiras intenções gradativamente ao longo das narrativas.

Em Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), a atração de Walter Neff (Fred MacMurray) pela manipuladora Phyllis (Barbara Stanwyck) é responsável por levá-lo à ruína [Imagem: Reprodução/TMDb]

Segundo Tatiana, as tramas de muitos filmes noir abordam ameaças aos objetivos e à identidade do protagonista masculino. Nesse contexto, a femme fatale apresenta-se como um risco por não estar submetida ao domínio do homem, diferentemente das esposas que permanecem dentro da esfera de controle de seus maridos.

Assim, ao mesmo tempo em que surge como uma projeção sensualizada do olhar patriarcal sobre o corpo feminino, esse estereótipo cinematográfico também pode representar a libertação de determinados papéis sociais condicionados às mulheres na época.

A influência europeia

Embora não fossem uma maioria, parte dos diretores do noir que tiveram destaque não eram dos Estados Unidos. A presença européia de cineastas moldou parte do gênero, seja pela perspectiva que a guerra trouxe a esses diretores ou pelas diferentes noções cinematográficas que exportaram ao cinema estadunidense.

“O crescimento do fascismo e a ascensão de Hitler ao poder geraram tensões e medos em muitas áreas da vida alemã. Muitos cineastas sentiram-se compelidos a deixar a Europa, entre eles vários diretores de considerável prestígio em seus países, mas em grande parte desconhecidos do resto do mundo.”

Bruce Crowther em Film Noir: Reflections in a Dark Mirror

O Directors Guild of America (DGA), sindicato que representa os diretores de cinema e televisão nos Estados Unidos, considera “o gênero noir como o descendente cinematográfico, ou mesmo o ápice, do expressionismo alemão da década de 1920”. O texto também aponta que muitos desses diretores tiveram que abrir mão da autonomia criativa. Edgar G. Ulmer, diretor de Curva do Destino e Fuga ao Passado (Out of the Past, 1947), foi um dos que tiveram que driblar os baixos orçamentos oferecidos a filmes tipo B.

Por outro lado, Fritz Lang “teve grande influência na em Hollywood”. O texto aponta o austríaco como “pai do film noir”. Lang dirigiu Metrópolis (1927), marco do expressionismo alemão, gênero que, assim como o noir, era pessimista quanto à natureza humana e tinha aspectos tenebrosos.

Alfred Hitchcock também era europeu. Nascido na Inglaterra, o cineasta não foi aos Estados Unidos por consequência da Segunda Guerra Mundial. Por já ter seu trabalho conhecido no país, o diretor recebeu um convite para filmar em Hollywood.

Influências do noir em obras contemporâneas

Embora o noir possa não existir essencialmente da mesma forma que na década de 1940, alguns filmes de investigação policial subsequentes carregam semelhanças fortes. Chamado de neo-noir, o subgênero se adapta ao público moderno mantendo características parecidas.

Em Blade Runner – O Caçador de Androides (Blade Runner, 1982), além de conter personagens como um agente particular e uma femme fatale, o ambiente urbano, sombrio e decadente do longa são fatores que lembram o cinema noir. Além disso, a visão crítica quanto ao pessimismo da sociedade também é um elemento vindo do gênero.

A complexidade moral de Rick Deckard, personagem principal de Blade Runner, é uma clara semelhança com noir clássico [Imagem: Reprodução/IMDb]

Alguns outros longas que trazem semelhanças do noir são Chinatown (1974), Seven – Os Sete Crimes Capitais (Seven, 1995), Los Angeles: Cidade Proibida (L.A. Confidential, 1997) e A Ponta de um Crime (Brick, 2005). Mesmo com abordagens diferentes, eles trazem a sensibilidade da estética clássica e despertam o interesse do público. Porém, um outro gênero policial também começou a ganhar destaque na contemporaneidade. 

Segundo Márcio Rodrigo, com a ausência de censuras como as do Código Hays, houve uma ascensão dos true crimes, produções que se baseiam em crimes reais. “Eu acho que, de certa maneira, esses crimes reais inspiraram muitos documentários, mas muitas séries e filmes de ficção também”, afirma. Em termos de narrativa, eles são quase como substitutos dos filmes noir para as gerações mais novas.

O consumo por essas produções também aumentou. Uma pesquisa da Vivint revelou que os fãs de true crime nos Estados Unidos gastaram em média 3,8 horas por semana consumindo esse conteúdo em 2022. Mas o sucesso do gênero não se restringe à América do Norte. Segundo relatório da Parrot Analytics, o Brasil foi responsável em 2023 pela metade das produções de casos reais em toda América Latina.

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