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A ciência como produto de seu tempo e de seus idealizadores

É inegável a importância da ciência no nosso dia a dia, diversas pesquisas e descobertas científicas permitiram uma melhora em nossa qualidade de vida ao longo das últimas décadas. Entretanto, esta área do conhecimento não é independente do tempo em que está inserida e de seus idealizadores, de forma que, no decorrer da história, a …

A ciência como produto de seu tempo e de seus idealizadores Leia mais »

É inegável a importância da ciência no nosso dia a dia, diversas pesquisas e descobertas científicas permitiram uma melhora em nossa qualidade de vida ao longo das últimas décadas. Entretanto, esta área do conhecimento não é independente do tempo em que está inserida e de seus idealizadores, de forma que, no decorrer da história, a ciência foi, muitas vezes, utilizada para sustentar um pensamento discriminatório e manipulada em prol do interesse específico de um grupo.

A “teoria de superioridade da raça branca” e a classificação da homossexualidade como uma doença psiquiátrica são exemplos claros de como a ciência pode ser usada para reforçar estigmas preconceituosos. Na época em que foram idealizadas, as duas teorias estavam de acordo com o pensamento geral da população e, ao serem submetidas a testes e pesquisas, o conhecimento defasado da época permitiu que fossem consideradas confiáveis. 

A historiadora e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Márcia Regina Barros da Silva, ressalta que “a ciência é uma atividade histórica porque ela se relaciona com o tempo em que foi feita”. Com o avanço da ciência e do pensamento da sociedade, foi possível comprovar que essas teorias eram infundadas.

Por outro lado, existe um tipo de manipulação científica que não é consequência do período histórico em que está inserida, mas sim, unicamente dos interesses de grupos específicos. O movimento antivacina e o movimento negacionista do aquecimento global exemplificam essa conjuntura. Nesse caso, cientistas financiados manipulam resultados de pesquisas para beneficiar interesses privados.

 

Manipulação da Ciência

 

Movimento antivacina

O movimento antivacina popularizou-se no final da década de 1990 com um artigo publicado pelo médico Andrew Wakefield na prestigiada revista científica The Lancet. Em seu texto, Wakefield apontou uma relação entre a vacina da tríplice viral, que protege contra o sarampo, caxumba e rubéola, e o autismo. O médico teria chegado a essa conclusão depois de analisar doze crianças portadoras da síndrome, em que oito teriam manifestado os primeiros sintomas duas semanas após a imunização. Afirmava que a vacina teria provocado estímulos excessivos no sistema imunológico das crianças, causando uma inflamação no intestino elevando as toxinas ao cérebro.

Pouco tempo após sua publicação, o artigo foi desmentido. Investigações comprovaram o envolvimento de Wakefield com um grupo de advogados que almejavam entrar com ações contra a indústria farmacêutica. Os dados utilizados na pesquisa foram fraudados e manipulados para cooperar com esse objetivo, e o médico teve seu registro profissional suspenso.

Apesar da pesquisa ter sido desmentida, sua grande repercussão na mídia foi suficiente para que o movimento antivacina tomasse forma, provocando surtos de doenças antes consideradas controladas, como o sarampo.

Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu esse movimento na lista dos dez maiores riscos à saúde global, pois “ameaça reverter o progresso feito no combate às doenças evitáveis por imunização”. Atualmente, diversos governos ao redor do mundo buscam enfrentar essa resistência dos pais através de algumas medidas, como a obrigatoriedade da criança estar com a vacinação em dia para ser mantida na escola.

Imagem: Valdecir Galor (SMCS)/ Fotos Públicas

 

Negação do aquecimento global

Documentos divulgados pelo Greenpeace, em 2015, comprovaram que as pesquisas do cientista Wei-Hock Soon, conhecido por negar o aquecimento global, foram patrocinadas por companhias de energia. O cientista que defende as variações na energia do sol como uma explicação para o aquecimento global recebeu 1,2 milhões de dólares de indústrias de combustíveis fósseis para realizar suas pesquisas.

Os documentos divulgados incluem correspondências entre Soon e as empresas às quais estava vinculado, em que ele afirma que completou seus artigos apenas em troca de dinheiro.

Conforme mostrado no documentário Mercadores da Dúvida, do diretor Robert Kenner, Fredrick Seitz e Fred Singer também são nomes relevantes dentro do movimento negacionista do aquecimento global. A dupla de físicos foi acusada de aplicar estratégias para “manter a controvérsia viva”, negando evidências científicas. Além disso, Seitz e Singer exerceram funções de destaque no período da Guerra Fria, de forma que este negacionismo foi ligado a um pensamento anticomunista e conservador, que nega todo problema que necessite de uma maior intervenção do Estado para ser solucionado.

 

Indústria do tabaco

A indústria do tabaco utilizou a mesma estratégia de “manter a controvérsia viva” para esconder entre a fumaça do cigarro os malefícios de seu consumo. Durante anos, cientistas e médicos, patrocinados pela indústria, emprestaram sua credibilidade para colocar em dúvida as consequências nocivas do consumo do tabaco para a saúde da população.

O resultado dessa posição assumida por alguns profissionais foi o estabelecimento de uma ligação entre o consumo de cigarro e a liberdade individual. Os apoiadores dessa ideia partiam em defesa da não interferência do Estado em decisões pessoais, ignorando os danos causados pelo tabagismo passivo em locais fechados onde se era permitido fumar.

 

O mau uso da ciência

 

Teoria de superioridade da raça branca

O termo “eugenia” foi criado pelo cientista Francis Galton em 1883. Galton utilizou a teoria da seleção natural, idealizada por Charles Darwin, para defender uma “sociedade perfeita” que, para ele, só seria possível eliminando o alcoolismo, as doenças e a miséria, características que ele associava à população pobre de Londres. Para Galton, a solução seria garantir que os ricos deixassem mais descendentes que os pobres.

Em pouco tempo, a “teoria científica” de Galton tornou-se base para justificar o racismo, de modo que o Brasil do século 19, pós abolição da escravidão, utilizou desse conceito para idealizar políticas públicas que visavam um embranquecimento da população, em busca dessa “sociedade perfeita” e de uma “raça superior”.

A alta taxa de mortalidade da população negra no Brasil, ligada às péssimas condições de vida desse grupo, foi apresentada como uma consequência da seleção natural, algo benéfico, já que essa população poderia, enfim, ser substituída por imigrantes brancos.

A associação da pele negra com o comportamento criminoso é fruto do uso de conceitos eugenistas nas esferas médicas e psiquiátricas, implicando na forma como o negro é enxergado e tratado no Brasil até hoje.

Nos Estados Unidos, as ideias eugenistas também tiveram destaque através de leis decretadas em 1924 que impunham a esterilização compulsória de alguns grupos como negros, latinos e pessoas com deficiências, em 27 estados americanos. Estima-se que foram realizadas aproximadamente 60 mil esterilizações em nome de uma “melhoria da raça”.

A eugenia manteve sua força nos anos que seguiram com o uso de suas ideias na Alemanha nazista de Hitler. A busca pela raça pura provocou a morte de milhares de pessoas que não atendiam ao ideal ariano do ditador.  

 

Inferioridade da mulher

Charles Darwin escreveu no segundo volume de seu livro A Origem dos Homens, publicado em 1871, que “o homem é mais poderoso em corpo e mente que a mulher, e no estado selvagem ele a mantém numa condição de servidão muito mais abjeta que o faz o macho de qualquer outro animal; portanto, não surpreende que ele tenha ganhado o poder de seleção”. As palavras de Darwin estavam de acordo com o pensamento geral da época, que atribuía à mulher uma posição de inferioridade em relação ao homem.

As mulheres negras foram as maiores vítimas da repercussão desse tipo de pensamento. O médico James Marion Sims, considerado pioneiro da ginecologia moderna, realizava cirurgias sem anestesia em mulheres escravizadas. A existência de teorias que defendiam a inferioridade dessas mulheres em decorrência de seu gênero e de sua cor de pele tornava possível esse tipo de experimento desumano em nome da “ciência”.

Até hoje, nenhum estudo comprovou que as mulheres são inferiores aos homens, apesar disso, esse discurso continua sendo reproduzido. Em 2017, um engenheiro do Google afirmou em um e-mail interno vazado que a ausência de mulheres em altos cargos de tecnologia estava ligada às “diferenças biológicas” entre homens e mulheres.

 

Homossexualidade como doença 

Em 1886, o sexólogo austríaco Richard von Krafft-Ebing classificou a homossexualidade como uma patologia. A partir dessa classificação, a homossexualidade passou a ser tratada como uma doença passível de tratamento. 

A Associação Americana Psiquiátrica publicou, em 1952, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, nele a homossexualidade foi apontada como uma doença mental. 

Mesmo que nenhuma pesquisa até hoje tenha comprovado que a homossexualidade é um tipo de desordem mental, essas classificações legitimaram a chamada “cura gay”, em que milhares de pessoas são submetidas a “tratamentos” violentos em busca da heterossexualidade. 

Sem comprovação científica, a Associação Americana de Psiquiatria retirou em 1973 a homossexualidade da lista de transtornos mentais do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais II. Anos depois, a OMS também retirou a orientação sexual da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados com a Saúde. Contudo, os anos de estigmatização da população LGBTQIA+ repercutem até hoje, sendo responsáveis pelo alto índice de crimes de homofobia.

Marcha do Orgulho LGBT de Nova Iorque em 2019. Imagem: Michael Appleton / Gabinete de Fotografia da Prefeitura/ Fotos Públicas

 

Como evitar esse tipo de manipulação? 

Para Silva, investir na democratização do acesso à ciência é uma possível solução para o problema. Ao garantir a visibilidade dos resultados de pesquisas, esses tópicos se tornam passíveis de serem discutidos, evitando que resultados manipulados passem despercebidos: “Na medida em que você não tem acesso à ciência, ela passa a ter menos transparência”.

Mas a ciência, para ter qualidade e ser confiável, precisa ser neutra? O pesquisador e docente do Instituto de Biociências da USP e doutor em Integrative Biology pela Universidade da Califórnia, Diogo Meyer, defende que a neutralidade dentro da ciência é um mito, “essa ideia é defendida como se ela garantisse um rigor metodológico, uma ciência livre de vieses, mas hoje em dia a maior parte dos filósofos da ciência reconhecem que isso é uma autoilusão”.

A neutralidade na ciência seria inalcançável, uma vez que cada cientista é produto do meio e do período histórico em que vive: “ele [o cientista] pode fazer uma boa ciência tendo seus valores”.

Portanto, Meyer argumenta que para garantir a objetividade da ciência é necessário garantir a diversidade epistêmica, ou seja, de conhecimentos, dentro da comunidade científica, de forma que ocorra uma vigilância mútua: “uma comunidade científica que tem mulheres, homens,  negros, de minorias religiosas, vai ser mais resistente à adoção de ideias pseudocientíficas que interessam a um grupo, justamente por causa dessa diversidade”. 

 

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