Por Ana Carolina Mattos (a.carolinamattos@usp.br)
Falar em cinema latino-americano implica a existência de um cinema único entre os mais de 30 países que compõem a América Latina, uma generalização dos mais complexos e distintos cinemas. Mas, mesmo assim, existe certo senso e união entre a produção artística dessas nações, principalmente para os consumidores.
Segundo Carolina Amaral, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) e pesquisadora de cinema na América Latina, a generalização ao falar de um cinema latino-americano é usada para se referir a um conjunto heterogêneo de cinematografias de uma região.
Amaral aponta as décadas de 1960 e 1970 como essenciais para essa construção: “Houve uma série de intercâmbios entre cineastas de diferentes lugares da América Latina. Essas circulações e intercâmbios ficaram conhecidos como ‘Novo Cinema Latino-americano’”, explica. “Embora não se tratasse de um projeto estético, esse termo reuniu filmes engajados com as pautas revolucionárias da América Latina e com um forte discurso latino-americanista e anti-imperialista”. Assim, se construiu uma espécie de unidade cinematográfica na região, mas, antes disso, cada país teve seu desenvolvimento e introdução ao cinema.
O surgimento do cinema e a sua chegada à América Latina
Produto de uma era de mudanças e avanços tecnológicos, o que hoje entende-se como câmera de filmagem surgiu em diferentes partes do mundo ao final do século 19. A invenção do cinema e do cinematógrafo é comumente atribuída aos irmãos Auguste e Louis Lumiére, os chamados pais do cinema, embora o objeto tenha sido criado, na verdade, por Léon Bouly. A criação é considerada um aperfeiçoamento da invenção de Thomas Edison, o cinetoscópio, objeto que possibilitava a projeção de um filme para apenas uma pessoa por vez.

O cinematógrafo era uma espécie de projetor que colocava as imagens gravadas, semelhante às fotografias, em movimento. O objeto pesava de três a cinco quilos, utilizava negativos perfurados e era movido manualmente por uma alavanca. Portanto, não precisava de energia elétrica para funcionar.
Em 28 de dezembro de 1885, a primeira exibição dos irmãos Lumiére ocorreu no Salão Indiano do Gran Café de Paris, na França. Foram exibidos dez curtas filmagens, que consistiam em imagens do dia a dia, com a primeira, e também mais famosa delas, sendo A Saída da Fábrica Lumiére em Lyon (La Sortie de l’usine Lumière à Lyon, 1895). Recebido por curiosidade e euforia pelo público, muitos estudiosos consideram que foi a partir desse evento que o cinema nasceu.

No ano seguinte à primeira exibição, em 1896, os irmãos prepararam representantes com o objetivo de expandir seu negócio e sua invenção ao mundo. Assim, dois grupos foram enviados à América Latina, um deles com destino ao Rio de Janeiro, Buenos Aires e Montevidéu e outro com destino ao México e à Cuba.
As primeiras exibições na América Latina começaram ainda em 1896, mas, como as novas tecnologias vinham da Europa e América do Norte, boa parte dos equipamentos eram operados por europeus. Apesar disso, cada país latino-americano tem suas adversidades quanto ao seu fazer cinematográfico e como a sua indústria se desenvolveu ao longo do tempo.
O cinema mudo na América Latina (1896-1930)
Argentina

Em 18 de julho de 1896 ocorreu a primeira exibição no país, em Buenos Aires. Orquestrada por Francisco Pastor e Eustáquio Pellicer, o espetáculo era composto por projeções do cotidiano argentino, com pessoas deixando seus locais de trabalho e comendo. As projeções logo se mostraram um fenômeno, caindo rapidamente nas graças da população e levando à construção de locais específicos para as projeções nos anos seguintes.
O cinema se estabeleceu mais formalmente no país a partir de 1902, quando projeções estrangeiras passaram a ser exibidas. Obras como Fire! (1901), de James Williamson, e O Diabo em um Convento (Le Diable au Couvent, 1900), de George Melies, já eram difundidas e amplamente consumidas pelo público argentino.
Na época, as produções argentinas continuavam concentradas na captação do cotidiano. Um dos filmes mais famosos do período são as imagens do então presidente brasileiro, Campo Sales, chegando à Argentina em 1897, gravadas pelo francês Eugênio Py, considerado um dos pioneiros do cinema argentino.
Quatro anos depois, Eugenio Cardini produziu Escenas Callejeras (1901), o primeiro filme narrativo do país, um retrato de uma calma rua argentina que é perturbada quando um ciclista colide com um pedestre. Cardini foi responsável por outras produções similares como En Casa del Fotógrafo (1902), Tedum del 25 de Mayo (1902) e Regimento Ciclista (1902), o único deles a ter uma exposição pública.
Nos anos seguintes, o cinema argentino se tornou ainda mais robusto, com o surgimento de filmes de ficção, como A Revolução de Maio (La Revolución de Mayo, 1909), de Mario Gallo, e de filmes com características mais documentais, como Bajo el Sol del Pampa (1913). Em 1915, o primeiro sucesso de bilheteria do país foi Nobleza Gaucha.

Dirigido por Eduardo Martinez, Humberto Cairo e Ernesto Gunche, a história do domador de cavalos tomou conta do público argentino. Já no ano seguinte foi lançado Hasta después de muerta (1916), que também foi muito bem recebido pelo público, o que cravou altas expectativas para o cinema do país. Elas foram atendidas nos anos seguintes, durante a década de 1920, com grandes projetos, como os filmes de Nelo Cosimi e outras produções impactantes.
Na revista de cinema argentino Imparcial Film de edição 21, datada de 1919, um autor desconhecido escreve: “o cinema nacional deixou de ser um desastroso comercial, já não podemos falar de fotografia ruim, as dificuldades pareciam residir nos atores e enredos”. A frase demonstra esperança e as grandes projeções para o cinema argentino.
Bolívia
Foi apenas em 1920 que o cinema boliviano surgiu. O pioneiro foi o italiano Pedro Sambarino, produtor de documentários e responsável pelo primeiro filme de ficção do país: o longa perdido Corazón Aymara (1925), que acompanha a história de uma mulher que luta contra acusações de infidelidade. Apesar disso, a primeira exibição cinematográfica do país ocorreu em 1897 e, em 1904, foram realizadas filmagens para o filme Retratos de Personajes históricos y de actualidad (1904).

No livro Cine Latinoamericano 1886-1930 (Centro Nacional Autónomo de Cinematografía, 2014), o pesquisador Pedro Susz K. aponta que um dos motivos para a maior dificuldade em difundir o cinema era a população predominantemente rural e analfabeta, além de problemas ligados a questões sociais, que levou os setores mais elitizados do país a obterem pleno acesso ao cinema em 1915.
Em 1923, o cinema boliviano começa a se desenvolver com a fundação da empresa S. A. Cinematografia Boliviana, mais tarde conhecida como Bolívia Film. Ainda na década de 20, foi produzido La Profecia del Lago (1925), de José Maria Velasco Maidana, o segundo longa ficcional da história da Bolívia e também o primeiro a ser censurado, o que fez o longa nunca chegar a ser exibido. No ano seguinte, Arturo Posansky filmou La Gloria de la Rasa (1926), cujo único material restante é um folheto de divulgação.
Arturo Posansky seguiu filmando, principalmente durante 1927, ano marcado por instabilidade política no país, com La Sombria Tragédia del Kenko (1927). No mesmo ano, Luis Castillo filma El Fusilamiento de Jáuregi (1927), um dos mais emblemáticos acontecimentos da história da Bolívia.
Em 1930, o filme Wara-Wara (1930), de José Maria Velasco Maidana, foi considerado um marco para o cinema boliviano. Tido como uma superprodução comparado às outras produções da época, o longa narra a história de uma princesa inca que se apaixona por um homem do exército espanhol. O filme trouxe entusiasmo e positividade para o cinema do país, coisa que não durou muito, pois, tempo depois, o som chegava ao cinema, o que diminuiu as produções bolivianas.

Brasil

A primeira exibição do país ocorreu em 1896, no Rio de Janeiro, e contou com os filmes dos Lumiére e Mellies. No ano seguinte, os irmãos Afonso, Gaetano e Paschoal Segreto, brasileiros filhos de imigrantes italianos, passaram a produzir e exibir filmes propriamente brasileiros, abrindo a primeira sala de exibição do Brasil.
As primeiras filmagens registradas no país foram em 1898, feitas por Afonso Segreto, com a chegada na baía de Guanabara. Mas, em 1900, há registro da criação de um laboratório cinematográfico com objetivo de fazer um cinema entendido como mais natural, que documentaria situações cotidianas e personagens e acontecimentos importantes para o país no momento. Alguns filmes registrados desse período são As Festas da Penha (1900), Um Careca (1900) e Uma Família Acrobática (1900), a maioria deles de autoria de Afonso Segreto.
Em São Paulo, o primeiro registro de uma produção cinematográfica foi em 1905 por Antônio Leal, que, mais tarde, dirigiu o filme Os estranguladores (1908). Mas o primeiro filme gravado e exibido na capital foi O diabo (1908), de Antônio Campos. Mesmo concentradas no Rio de Janeiro, a capital do país na época, existem registros de produções no Paraná e também na Bahia. A quantidade de cinemas se expandiu pelo Brasil a partir de 1907, o que implicou no aumento do número de importações e produção de filmes, muitos deles sendo releituras e até cópias de filmes estrangeiros.
Entre 1908 e 1910, obras como O Comprador de Ratos (1910), de Antônio Leal, O crime da Mala (1910), de Júlio Ferrez, e O noivado de Sangue (1909), de Antônio Serra, consagram narrativas comuns no cinema brasileiro: crimes políticos, crônicas policiais das grandes cidades e a miséria urbana. À época, também foram documentadas a Revolta da Chibata em 1910 por Alberto Botelho e as reformas higienistas na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, desenvolveu-se o cinema erótico, com os primeiros registrados sendo A hora da Mundana (1909) e 606 contra o Espiroqueta Pálido (1911).
Nos anos seguintes, as produções mantêm a recriação e a narrativa de crimes, com os cineastas Irmãos Botelho produzindo O caso dos caixotes (1913) e O crime de Paula Matos (1914). No mesmo ano, um dos maiores nomes do cinema brasileiro surge no Rio de Janeiro: Luiz de Barros. Com uma carreira de quase 60 anos e mais de 50 filmes dos mais diferentes gêneros, o cineasta adaptou obras literárias como Iracema (1917), A viuvinha (1914) e Perdida (1916), além de ter trabalhado com filmes de comédia e aventura.

Enquanto em São Paulo haviam poucas produções de ficção à época, já que a maioria delas consistia em filmagens do cotidiano paulista, o Rio continuava com a ficção baseada na realidade como boa parte de seu acervo cinematográfico, como A Quadrilha do Esqueleto (1917), por exemplo.

Com a revolução sonora no final da década de 1920 e por um curto período de tempo em que o cinema americano se adaptava à nova tecnologia e à crise econômica de 1929, o cinema nacional teve um período de estabilidade e crescimento. Os primeiros filmes sonoros produzidos no país entre 1929 e 1930, apesar de precários, obtiveram sucesso com o público, com Acabaram-se Otários (1929), de Luiz Barros, e Coisas Nossas (1931).
O cinema norte-americano se recuperou de sua breve crise, e as produções brasileiras se tornaram defasadas. Com o aumento nos custos dos equipamentos e da produção, o fazer cinematográfico brasileiro desacelerou.
Cuba

A primeira exibição registrada em Cuba ocorreu em 1897, por Gabriel Veyre, um dos representantes dos irmãos Lumiére. Apenas duas semanas depois do evento, Veyre realizou o primeiro filme de Cuba, Simulacro de Incendio (1897), em que filmava a saída de um quartel de bombeiros e seus materiais.
No ano seguinte é produzido El Brujo Desaparecimiento (1898), o segundo filme do país, mas foi apenas no século 20 que a produção cinematográfica cubana se intensificou. Em 1906, Francisco Rodriguez e Enrique Díaz Quesada, um dos mais importantes cineastas à época, fundaram a Moving Pictures Company, responsável pela produção e distribuição de diversos filmes no país.
Em 1907, Quesada dirige o primeiro longa de ficção de Cuba, Un duello a orillas del Almendares (1907), além de diversos registros de momentos políticos também filmados por Quesada. O cinema se espalhou rapidamente pelo país e, segundo registros, estima-se que em 1912, o interior de Cuba já contava com mais de 100 salas de exibição.
As produções ainda se mantinham crescentes, muitas delas com o envolvimento de Quesada, incluindo um sucesso do período, El rescate del Brigadier Sanguily (1916). Baseado na Guerra dos 10 anos que ocorreu entre 1868 e 1878, a produção era carregada de idealizações e de um passado heróico cheio de esperança na guerra de independência cubana. Por isso, caiu rapidamente nas graças da população.
O filme que encerrou o período do cinema mudo cubano foi El Cabreiro del Mar (1930). Apesar de um número vasto de obras, historiadores estimam que cerca de 83% da produção cinematográfica de Cuba tenha desaparecido e, entre elas, quase todos os filmes dirigidos e produzidos por Quesada. O único filme restante de sua extensa carreira é El Parque de Palatino (1906).

México

A primeira exibição da história do México ocorreu em 14 de agosto de 1896, com o filme A Saída da Fábrica Lumiére em Lyon (1896). No mesmo ano, os enviados franceses dos irmãos Lumiére começaram a filmar pelo país, alastrando o cinema pelo México.
As produções eram majoritariamente não-ficções, com o cinema inicialmente nascido como uma forma de retratar a verdade e o cotidiano mexicano, o que era conhecido como “cinema ciência”. Mesmo assim, o cinema se expandiu rapidamente e, em 1907, já era uma das principais atividades da capital do país.
Em 1908 surgiu o primeiro estúdio de cinema mexicano, que produzia documentários e que, no ano seguinte, realizou um dos projetos mais criativos e incomuns do cinema mudo mexicano, o documentário Entrevista de Los Presidentes Díaz-Taft (1909). O filme tratava de diferentes assuntos em diferentes histórias, característica inédita que revolucionou o fazer cinematográfico mexicano.
Realizado pelos Irmãos Carlos, Eduardo, Guillermo e Salvador Alva, o documentário foi o primeiro de uma série de produções que levaram os irmãos a serem considerados pioneiros no cinema do país. A produção da família se intensificou no ano seguinte com o início da Revolução Mexicana (1910-1917), que foi registrada pelos irmãos em documentários, como Revolución Orozquista (1912), filme que relatava os combates e discussões políticas da época mas, principalmente, a luta política do revolucionário Pascual Orozco.

No mesmo período, os Alva também produziram Viaje de Madero al Sur e Los Sucesos Sangrientos de Puebla. Pouco se sabe sobre essas produções, já que a maioria delas foi destruída e censurada ainda durante o conflito, além de algumas que se perderam com o tempo.
Em 1913 ocorreu o primeiro ganho significativo de bilheteria mexicana até então. El Aniversario del Fallecimiento de la Suegra Enhart (1913), dirigido pelos irmão Alva e baseado em uma produção francesa de Max Linder, narra um dia em que Enhart acompanha sua esposa até o cemitério no dia do aniversário de morte de sua sogra, mas acaba ficando embriagado e se envolve em situações inusitadas.

[Imagem: Reprodução/IMDb]
En Defesa Própria (ano de lançamento não registrado) foi o primeiro filme do país a retratar questões familiares, seguido por Atavismo (1923), que tratava sobre os malefícios do alcoolismo, principalmente no âmbito familiar. Os longas indicavam um aumento na produção de filmes ficcionais no país, que cresceria ainda mais nos anos seguintes.
O primeiro filme sonoro mexicano foi Más Fuerte que el Deber (1931), que, apesar de não muito aclamado, foi essencial para o início da produção de filmes com som no país, que, nos anos seguintes, se tornou um dos principais, se não o principal, polo cinematográfico da América Latina. O México viveu seus anos de ouro no cinema de 1932 a 1958, com a produção estimada de 130 filmes.
As indústrias cinematográficas da Argentina, Brasil e México

Estima-se que, durante a maior parte do século 20, cerca de 90% das produções cinematográficas latino-americanas tenham se concentrado em três países: Argentina, México e Brasil. Segundo a historiadora e Carolina Amaral de Aguiar, eles foram os primeiros que conseguiram desenvolver uma indústria cinematográfica, mesmo com todos os desafios impostos.
A professora afirma que são países com uma indústria cinematográfica muito sólida, situação que se dá, em partes, por suas extensas populações, que se tornam grandes e importantes mercados consumidores. Com relativo isolamento econômico da América Latina à época, as produções eram fortemente dependentes do mercado interno durante um longo período do desenvolvimento do cinema na região, coisa que colocava as indústrias cinematográficas desses países à frente de as de seus vizinhos.
Outro fator importante para o destaque dessas três nações foi o investimento governamental, no caso da Argentina e do México, com órgãos voltados para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional. O professor e crítico de cinema Filippo Pitanga aponta o México como pioneiro ao fazer uma indústria cinematográfica estatal na década de 1930, além de citar investimentos privados no Brasil: “Atlântida cinematográfica, a Cinédia à Vera Cruz, seria um tipo de modelo socioeconômico de mercado”, alega o professor. Demais pontos foram os incentivos fiscais, criatividade nas produções, um grande número de obras e o desenvolvimento de um star system latino-americano.
Semelhante ao conhecido na indústria Hollywoodiana, o star system é uma forma de controle e propaganda, por meio do qual um estúdio instiga curiosidade sobre certos atores na tentativa de torná-los figuras famosas e admiradas, para, assim, atrair o público para os cinemas. Em Hollywood, os principais nomes são Rita Hayworth e Marylin Monroe; na América Latina, a mexicana Maria Félix, uma das atrizes mais bem sucedidas do cinema mexicano; e, na Argentina, Niní Marshal, atriz, cantora e escritora.
O Cinema Revolucionário (1955 -1975)

Em 1959, a Revolução Cubana altera para sempre a história da América Latina, que mais do que nunca se viu em uma encruzilhada política. Esse contexto instigou a produção artística na região de forma muito forte nos anos seguintes, o que deu início à onda de cinema político e revolucionário na década de 1960. Ela rompia com a lógica industrial estrangeira e abraçava a reflexão e a crítica, o que resultou em um aumento nas produções independentes da época.
A historiadora Carolina de Amaral, autora do livro O cinema Latino-americano de Chris Marker (Alameda Editorial, 2016), que explora a participação do cineasta francês Chris Marker no cinema da América Latina nas décadas de 1960 e 1970, aponta que os processos políticos da região criaram redes transnacionais de solidariedade e curiosidade durante o período. Esse fator acabou atraindo olhares europeus e unindo o fazer cinematográfico latino-americano.
“Com o avanço do autoritarismo e os golpes de Estado, ele colaborou com a produção de documentários de denúncia sobre as ditaduras, especialmente no Chile e no Brasil”, diz a pesquisadora. “No caso da Guerra Fria, a trajetória de Chris Marker é interessante para vermos que, no campo cultural, a lógica bipolar é muito limitada para explicar as conexões transnacionais.”

Em 1965, o cineasta brasileiro Glauber Rocha escreveu o manifesto Uma Estética da Fome. O escrito carrega grande base teórica do cinema novo, em que aponta: “Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto: e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome.”
O autor ainda acrescenta: “Sabemos nós — que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto — que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem, mais agravam seus tumores”. O movimento originou-se dessa abordagem, inaugurada por Nelson Pereira dos Santos, diretor de Rio 40 graus (1955), considerado o marco inicial do cinema novo, e Glauber Rocha, diretor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e de um dos filmes mais marcantes não só do Brasil, mas da América Latina como um todo, Terra em Transe (1967).
Terra em Transe acompanha Paulo Martins, um jornalista e poeta que vive no país fictício de Eldorado, onde diferentes forças políticas lutam pelo poder. Paulo fica dividido entre suas próprias concepções, as ideias dos poderosos e as massas em um filme extremamente crítico e fortemente influenciado pelo contexto social e político da América Latina.

O impacto da nova forma de fazer cinema brasiliero foi tanta que, nos anos seguintes, diversas produções críticas surgiram em outros países da América Latina, dando origem ao movimento que ficou conhecido como Terceiro Cinema. Eram filmes independentes, com o objetivo de representar a realidade, lidando com pobreza, opressão e violência e escapando da estética europeia e estadunidense tão vendida e exaustivamente reproduzida.
Algumas das principais produções inspiradas pelo cinema novo são o chileno Três Tristes Tigres (Tres Tristes Tigres, 1968), de Raúl Ruiz, e o argentino Los Hijos de Fierro (1972). Três Tristes Tigres conta com três protagonistas tristes que decidem sair para discutirem e se afogarem em suas tristezas, mas acabam se deparando com situações violentas que ilustram alienação e desesperança. Já Los Hijos de Fierro é tido como uma espécie de símbolo da luta e coragem argentina, que reúne a reprodução de momentos em que a Argentina e seu povo foram ameaçados e sofredores de alguma forma. O diretor do longa, Fernando Solanas, chegou a ser exilado pela produção.

Entre a década de 1960 e 1970, uma série de golpes militares se deram na América Latina, fator que desacelerou o cinema revolucionário latino-americano e levou ao isolamento de muitos cineastas a fim de protegerem suas produções artísticas. O cinema revolucionário, porém, não deixou de existir, se tornando um cinema de resistência.
O professor Filippo Pitanga cita a documentarista brasileira Helena Solberg como uma importante figura da resistência à ditadura. Com crescentes dificuldades para continuar sua carreira no Brasil, Solberg se auto isolou nos Estados Unidos, onde conseguiu produzir seus filmes novamente. “Ela começou a viajar por todos os países latino-americanos que estavam sob regimes militares para falar sobre revolução. Ela passa por Chile, Argentina, México, Nicarágua e Venezuela, com assuntos que no Brasil não tinha liberdade para abordar”, aponta o jornalista. “A produtora viabilizava esses filmes de revolução por toda América Latina.”

Apesar de muitos danificados e alguns ainda perdidos, boa parte dos filmes nascidos do cinema revolucionário latino-americano sobreviveram às ditaduras e foram recuperados. Eles guardam a história do cinema na América Latina até os dias atuais.
