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Hollywood em sua Era de Ouro: como as artistas eram dominadas pelos grandes estúdios

A época glamurosa de Hollywood ergueu-se a partir da exploração dos corpos de artistas mulheres
Por Mariana Daderio Ricci (mariana.ricci@usp.br)

Sob as telas de cinema, incidem olhos admirados. Espectadores projetam-se nos rostos das mocinhas ou no ímpeto dos heróis e, consequentemente, nos atores que os interpretam. O mundo cinematográfico deixa de ser unicamente um contador de histórias e passa a pautar-se no espetáculo, no glamour e na popularidade de suas estrelas. Esse fenômeno é fruto de um período conhecido como a Era de Ouro de Hollywood, responsável pelo nascimento do modelo hegemônico de se fazer cinema que estruturou-se sob o pilar da exploração dos corpos femininos.

Dentro de um contexto histórico de escassez econômica do século 20, o cinema ganhou popularidade nos Estados Unidos como uma ferramenta de  escapismo da realidade de pobreza vivida pela população norte-americana. 

Enquanto outras indústrias tentavam se reerguer do impacto causado pela queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, a indústria cinematográfica dava seus primeiros grandes passos. Ainda na década de 1920, os cinemas de rua recebiam produções não verbais e vendiam ingressos por centavos de dólares para atrair o público arrasado pela Grande Depressão.

O aumento da demanda correspondeu à ampliação em escala e qualidade das produções cinematográficas. Os estúdios firmaram-se como um conglomerado em Los Angeles e consolidaram o espaço como berço da produção de filmes. Nasce, assim, Hollywood como um fenômeno e uma potência que logo tornou-se a força motriz de uma economia devastada. 

Fundados, em sua maioria, por imigrantes judeus, os estúdios representaram uma peça fundamental na criação de Hollywood. Paramount Pictures (1912), Fox Film (1915), Warner Bros. (1923), MGM (1924) e RKO (1928) eram o The Big Five, os 5 estúdios que formavam o oligopólio do sistema hollywoodiano de produção. 

A formação deste sistema de estúdios inaugurou uma nova etapa na produção cinematográfica. The Big Five detinha total controle sobre as etapas de criação dos filmes, que passaram a ser tratados como produtos. Esse domínio  foi essencial para a consolidação de Hollywood como hegemonia global do cinema. 

Os estúdios fundadores apostaram em produções grandiosas e espetacularizadas que chamassem atenção do público ao mesmo tempo que os afastava de sua realidade. 

Kassie Ní Mháthúna, estudante de teatro na South Eastern Technological University Waterford e entusiasta das produções teatrais e audiovisuais da Era de Ouro de Hollywood, afirma que havia uma interseccionalidade muito forte entre o cinema e o teatro da época e que isso foi o principal atrativo dos novos filmes para com o público.

“Hoje, cinema e teatro separam-se muito. No cinema, tudo é mais sútil. Mas na Era de Ouro de Hollywood, muitos dos atores tinham a experiência anterior dos palcos. Então quando olhamos para trás, é nítido a dramaticidade da atuação da época”, aponta a estudante.

O maior símbolo de Hollywood, seu letreiro, foi oficialmente erguido em 1923 e não era para ser permanente [Imagem: Reprodução / Wikimedia Commons]

E quando o cinema se torna espetáculo, nasce a Era de Ouro de Hollywood. Objetivamente, trata-se de um período de ascensão de produções audiovisuais que teve seu auge entre as décadas de 1920 e 1940. Algumas grandes produções do período foram Cleópatra (Cleopatra, 1934), Tempos Modernos (Modern Times, 1936), E o vento levou (Gone With The Wind, 1939) e  O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939).

Artista ou produto?

Se hoje é difícil desvincular o sucesso de um filme do sucesso dos atores que o estrelam, deve-se muito à constituição primordial deste sistema hollywoodiano do período. Para se aproximarem ainda mais de seu novo público, os estúdios se debruçaram sobre os atores e atrizes que estrelavam suas produções.

“Antigamente, tudo que você tinha era um enredo e um ator”

Kassiev Ní Mháthúna, estudante de teatro

Os filmes da Era de Ouro de Hollywood foram constituídos sobre um tripé que reúne o modelo de estúdios, o modo de produção industrial dos longa-metragens e um sistema de mitigação de atores e atrizes. O elenco logo tornou-se o elemento central dos filmes, desde sua atuação que aproximava o público da obra, até a divulgação das produções.

Ao entender a importância dos atores e atrizes no ciclo lucrativo dos filmes, os estúdios expandiram seu controle para além da obra cinematográfica: criaram um sistema de dominação dos corpos de artistas, em especial, das mulheres. 

O “sistema do estrelato” (star system) era como denominava-se o arranjo contratual formulado pelos estúdios. Nele, os artistas assinavam contratos que pressupunham exclusividade da empresa contratante de, no mínimo, 7 anos. Os atores e atrizes ainda podiam ser emprestados para outros estúdios concorrentes por um salário maior, mas a diferença de ganhos ficava para o estúdio.

A formação desse vínculo correspondia que as estrelas ficariam presas a papéis repetitivos e diminuía o poder de escolha sobre quais filmes iriam ou não fazer parte. A cooperação entre as empresas de cinema deixava pouca mobilidade para que os artistas conseguissem negociar melhores ganhos e direitos trabalhistas.

Além da importância na economia local, essa estrutura impactou culturalmente e economicamente grande parte do Ocidente. Nas telonas, astros e estrelas eram projetados com rostos e corpos sedutores e viviam histórias de glamour e riqueza, que cativavam o imaginário dos jovens. Estes passariam a idolatrá-los e a buscar suas maneiras de agir, ser e se comportar.

O “sistema de estrelato” nada mais é, portanto, que a construção arquetípica da individualidade, em que excentricidades e criações múltiplas de personalidades não podem fazer parte de uma estrela de cinema.

E apesar deste contrato parecer vantajoso aos artistas por transformá-los em “deuses”, os malefícios se sobressaíam. Os salários das estrelas eram consideravelmente mais baixos que a receita gerada nas bilheterias. Além disso, os estúdios tinham total domínio sobre a vida dos artistas e podiam controlar sua aparência, seus relacionamentos e muitos outros aspectos de âmbito pessoal. 

Muito mais que um rostinho bonito

A conjuntura político-social do período de ascensão hollywoodiana contribuiu para que artistas mulheres fossem as mais afetadas dentro do star system baseado em contratos. 

Sob uma perspectiva machista e etarista, as atrizes viviam as consequências dos contratos de forma ainda mais acentuada que os homens. Os papéis repetitivos das mocinhas frágeis e indefesas eram os mais populares, associados a mulheres mais novas e que normalmente dificultavam que elas expressassem sua real capacidade interpretativa. 

Com apenas 17 anos, Judy Garland viu-se refém deste sistema. Abdicou de sua adolescência para assumir o papel  Dorothy, protagonista do filme O Mágico de OZ e foi considerada a primeira grande estrela-mirim do cinema. 

Durante a produção, Judy foi obrigada a usar roupas apertadas para parecer mais jovem e comer pouco ou quase nada para não engordar. Além disso, a equipe responsável pelo filme introduziu à Judy remédios opióides que driblassem o cansaço e a fizessem trabalhar mais. Judy morreu aos 47 anos, de overdose. 

Apesar de interpretar uma criança e ser menor de idade, foi assediada por atores que participaram da produção, como conta o livro Judy And I: My Life With Judy Garland (‎Chicago Review Press, 2017), escrito pelo ex-marido da estrela, Sid Luft.

Judy Garland como Dorothy no filme O Mágico de Oz [Imagem: Reprodução / Instagram / vintage.dreamings]

Quando não eram retratadas como jovens e indefesas, as atrizes interpretavam papéis de bombshells, que, em tradução literal, significa “bombástica”. O termo é precursor da expressão sex symbol e era usado para descrever atrizes com curvas acentuadas e seios fartos, consideradas atraentes. 

Normalmente sua representação no cinema era vazia e não ia além de seus atrativos físicos e de sedução. A inteligência e talento das atrizes era, por vezes, descreditado e estas sofriam com o apagamento de sua personalidade e intelecto. 

Marilyn Monroe é provavelmente lembrada pela noite em que cantou um sedutor “Parabéns para você” ao então presidente John Kennedy ou por seu vestido branco flutuante em O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955). Novamente, os estúdios apropriaram-se da vida pessoal da artista e silenciaram toda forma de expressão que se distinguisse da esperada. Marilyn morreu de overdose aos 36 anos.

Marilyn Monroe tornou-se um ícone da moda e representa, até hoje, um dos principais símbolos do período. [Imagem: Reprodução / X / Vogue França]

Ícones como Judy Garland e Marilyn Monroe representavam dois extremos da exploração hollywoodiana. A garotinha delicada e a atraente estrela de cinema convergem suas trajetórias dentro de estereótipos perpetuados na sociedade cinematográfica e explorados financeiramente pelos estúdios. 

“As mulheres não tinham nenhum tipo de autonomia, nunca. Na época, existia essa mentalidade de tirar todo o lucro possível das atrizes e acho que isso fazia a experiência delas nada prazerosa”, explica Kassie.

O processo produtivo de filmes tinha como estágio final  sua divulgação, seja em jornais, rádios ou na recém chegada televisão. Assim como todas as demais etapas, as principais manchetes dos cadernos e programas de cultura, também eram controladas pelo The Big Five

Para chamar a atenção do público, os estúdios forneciam aos meios de comunicação bastidores exclusivos que, por vezes, degradavam a imagem dos artistas. Traições, escândalos e rivalidades eram as principais estratégias. 

Bette Davis e Joan Crawford foram duas atrizes que, além do machismo e etarismo já estruturados, tiveram de lidar com a manipulação da Warner Bros. em sua relação profissional.As atrizes foram figuras fundadoras dos filmes do modelo de produção hollywoodiano e estrelaram em bilheterias milionárias como A Malvada (All About Eve, 1950) e Alma em Suplício (Mildred Pierce,1945), respectivamente. 

Kassie apontou que desde o início de suas carreiras, as duas disputavam os poucos papéis em que não seriam nem mocinhas, nem bombshells, mas protagonistas. Contracenaram juntas pela primeira vez no filme O que Terá Acontecido a Baby Jane (What Ever Happened to Baby Jane, 1962), quando ambas estavam consolidadas como grandes atrizes de seu tempo. 

O mercado para mulheres que passavam dos 40 anos, na época, era hostil e poucas conseguiam papéis de relevância. Para a Warner Bros., produzir um filme em que as protagonistas já estavam na casa dos 50 anos era um grande risco. 

“Eu não daria um centavo por essas duas velhas acabadas…” comentou Jack Warner sobre as estrelas de O que Terá Acontecido a Baby Jane. A estratégia que o empresário usou para que o filme ganhasse a atenção do público foi instigar a rivalidade que permeava as atrizes por toda a carreira. 

Jack Warner pagou informantes que dessem às colunas de fofoca supostas afirmações de Davis contra Crawford e vice-versa. Logo o boato se alastrou e uma rivalidade que até então era subjetiva, tornou-se real e era noticiada em capas de jornais e programas de TV.

O filme tornou-se um dos maiores sucessos da década, com uma receita superior a US$ 9 milhões (cerca de R$ 46 milhões) — valor que, corrigido pela inflação americana, representaria atualmente US$ 90 milhões (cerca de R$ 459 milhões). 

A rivalidade entre Bette e Joan perdurou pelos anos que se seguiram e foi adaptada para a televisão na minissérie Feud: Bette and Joan (Feud: Bette and Joan, 2017) de Ryan Murphy, estrelada por Susan Sarandon e Jessica Lange.

Sobre não manter-se calada

Poucas atrizes conseguiram furar a bolha ou enfrentar os estúdios. Bette Davis, por exemplo, foi a primeira mulher a levar um grande estúdio à justiça. Durante seus primeiros anos de carreira, Davis foi contratada pela Universal Studios, mas quando foi para a Warner Bros. em 1932 que sua carreira alavancou. 

Com alguns anos de casa,  Davis já era uma das mais influentes atrizes de Hollywood. Mas mesmo após ganhar seu primeiro Oscar em 1935, Bette ainda tinha de enfrentar papéis medíocres que a ofereciam e que, sob contrato, não podia recusar. 

Por anos Davis estrelou em filmes de pouco ou nenhum sucesso e, em 1936, decidiu quebrar seu contrato com a Warner e ir à Inglaterra para trabalhar em um estúdio local. Pela primeira vez, uma atriz desafiou publicamente o alto escalão de um dos mais renomados estúdios do período.

O caso foi levado ao tribunal e Bette Davis defendia o direito de atores e atrizes recusarem papéis que não estivessem interessados. Após longos meses de batalha judicial em Londres, a Warner saiu vitoriosa.

Ao final de seu contrato de 10 anos com a Warner Bros., Bette ficou conhecida como a “quarta irmã Warner”, em referência aos fundadores do estúdio [Imagem: Reprodução/ Domínio Público]

E embora Davis tenha perdido o processo legal, voltou aos Estados Unidos como uma heroína e a publicidade que surgiu em torno do evento foi benéfica a sua imagem. Davis permaneceu mais uma década na Warner e emplacou sucessos como Pérfida  (The Little Foxes, 1941), A Estranha Passageira (Now, Voyager, 1942) e Jezebel (1938), que lhe rendeu seu segundo Oscar.

O sistema de contratos fez com que a relação entre estúdios e atores se agravasse cada vez mais. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o orçamento de Hollywood foi fracionado e a escassez de bons filmes aumentou.

Em 1943, a Warner Bros. sofreu novamente com um processo legal amplamente público. Olivia de Havilland, respeitada atriz que estrelou em E o Vento Levou (Gone With The Wind, 1939) e Tarde Demais (The Heiress, 1949), processou a empresa depois de anos de uma relação turbulenta com o estúdio. 

Em uma situação similar a de Davis, Olivia viu o desgaste de sua carreira quando era continuamente emprestada para outros estúdios e obrigada a aceitar papéis indesejados. Em alguns momentos, Olivia teve seu contrato com a Warner suspenso devido a estas “desobediências” e quando o contrato de fato expirou, o estúdio afirmou que ela devia 6 meses de trabalho pelo período de contrato congelado. 

Kassie relembra o caso de De Havilland como um dos mais marcantes do período: “Os estúdios eram seus proprietários. Ela era propriedade da Warner Brothers”.  

Em 1944, a justiça ficou do lado da atriz, numa decisão legal que está entre as mais importantes da história de Hollywood. A vitória aumentou o poder dos artistas quanto a suas próprias carreiras e representou um forte golpe para o star system, também enfraquecido por outras decisões legais, pelo fortalecimento dos sindicatos e pelo surgimento da televisão.

Apesar de ser um interesse particular de Kassie e parte de seu material de estudo, ela faz um alerta: “Hoje em dia, a Era de Ouro de Hollywood é glorificada e vista como glamurosa. Com isso, as pessoas acabam não prestando atenção nas coisas que realmente aconteciam no sistema”.

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