Por Aline Noronha (alinenoronha@usp.br)
No dia oito de fevereiro de 2019, o Brasil entrava em luto pela trágica e prematura morte de dez garotos, com idades entre 14 e 16 anos, após um incêndio generalizado em um dos contêineres destinados à categoria de base do Flamengo, no Centro de Treinamento George Helal. Um caso abafado ao longo do tempo, e marcado por anos de irresponsabilidades e omissões judiciais e fiscais por parte do clube mais rico do país.
Após cinco anos do ocorrido, Daniela Arbex lançou Longe do Ninho (Intrínseca, 2024), um livro-reportagem que propõe uma investigação completa que abrange os momentos antes, durante e depois do incêndio sob a perspectiva dos diversos envolvidos. Posteriormente, a obra foi adaptada pela Netflix em uma minissérie documental chamada O Ninho: Futebol & Tragédia (2024) que resume o ocorrido em três episódios.
“A gente não consegue aceitar”
Daniela transforma a homogeneização de “dez vítimas fatais” em Bernardo, Jorge Eduardo, Gedson, Pablo Henrique, Rykelmo, Christian, Samuel Rosa, Arthur, Vitor Isaias e Athila. Desde os primeiros capítulos, o livro aborda como era a vida cotidiana e familiar dos garotos, e sobretudo como eles foram chamados para compor a base do Flamengo. Vindos de origem humilde, os meninos saíram de diversas regiões do Brasil em direção ao Rio de Janeiro em busca da concretização de um sonho.
Por meio dessa primeira linha de afeto e empatia estabelecida, o decorrer dos fatos leva o leitor para o dia do incêndio através de uma investigação minuciosa. A autora recria temporalmente o que aconteceu dentro do contêiner, pelo relato dos sobreviventes, e no exterior, pela cobertura jornalística e reação das famílias dos garotos. Sem sensacionalismo ou dramatização, Daniela mostra o factual por meio de uma abordagem respeitosa e cuidadosa das vítimas.

Em um mundo em que as tragédias são banalizadas, antes de suas mortes, Daniela mostra as vidas dos atletas e de suas famílias, dá uma identidade a eles e aproxima o leitor do seu lado mais humano [Acervo Pessoal/Roxy Fernandez]
As chamas começaram após um curto-circuito em um dos ar-condicionados nos quartos do contêiner irregular onde os meninos viviam. O local de janelas gradeadas possuía apenas uma porta de entrada e saída que abria para dentro e não era centralizada. Não havia nenhum treinamento para casos de emergência ou luzes para auxiliar em uma evacuação às pressas. O lugar, chamado de “arapuca mortal” durante o processo, chegou a alcançar 600 graus celsius. O incêndio ocorreu às 5h14 da manhã, e até o fim da tarde os corpos continuavam quentes.
“Debaixo daqueles escombros havia o futuro. E ninguém está preparado para enterrar o futuro.”
Pela primeira vez, o caso teve uma apuração tão minuciosa que trouxe a público detalhes da morte dos garotos que nem seus pais sabiam. Acreditava-se que todos os meninos estavam desacordados durante o incêndio, enquanto, na realidade, oito deles tentaram escapar. Gedson perdeu a consciência quando estava a menos de um metro da saída, e apenas Bernardo foi em direção oposta à porta.

“Dez dos 14 sobreviventes tiveram apenas 45 segundos para fugir do local pela única porta de acesso da estrutura. Depois disso, nenhum garoto conseguiu chegar até a entrada, embora a maioria tenha tentado encontrar a saída” [Acervo Pessoal/Roxy Fernandez]
É uma leitura com gatilhos e muito pesada, mas também necessária, de acordo com a autora: “Se uma história não é contada, é como se ela não tivesse existido”. Conhecer as famílias e amigos dos garotos, bem como todo o processo, desde a irresponsabilidade do Flamengo no dia da tragédia até a dor do enterro de cada um, humaniza e traz à memória um caso que após anos parecia cair no esquecimento.
“Não se tira o sonho de um jogador”
Após a dor e angústia, Daniela demonstra o jornalismo em sua essência ao expor o desenrolar judicial: a autora divulgou o nome completo e cargo de todos os envolvidos no caso, tanto os que corroboram com a justiça como os que foram negligentes. Há anos, o Flamengo permitia o funcionamento do CT de base de maneira irregular, sem cumprir as normas básicas de segurança para os garotos. Segundo as apurações, a tragédia poderia ter sido evitada.
“De 1° de março de 2012 a 8 de fevereiro de 2019, o Flamengo recebeu, por parte de órgãos públicos do Rio de Janeiro, inúmeras oportunidades de se adequar. Já os jovens atletas vítimas do incêndio não tiveram nenhuma chance.”
Longe do Ninho denuncia as omissões que causaram o incêndio e como a diretoria do clube se aproveitou da lentidão da burocracia estatal para abafar o caso pública e judicialmente – após seis anos, os culpados não foram punidos criminalmente. Já sobre os acordos extrajudiciais com os familiares das vítimas, nesta última terça-feira (4), os pais do goleiro Christian conseguiram estabelecer um acordo com o clube.

Em entrevista à Jornalismo Júnior em 2023, Daniela afirma que “meus livros colocam o leitor em um lugar que às vezes é muito desconfortável, mas é um lugar que ele, pela primeira vez, consegue se enxergar na posição do outro” [Acervo Pessoal/Roxy Fernandez]
No fim, o livro mostra quem realmente é sentenciado nesse tipo de tragédia: a família e os amigos que são condenados a viver com um vazio eterno e sem conforto – “Dos filhos que não alcançaram a vida adulta, só o que viram crescer foi a saudade”. Mycael, amigo próximo de Bernardo e goleiro do Athletico Paranaense, leva em todas as suas partidas uma foto dele consigo. Além disso, Cauan Emanuel, atual atacante do Maranguape e sobrevivente, tatuou o nome de todas as vítimas em seu braço direito.

A torcida do Flamengo financiou um muro com o rosto de todas as vítimas e prometeu nunca esquecer dos “nossos dez”, como ficaram conhecidas [Acervo Pessoal/Roxy Fernandez]
O livro é um alerta para a sociedade começar a prestar mais atenção às categorias de base do país do futebol, independentemente de sua torcida ou até mesmo se acompanham ou não o esporte. Daniela também expõe os desafios que todos os garotos da base passam cotidianamente para realizarem o sonho de se profissionalizar, desde condições ainda piores que as enfrentadas pelos nossos dez até problemas psicológicos que levarão para a vida toda por causa da separação precoce de suas famílias.
Imagem da capa: [Acervo Pessoal/Roxy Fernandez]