Por Thaís Santana (thais2003sc@usp.br)
O Diretório Central dos Estudantes Alexandre Vannuchi Leme, também conhecido como DCE Livre da USP, é a maior entidade representativa dos estudantes da universidade de São Paulo. O nome do centro foi dado em homenagem a Alexandre Vannuchi, ex-aluno do IGC-USP (Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo), que foi assassinado e torturado durante o regime militar no Brasil. Seu nome é usado como um lembrete da missão de resistência abraçada pelo movimento estudantil nacional.
Para conhecer melhor essa personalidade, a Jornalismo Júnior entrevistou Camilo Vannuchi, jornalista formado pela ECA-USP e escritor cujos temas de maior destaque são os direitos humanos e a ditadura militar. Em janeiro de 2024, Camilo publicou o livro “Eu só disse meu nome”, uma biografia de Alexandre Vannuchi Leme. Também apresenta o podcast de mesmo nome, disponível no Spotify, que narra a história em quatro episódios.
Camilo é primo em segundo grau de Alexandre e filho de ex-preso político, além de ter sido membro e relator da Comissão da Verdade da Prefeitura de São Paulo em 2016. Ele conta que sua maior motivação para escrever o livro biográfico de Alexandre Vannuchi foi o fato de perceber que as pessoas, principalmente os mais jovens, já não sabiam mais quem Alexandre foi.
“Eu perguntei para vários estudantes, inclusive dentro do DCE se sabiam quem era Alexandre Vannuchi. As pessoas não sabiam, não lembravam o nome, não sabiam qual era a história dele. Minha ideia para o livro é recuperar essa história.”
Infância, adolescência e família
Alexandre nasceu em 5 de outubro de 1950, em Sorocaba, no interior de São Paulo. Filho de professores católicos protestantes e irmão de quatro meninas e um menino. Tinha uma relação muito próxima com os primos, inclusive com o pai de Camilo Vannuchi.
“Ele é primo do meu pai, da mesma idade. Os dois nasceram em 1950, então cresceram muito próximos. Embora morassem em cidades diferentes, no interior, se visitavam muito. Coisa de ter avós em comum”, diz Camilo. Ele conta que essa proximidade da família foi diminuindo com o tempo, principalmente por conta da distância.
Alexandre tinha uma paixão pela geologia desde a infância. Colecionava pedras e as ganhava de presente. Procurava por elas em seus passeios, piqueniques e excursões de final de semana. “Com mais ou menos 11 anos, ele e seus primos pegavam pedras no chão e ele sabia exatamente dizer qual o tipo da pedra. Ele tinha esse fascínio pelas rochas desde muito cedo”, conta Camilo.

Alexandre Vannuchi era bastante estudioso. Naquela época os vestibulares não eram unificados, e o rapaz foi o primeiro colocado no vestibular de geologia. “Os primos e as irmãs sempre lembram dele como a última luz acesa da casa a se apagar, a pessoa que ficava lendo até tarde da noite”, afirma o professor Camilo.
De acordo com os relatos coletados pelo jornalista, Alexandre era um ótimo aluno, tirava notas boas nas provas e todos os professores gostavam dele. Era chamado para fazer trabalho de pesquisa e estágios. Durante a faculdade, passou a morar em uma república no bairro de Itaim-Bibi na capital paulista.
Militância estudantil e ditadura militar
Durante os anos de universidade, ele se aproximou da resistência à ditadura, por meio do movimento estudantil. Foi o representante discente de seu curso na congregação e no Conselho de Centros Acadêmicos desde 1972.
O professor Camilo pontua que, até então, Alexandre não tinha nenhuma atividade de resistência à ditadura, além do olhar crítico. Também tinha algumas críticas ao comunismo e ao socialismo, devido às experiências que estavam acontecendo ao redor do mundo. No entanto, a brutalidade do regime brasileiro teria dado novas visões de mundo para o jovem.
“Os anos Médici, foi o período de maior truculência da ditadura, de tortura, de execuções sumárias”, diz o jornalista. “Desses atestados, certidões de óbito forjadas, médicos legistas que assinavam e colocavam uma causa da morte muito diversa da verdadeira. Então isso faz com que ele acabe caminhando cada vez mais ali para apoiar o movimento estudantil e apoiar iniciativas de combate à ditadura.”
Em 1968, o AI-5 passou a proibir a existência de Diretórios Centrais de Estudantes (os DCEs), permitindo apenas, em algumas universidades, um cargo de representação estudantil escolhido pelo governo federal. Naquele momento, os centros acadêmicos estavam proibidos de fazer qualquer manifestação, evento ou organização que abrangesse discussões políticas ou emancipasse pautas estudantis.
Nesse contexto, a principal bandeira das universidades seria a retomada de um DCE combativo e independente.
Nos anos 70 foi criado o Conselho de Centros Acadêmicos, instituição que organizava reuniões clandestinas em lugares estratégicos e sem aviso prévio, como forma de evitar a repressão governamental. Durante esse período, diversos estudantes da USP e de outras universidades foram presos e até mesmo mortos. Foi o caso de Alexandre, que foi sequestrado e morto.
Em 1976, quando o DCE é retomado na USP, além de trazer o termo “livre” para enfatizar o compromisso com a democracia e independência governamental, foi nomeado em homenagem ao militante.
Fernanda Ikedo, autora do livro Ditadura e Repressão em Sorocaba: Histórias de quem resistiu e sobreviveu (2003), relata sobre a batalha estudantil durante a ditadura militar. “A violência do governo unia as pessoas em torno da bandeira de lutar contra a repressão, censura, mortes e assassinatos”. Ela explica que essa motivação ia desde os grêmios até os centros acadêmicos e formava um movimento dentro da União Nacional dos Estudantes.

Na década de 70, entre as principais pautas do Movimento Estudantil estava a disputa dos alunos da USP para reformular o vestibular e aumentar o número de vagas. Nesse contexto, o vestibular da Fuvest não existia e o modelo de aprovação do processo seletivo era outro. Houve também um plebiscito sobre a gratuidade do ensino público. Existia proposta do governo federal para que as universidades, mesmo as do Estado e as federais, tivessem mensalidade. A ideia da não cobrança de mensalidade acabou sendo vitoriosa.
Um dos feitos de Alexandre foi a oposição à construção da Transamazônica. Diversos pesquisadores do meio ambiente denunciaram a catástrofe do projeto, pois esse causaria impactos graves na flora e na fauna da região. Junto à universidade, o militante escreveu uma espécie de relatório de impacto extra oficial, na qual ele manifesta as prováveis consequências ecológicas e econômicas da obra, como a interrupção de atividades de pesca e de sobrevivência das populações nas beiras dos rios.
Fora da universidade, o país estava passando por um processo de luta pela redemocratização. Eram reivindicadas as pautas de trazer de eleições diretas para governantes, o fim da repressão militar e do encarceramento em massa, sobretudo de estudantes.
Prisão e morte
No dia 15 de março de 1973, Alexandre desapareceu. Camilo, que investigou esse dia para seu livro reportagem, explica que o rapaz tinha o hábito de voltar para Sorocaba no final de semana. Daquela vez, ele não havia voltado e não avisou ninguém. Era uma semana de recepção dos calouros e seus colegas do movimento estudantil, sua namorada e outros alunos que moravam com ele na república estranharam sua ausência.
Não houve testemunhas sobre como e onde ele havia sido preso. “Na minha reportagem, consigo falar com uma pessoa que estava presa no DOI-CODI e viu ele chegar e ir direto para a sala de tortura”, conta Camilo.
Criados no final da década de 1960, os DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) foram órgãos governamentais de repressão para investigar atividades consideradas de oposição ao governo. As celas do local eram completamente fechadas com portas de ferro, enquanto as salas de tortura tinham equipamentos que submetiam os presos a choques, afogamento, abuso sexual, entre outras violações brutais.
Alexandre não somente estava envolvido com o movimento estudantil, mas era também uma ponte de divulgação entre a universidade e a ALN (Ação Libertadora Nacional), uma organização de resistência armada à ditadura, fundada em 1967 por Carlos Marighella. O estudante passou pela solitária e sala de tortura inúmeras vezes até o sábado da mesma semana, já muito debilitado.
De acordo com o relato de seis presos que estavam nas outras celas coletivas, que prestaram depoimentos na Auditoria Militar, antes de ser assassinado naquela manhã de 17 de março, Alexandre reproduziu uma frase em voz alta:
“Meu nome é Alexandre Vanucchi Leme, sou estudante de geologia, me acusam de ser da ALN, eu só disse meu nome”.
Camilo Vannuchi explica que essa seria uma tentativa de identificá-lo caso ele desaparecesse. As pessoas saberiam seu nome, onde ele estudava e sua relação com a ALN (que provavelmente ele teria negado), e dessa forma, poderiam avisar sua família. O jornalista também acrescenta que os carcereiros, como primeira tentativa para forjar a morte, cortam o pescoço de Alexandre com uma lâmina de barbear e afirmam que o jovem cometeu suicídio.
As celas foram revistadas para encenar a busca deles pela suposta lâmina. Seis dias depois do dia 23, os jornais afirmavam que o estudante havia sido morto por um caminhão, após tentar fugir de um policial.
Homenagens e repercussão
A família ficou sabendo da prisão de Alexandre por meio do telefonema de um de seus colegas no sábado de 17 de março. Na segunda-feira, o pai dele, José, viajou para a capital paulista para procurar pelo rapaz, uma busca que durou três dias. O DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), responsável pelo registro e monitoramento dos presos, negou informações sobre o paradeiro do jovem.
Na rodoviária, ao retornar para Sorocaba, o pai de Alexandre vê no jornal Folha de São Paulo a notícia da morte do jovem. Mesmo após tentar pelo direito ao corpo do filho, a família só teve acesso aos restos mortais de Alexandre dez anos depois.
“Alexandre era estudante, tinha 22 anos, muitos sonhos e foi assassinado. Isso repercutiu de uma forma muito difícil e dolorosa para a família e amigos.”
Fernanda Ikedo, mestra em Estudos da Condição Humana pela UFSCar de Sorocaba
Na sequência em que Alexandre é preso e morto, ocorreu um alto número de prisões. 25 alunos da USP chegaram a estar presos simultaneamente. As homenagens na USP foram feitas desde faixas pretas penduradas pelo campus até assembleias e manifestações. Foi realizada uma missa no sétimo dia na Catedral da Sé pelo Dom Paulo Evaristo, com a presença de mais de três mil pessoas. O evento foi importante não só para honrar a memória do estudante, mas como um ato político de combate às brutalidades cometidas pela Ditadura Militar.

A jornalista Fernanda Ikedo reforça as exigências da família pela verdade e retratação do Estado, o que só veio anos depois. “A Dona Evelina, que é a mãe do Alexandre, ia em todas as manifestações estudantis que ela podia”.
Em 1976, foi retomado o Diretório Central dos Estudantes. Em uma das Assembleias Gerais para organização de chapas, uma aluna propõe que seja dado o nome do Alexandre ao DCE, sugestão que teve aprovação em peso dos presentes. “A primeira diretoria assume já com o nome de Diretório Central dos Estudantes Livre (mantém até hoje termo) Alexandre Vannuchi Leme” relata Camilo.
Em 2013, Alexandre Vannuchi teve a certidão de óbito revisada, indicando que a morte decorreu por uma possível hemorragia interna por conta dos maus tratos. Em dezembro de 2023, ele teve uma diplomação simbólica no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGC-USP).
Legado
Para Fernanda Ikedo, todas as pessoas que lutaram e foram assassinadas são agentes da transformação. Por isso, elas precisam ter um lugar reservado como pessoas importantes da história do Brasil e de outros países.
“A ditadura precisa ser falada, porque muitas pessoas ignoram como esse sistema pode repercutir na vida cotidiana e como pode trazer prejuízos coletivos e individuais” , reforça a jornalista. Ela também diz que os tempos atuais ainda contam com jovens que se opõem contra as políticas de retrocesso, como Alexandre fez um dia.

Fernanda também reitera que o espaço para falar dessa memória existe e que a luta pela justiça e a luta pela verdade é contínua e precisa permanecer acesa. “Há espaços para isso e é preciso que as escolas discutam realmente quem foram esses personagens da história e as motivações que levaram eles a enfrentar o que há de pior na sociedade”. Ela aponta que os novos estudantes precisam se inspirar no passado.
A professora finaliza dizendo que histórias como as de Alexandre e outros sobreviventes evidenciam que os direitos exigem muita reivindicação. “O legado que eles passam é ‘estudem, leiam a realidade’. Porque é só com essa consciência crítica que a gente vai continuar enquanto sociedade avançando, se não, é só retrocesso.”
Que a memória desse rapaz e de tantas outras vidas perdidas com a ditadura não sejam esquecidas nunca