O cinema é memória
O filósofo Walter Benjamin defendia que o cinema mantém uma relação indissolúvel com a realidade, considerando-o arte. Diante da contemporaneidade que narra um saudosismo de um passado ditatorial, a obra cinematográfica é essencial para compreender a partir da arte os regimes que se perduraram na América do Sul.
Os governos autoritários latino americanos estiveram no poder entre os anos 1960 e 1980, sendo marcados por estarem inseridos em um contexto bipolar entre capitalismo e socialismo das duas grandes potências da época, os Estado Unidos e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. O Governo norte-americano tomado por um ego maior que seu próprio país encontrou na América do Sul o lugar perfeito para combater o comunismo e implantar os interesses capitalistas. Quem diria que tal façanha custaria tão caro para os latinos.
Os males dessa época são sentidos até hoje: a eliminação, repressão, morte e desaparecimento de políticos, estudantes, sindicalistas, intelectuais, crianças, opositores diretos ou qualquer cidadão que discordasse minimamente dos regimes impostos.
Alexsandro Silva, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador na área de cinema argumenta “sejam ficções ou documentários, falar sobre ditaduras ou regimes autoritários no cinema nacional é falar sobre uma disputa de memórias e também de projetos de nação’’.
Cinéfilos analisou alguns filmes nacionais, de cada país, que retratam esse período seja a partir de memórias ou de época.
Argentina
História oficial
O filme, dirigido pelo argentino Luis Puenzo, relembra a face perversa e mais dura da ditadura argentina: o desaparecimento de pessoas, o roubo de crianças e o sofrimento de várias famílias. O longa se passa em Buenos Aires, em 1980, Alicia (Norma Aleandro) é uma professora conservadora de história casada com Roberto (Héctor Alterio) e mãe adotiva da Gaby (Analia Castro). A personagem é totalmente alheia à realidade argentina o que mudará após um encontro com uma velha amiga, levando-a a buscar pelas origens da pequena Gaby.
Essa é uma narrativa dos que ganharam muito, enquantos outros perderam tudo. Roberto, marido de Alicia, é dirigente do regime e se dá muito bem na vida financeira e profissional, enquanto isso argentinos passam fome, trabalhadores e estudantes são perseguidos e somem do dia para noite, incluindo os bebês de mulheres grávidas que são torturadas e mortas. Os bebês eram dados para militares e apoiadores do regime ditatorial, ignorando o fato que às mães dos pequenos eram mortas em solo argentino o que fez dos porões argentinos os matadouros.
Chile
A ditadura chilena perdurou de 1973 a 1990, a comando do ditador Augusto Pinochet. Tendo as mesmas características dos demais regimes autoritários na América do Sul, apresentou algumas peculiaridades. O país foi palco da crueldade prisional que acometeu muitas mulheres. De acordo com a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura de um total de 3.621 mulheres detidas, 3.399 foram estupradas pelos militares. A violação do corpo dessas mulheres foi seguida com a introdução de ratos nas vaginas e o uso de cachorros. Além disso, existia uma rede de pedofilia nazista no chile, questão retratada no filme Amor e Revolução (Colonia, 2015).

Colônia
O filme, dirigido pelo cineasta alemão Florian Gallenberger, retrata os resquícios do nazismo no chile. O longa é narrado durante o início da ditadura chilena de 1973, contando uma história de amor e sofrimento de um casal alemão — a comissária de bordo Lena (Emma Watson) e Daniel (Daniel Brühl). O estudante Daniel, simpatizante de Salvador Allende, é preso e levado a Colonia Dignidad (autodenomina-se um local de retiro, mas que na verdade é um campo de concentração e tortura de presos políticos da polícia chilena).
Não bastava os longos de repressão vivido pelos chilenos. Augusto Pinochet buscava a sua legitimação.
No
O longa No (2012) traz uma fotografia que relembra a época.Dirigido por Pedro Larrin, o filme perpassa os últimos anos da ditadura de Pinochet retratando a última jogada do ditador para continuar no poder por meio de um plebiscito, que acabou retirando-o do posto em 1988.
Frente a pressões internacionais Pinochet buscava legitimar seu governo por meio do voto. A película traz duas campanhas a do si (sim) que defendia a permanência do ditador e a do no (não) defendendo a sua retirada e a implantação da democracia.
O professor Alexsandro, enfatiza que um regime autoritário legitimado visa ocultar às vozes incidentes e impor uma força monolítica. A legitimação de uma ditadura é um crime contra a humanidade e contra a subjetividade de cada indivíduo.
Uruguai
A ditadura militar do uruguai deu-se de 1973 a 1985. Proibição dos partidos, a ilegalidade dos sindicatos, a censura à imprensa e a perseguição, prisão, desaparecimento, impunidade e assassinato de opositores forma constantes no país. São poucas às produções nacionais que falam desse período.

A noite de 12 anos
A noite de 12 anos (La noche de 12 años, 2018), durante o período da ditadura Uruguaia (1973 – 1985), retrata a época em que José “Pepe” Mujica, ex-presidente uruguaio, e dois colegas guerrilheiros passam 12 anos confinados e submetidos a péssimas condições, a mando do ditador.
A imersão pode levar qualquer um a compartilhar a situação de restrição, perturbação mental e os momentos delirantes dos guerrilheiros políticos. E é nesse momento que a aura da arte se mistura com a vida do espectador.
No filme às individualidades não são aniquiladas, já que o diretor uruguaio Álvaro Brechner enfatiza que independente do lado político a preservação do indivíduo, que como todos possuem famílias e profissões. Outro ponto a se notar é a humanização que o diretor atribui a alguns militares, por exemplo, mostrar os problemas amorosos, atingindo, dessa forma, às emoções do telespectador.
Alexsandro crítica alguns pontos do desenvolvimento. Em A noite de 12 anos se tem grande protagonismo dos presos políticos enquanto projetos de mudanças sociais do país são secundarizados. Sendo, portanto, uma questão a se pensar.
Brasil
No país, temas como a ditadura, muitas vezes, são tratados pelo viés conservador. Diferentemente do país hermano, Argentina, o estado brasileiro não puniu os envolvidos na ditadura militar que durou de 1964 a 1985. Atitude que comprova a violência como pilar de sustentação do Estado. Chega a ser uma aberração termos que explicar que a ditadura é algo ruim em pleno século 21. “Isso agride os direitos humanos e valida a nossa péssima formação cidadã” diz Alexsandro.
Batismo de Sangue
O filme Batismo de Sangue (2006) é um dos longas nacionais que retratam com fidelidade cinematográfica a opressão do sistema — a ditadura civil-militar. Dirigido por Helvécio Ratton e baseado na obra do Frei Betto, que viveu na própria pele as atrocidades dessa época, é uma narrativa de frades dominicanos. Oswaldo, Tito, Fernando, Ivo e o próprio Betto são ajudantes na Ação Libertadora que luta contra a ditadura ,na década de 60, liderado pelo guerrilheiro Carlos Marighella, símbolo de resistência e memória.

Cabra Marcado para Morrer
“Era uma país subdesenvolvido” “era um país a imagem da miséria contrastada com a presença do imperialismo “. O documentário Cabra marcado para morrer (1984), dirigido por Eduardo Coutinho, denúncia o algoz das minorias do sertão nordestino. Um retrato dos interesses dos latifundiários sobre a terra.
Esse recorte não é só uma questão de um passado remoto, mas do presente. As gravações tiveram início em 1962, sendo lançado em 1984. O lançamento tardio deu-se às muitas censuras como apreensão do material a mando dos latifundiários locais e acatada pelas forças de repressão do estado da Paraíba.
Eduardo Coutinho conhecido por retratar em seus filmes pessoas comuns mostra nas filmagens a poesia do sertão nordestino e a dor marcada no rosto de cada um. O cenário conta com gravações de fatos reais e uma pequena filmagem produzidas durante o regime ditatorial.
Essa é a história de João Teixeira (morto em 1962), de Elisabeth Teixeira, e dos seus filhos, que, além de viver com a impunidade da justiça sobre a morte da personalidade, tiveram que fugir do seu pedaço de chão e esquecer seus verdadeiros nomes. A ditadura legitimou e reprimiu os trabalhadores rurais em toda esfera de poder. A obra se faz necessária e contemporânea às problemáticas brasileiras.
Os longas acima retratam em plano cinematográfico peculiaridades e memórias de cada ditadura de países da América Sul. Sem dúvida não existe uma ditadura melhor ou pior, todas sem exceção retiraram a liberdade, característica intrínseca ao ser humano, e o relega à clandestinidade. Essas produções nacionais são importantes por permitir o acesso e a construção de memórias, e entender problemáticas que se perpetuam ainda hoje. Às ditadura da Bolívia e do Peru não foram retratadas aqui por ter escassas produções que falem sobre isso.