“Antes de tudo queria alertá-los de que o que vão ver a seguir está inserido no atual contexto social.”
O badalado “No”, do chileno Pablo Larraín, foi ovacionado em Cannes e escolhido para a abertura da 36ª Mostra Internacional de São Paulo. Nesta última, lotou as salas em que foi exibido.
Tematizando a redemocratização do Chile, em processo a partir do resultado da votação de 1988, o enredo trata de um recorte particular desse contexto tão rico de histórias a serem exploradas através do celulóide (e faça-se justiça, algumas já o foram em outras produções como “Machuca”, que trata do golpe que derrubou Salvador Allende): atém-se aos 27 dias de campanha publicitária pelo plebiscito que decidiria o futuro do país sul-americano, e gira em torno de René Saavedra (Gael García Bernal), funcionário jovem e próspero de uma agência de publicidade.
René é abordado por um dos responsáveis pela campanha do “No” – o voto contra o ditador Augusto Pinochet, então no poder há 15 anos – e convidado a colaborar na elaboração de uma propaganda capaz, se não de fazer o regime cair por terra de uma vez, de conscientizar o povo.
O plebiscito tinha sido convocado em resposta a pressões internacionais e era visto até pela oposição como um aparato quase sem serventia para derrubar o governo autoritário, já que seu resultado dificilmente prejudicaria Pinochet. Com uma estratégia de marketing completamente diversa da característica sisudez da esquerda, René decide evocar a alegria como mote principal.
É interessante o tratamento emocionalmente distanciado dado ao protagonista e a boa parte do que o cerca. Por meio disso, é construído um personagem indiscutivelmente denso, mas de certa forma opaco – seu íntimo não se desvela – para quem assiste: em nenhum momento se lança mão de flashbacks ou outros recursos narrativos que esclareçam o passado de René, o qual sabemos ser marcado pelas sequelas do regime de exceção apenas por leves “sugeridas” dadas lá e cá – elas revelam um pai exilado e a relação angustiada com a mãe de seu filho, militante agredida pela repressão em mais de uma cena do filme. Os relatos de dor e perda tradicionalmente (e com toda legitimidade) explorados em filmes que abordam ditaduras militares ou Estados totalitários aqui não ganham espaço, e o pouco apelo emotivo torna “No” autêntico e admirável, no sentido de que não cede à facilidade de cativar o espectador por sentimentos de compaixão. A trama individual de um sujeito ex-exilado, somada à atmosfera de polarização política e iminente mudança que tomava conta do Chile deve bastar para capturar e envolver. E basta.
“No” retrata um momento histórico crucial cruzando a história de um personagem que sofre o impacto do golpe militar em sua vida familiar. Surpreende o quanto ele se transforma, ou se revela: se no início parece ser o homem que ascendeu e se acomodou em sua existência materialmente confortável, algo lhe desperta a sensibilidade e o faz tomar para si a causa que leva até o final, sem porém assumir ares de vingador. Sua obstinação também é sutil.
Outro elemento positivo é o conteúdo humorístico de alguns diálogos e situações, que prestam um retrato irônico à cúpula do governo militar. Essa encenação mais leve sugere um aspecto do governo que já não era levado a sério e não tinha força sequer para negar a realização de um plebiscito. Alegoriza o afrouxamento da mão de ferro,a ditadura já capenga, tão ridícula quanto Geisel fotografado em roupas de banho. São os sinais de caducamento de governos que não tardariam a cair.
No desfecho, o gesto de comemorar na rua, com o povo (em vez de partilhar o êxito da campanha com seus correligionários), também é representativo do caráter de René, protagonista “vedado” dessa vitória inesperada. À pergunta dos ditadores, o povo responde “No más”.
Pegando emprestado uma música do espólio da nossa ditadura (o que é muito cabível de se fazer, já que os regimes autoritários latino-americanos do século XX foram todos triste e sinistramente aparentados), a grande festa a que se entrega o povo chileno ao fim de “No” parece entoar com força para todos os Pinochets: “Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia. Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? (…) Como vai se explicar vendo o céu clarear, de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?”
Por Juliana Lima
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