Por Mariana Ricci (mariana.ricci@usp.br)
Em um diálogo com suas raízes sulistas, Beyoncé mostra sua essência norte-americana em Cowboy Carter (2024), o segundo ato da trilogia de álbuns que começou com Renaissance (2022). Com 27 faixas e quase uma hora e vinte minutos de duração, a cantora transcende o country tradicional e produz um álbum instrumentalizado que reúne grandes nomes da música estadunidense, como Willie Nelson, Dolly Parton, Linda Martell e Miley Cyrus.
Cowboy Carter foi o grande trunfo de Beyoncé, que concedeu à cantora 11 indicações para o Grammy Awards 2025 e, depois de 24 anos na competição, seu primeiro prêmio como Álbum do Ano. Mesmo depois de um período conturbado, envolto em polêmicas relacionadas a seu marido, Jay-Z, e seu envolvimento com Jean Combs, o P.Diddy, a qualidade musical e instrumental do álbum da diva pop se sobressaiu e consagrou Beyoncé como um dos maiores ícones da música estadunidense.
“Se isso não é country, me diga, o que é?” (“If that ain’’ country, tell me, what is?”) é um trecho de Ameriican Requiem — a primeira faixa do álbum — que traz a essência da canção. Ela explicita a busca de Beyoncé por provar-se como uma cantora country, impor-se como uma mulher negra no gênero e legitimar-se a partir de suas raízes. A música ainda carrega uma carga do típico nacionalismo norte-americano, que permeia todo o álbum.
A temática do protagonismo negro no country reverbera nas faixas seguintes, Blackbird e 16 Carriages. Na primeira, ao trazer nomes como Tiera Kennedy, Britney Spencer, Tanner Adell e Reyna Roberts, Beyoncé joga luz sobre novos cantores pretos em ascensão no gênero musical. Já na segunda, a cantora traz sua trajetória e as adversidades enfrentadas como uma mulher negra que deixa o Texas em busca de seu sonho.
Com a música Protector, em parceria com sua filha mais nova, Rumi, Beyoncé mostra que para além de um ícone do pop é, acima de tudo, mãe. Na canção, a cantora promete aos filhos que irá guiá-los quando se perderem — afirmação ainda mais emotiva graças à melodia, que se assemelha à uma canção de ninar.
A faixa exclusiva Smoke Hour Willie Nelson traz a velha guarda do R&B (Rhythm and Blues) e do country representados pela voz de Willie Nelson que introduz o maior hit do álbum: Texas Hold’em. Country em essência, a canção foi lançada como um single e teve uma boa recepção internacional. A música passou duas semanas em primeiro lugar do Billboard Hot 100 e fez história como um dos maiores sucessos de Beyoncé. Ela dá nome às raízes sulistas negras da cantora, de onde veio e para onde retorna com suas músicas: o Texas.
O country carregado sofre uma pausa em Bodyguard, que, por meio de uma melodia leve, traz um típico caso de amor. A essência musical do álbum é retomada com Jolene, remake da música homônima de Dolly Parton, de 1973. O hit é introduzido pela própria Parton em uma faixa anterior intitulada Dolly P. Porém, ainda que apresente uma versão moderna do country tradicional, Jolene tem sua letra distorcida por completo. A música, que originalmente é uma súplica da mulher traída, torna-se um confronto entre a esposa e a amante, em que a primeira tenta marcar seu território sobre o homem em questão. A nova versão instiga a rivalidade feminina entre as personagens e diz que a infidelidade do marido é aceitável.
Daughter é a faixa mais marcante do álbum. Com vocais poderosos que se intercalam entre inglês e italiano, Beyoncé entrega uma música orquestrada que abre espaço para o trecho de uma ópera italiana executada pela própria cantora. A letra dialoga diretamente com a temática central do álbum: a ancestralidade. Ao interpor-se com a figura de seu pai, a cantora mostra o poder de suas raízes. O trecho “If you cross me I’m just like my father” (“Se você me contrariar, serei exatamente como meu pai”) traduz o poder histórico e afetivo que as gerações são capazes de carregar.
A voz de Linda Martell no início de Spaghetti questiona: “Genres are a funny little thing, aren’t they” (“Gêneros são uma coisa engraçada, não são?”). A pergunta expõe a construção básica do álbum, que mistura vários conceitos musicais sem rotular a quais gêneros pertencem. O country de Beyoncé torna-se único por misturar elementos de R&B, pop, rap e rock. Ao fazer a parceria com Martell e com Shaboozey, a cantora mostra que é possível juntar dois polos da música norte-americana em uma única melodia.
A canção que marca a metade do álbum é Alligator Tears, que retoma a suavidade e a temática do amor. Uma nova etapa da produção inicia-se com a segunda contribuição de Willie Nelson em Smoke Hour II, que, novamente, assume papel de locutor para introduzir a próxima faixa: Just For Fun. Em uma perspectiva mais emotiva que as faixas anteriores, Beyoncé canta ao lado de Willie Jones, jovem cantor em ascensão. A música apresenta um recurso muito utilizado ao longo de todo o álbum: vozes em coral que remontam às tradições de igrejas cristãs negras do Sul dos Estados Unidos.
Miley Cyrus volta às suas origens do country para entregar o maior feat e o melhor jogo de vocais do álbum na faixa II Most Wanted. Dois ícones do country colocam-se lado a lado e mostram como suas vozes se agregam em tom e sintonia. A passagem “I’ll be your shotgun rider, ‘till the day I die” (“Eu serei sua parceira de viagem até o dia que eu morrer”) explicita a união de duas grandes divas da música popular estadunidense, deixando quaisquer rivalidade de lado.
A melodia do country é suavizada mais uma vez na nas próximas duas faixas, que deixam de lado o frenesi de instrumentos e vozes. Levii’s Jeans conta com a participação especial de Post Malone, fenômeno do rap, enquanto Flamenco aborda questões subjetivas voltadas ao amor próprio.
Linda Martell, a primeira mulher negra a atingir sucesso comercial no country, faz uma nova participação na faixa The Linda Martell Show, preâmbulo para a canção YA YA. Com uma batida contagiante, os solos de guitarra mostram, novamente, que o country da diva pop é pendular: ora possui uma composição sonora tradicional, ora mistura vários gêneros distintos em uma mesma faixa. Oh Louisiana, por exemplo, volta a seguir o country clássico.
O baixo é o protagonista da próxima música. Desert Eagle remonta um tradicional cenário de rodeio no Texas que relembra as origens da diva do pop. Parton e Shaboozey retornam para as faixas finais do álbum: Tyrant e Sweet Honey Buckin’, que trazem a dualidade entre tradicional e moderno inerentes ao disco.
A faixa final, Amen, converge elementos musicais de diversos trechos do álbum, em especial de Ameriican Requiem. Ao espelhar a primeira à última música, Beyoncé fecha um ciclo no início, afirma que consegue cantar country com maestria e, ao final, prova sua habilidade. Em um post no Instagram, a cantora afirmou: “Esse não é um álbum country. Esse é um álbum Beyoncé”. A diva pop mostra, mais uma vez, que consegue destrinchar um gênero musical e torná-lo sua assinatura, como já havia feito com Renaissance.
O álbum, centrado na ancestralidade, relativiza gêneros musicais e prova que Beyoncé sabe sair de sua zona de conforto e continuar brilhando.
[Imagem de capa: Reprodução/Instagram/@beyonce ]