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A doença de Florença: atordoamento pela arte

Em meados de dezembro do ano retrasado, um turista italiano de 70 anos sofreu uma parada cardíaca (não fatal) dentro da Galleria degli Uffizi – um dos principais museus do mundo, localizado em Florença, na Itália. O motivo parece ter sido uma mera contemplação do famoso quadro O Nascimento de Vênus, do renascentista Sandro Botticelli. Por …

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Em meados de dezembro do ano retrasado, um turista italiano de 70 anos sofreu uma parada cardíaca (não fatal) dentro da Galleria degli Uffizi – um dos principais museus do mundo, localizado em Florença, na Itália. O motivo parece ter sido uma mera contemplação do famoso quadro O Nascimento de Vênus, do renascentista Sandro Botticelli. Por incrível que pareça, esse não é um caso isolado. A exposição intensa a obras de arte é realmente capaz de causar mal-estar em algumas pessoas. Geralmente ocorre quando o valor cultural e simbólico em questão é demasiadamente estimado por indivíduos sensíveis, e pode ser ativada tanto pela experiência em si quanto pela antecipação dela. Este fenômeno é conhecido como Síndrome de Stendhal, Síndrome de Florença ou hiperculturemia.

Visitante apreciando "O Nascimento de Vênus", de Botticelli em galeria de Florença
Visitante apreciando “O Nascimento de Vênus”, de Botticelli, na Galleria degli Uffizi. [Imagem: Alberto Pizzoli/AFP]
Apesar do nome, o distúrbio não se encontra cadastrado em nenhum dos manuais diagnósticos usados para definir transtornos mentais. Ou seja, oficialmente não é considerada uma psicopatologia. A psicóloga Lígia Rosado Antônio explica que o número de casos descritos não atinge os parâmetros necessários para essa classificação. Já o psicólogo Renato Belin Castellucci diz que, em geral, os episódios são bastante raros e localizados, e que, portanto, essa reação não necessariamente se estabiliza a ponto de requerer um tratamento ou acompanhamento profissional.

 

Descoberta e qualificação

O primeiro relato dessa síndrome também explica seu nome. O escritor realista francês Henri-Marie Beyle, conhecido por seu pseudônimo Stendhal, ficou profundamente abalado depois de visitar a Basílica de Santa Cruz em Florença. Os afrescos de Giotto di Bondone e os túmulos de Nicolau Maquiavel, Michelangelo Buonarroti e Galileu Galilei provocaram no literato um deslumbramento desmedido: 

“Eu caí numa espécie de êxtase ao pensar na ideia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime… Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais… Tudo falava tão vividamente à minha alma… Eu senti palpitações no coração […]. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair”, escreveu Stendhal em seu livro Roma, Nápoles e Florença.

Afrescos de Giotto na Basílica de Santa Cruz
Afrescos de Giotto na Basílica de Santa Cruz [Imagem: Marco Ramerini]
O francês não foi o único a demonstrar tais emoções. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, descreveu sensações semelhantes ao visitar a Acrópole de Atenas, na Grécia. O escritor russo Fiódor Dostoiévski também experimentou essa comoção quando se deparou, na Suíça, com quadros do alemão Hans Holbein.

Porém, o fenômeno só seria descrito profissionalmente em 1979, pela psiquiatra e psicanalista italiana Graziella Magherini. Depois de 20 anos trabalhando no Hospital de Santa Maria Nuova em Florença, Graziella notou semelhanças nos casos apresentados por turistas que lá chegavam. A partir de 106 ocorrências, ela teorizou o distúrbio e escreveu o livro A Síndrome de Stendhal: o Mal-Estar do Viajante Diante da Grandeza da Arte.

Os sintomas psicossomáticos diagnosticados por Magherini são diversos: dores no peito, transpiração excessiva, perda ou diminuição da força física, tontura, visão turva, taquicardia, palpitação, falta de ar, exaustão profunda, alucinações visuais e auditivas, delírios de perseguição, desorientação, despersonalização, perda da identidade, ataque de pânico e até tentativas de destruição das peças artísticas. A duração desses sinais varia entre dois e oito dias – fator essencial, segundo Magherini, para serem encaixados em sua classificação. Lígia explica que a determinação da diferença entre uma reação mais inflamada a alguma obra e uma manifestação concreta do distúrbio depende também da intensidade dos indícios, já que sua gravidade é variável.

A italiana constatou que a procedência é um fator importante na demonstração da Síndrome de Florença. Dentre os casos analisados, os que mais apresentaram a síndrome eram turistas vindos dos EUA e da Europa Ocidental, homens e mulheres solteiros(as), entre 26 e 40 anos, de elevado nível cultural e com algum histórico de transtorno psiquiátrico. Castellucci lembra que viajar sozinho é um agravante importante para essas pessoas. Lígia destaca a fragilidade emocional que o indivíduo pode apresentar por estar fora de casa, mas descarta a possibilidade de um perfil psicológico dos pacientes: “Não se pode falar em um tipo de personalidade ou em psicodinamismo comum. O que existem são fatores de risco”.

 

Mente humana vs. Arte

Não há unanimidade nas discussões acerca das causas para a Síndrome de Stendhal; apenas hipóteses e poucos estudos relacionados. A explicação neurofisiológica ressalta a nossa capacidade de empatia. Ao observarmos um estímulo artístico, despertamos algumas emoções que podem desencadear reações incômodas. Já a explicação psicanalítica considera a possibilidade de os estímulos tocarem em algum sentimento difícil de lidar e reprimido pelo espectador. Nesse caso, o contato com a arte serve como uma experiência limite, uma epifania.

“O simbolismo presente nas obras evoca determinadas sensações e sentimentos que, para algumas pessoas, se tornam difíceis de elaborar. O acúmulo dessas evocações leva a pessoa a sentir esses sintomas emocionais”, ilustra Renato Castellucci.

“A arte, por não fazer parte do domínio da razão, nos coloca no terreno fértil das expressões emocionais e sentidos múltiplos. Provoca uma resposta do nosso organismo que inevitavelmente nos leva a uma dimensão inconsciente e desconhecida, além do racional e inteligível. Isso pode  resultar em tais efeitos ‘estranhos’”, aponta Vanessa Franco, também psicóloga.

Lígia Antônio acredita que os efeitos são promovidos pela junção do poder da arte em despertar algo no admirador e a propensão desse apreciador em se impressionar com a cultura. Para ela, há um casamento das expressões artísticas com a vivência da pessoa afetada.

Castellucci, que é também terapeuta integrativo especializado em experiências de transcendência, vai de encontro a essa visão. Para ele, é importante somar os pontos de vista, já que nem todos os indivíduos tendem a apresentar os sintomas, mas todos nós podemos ser impactados de alguma forma por uma expressão cultural.

Vanessa prefere se referir a essas pessoas como “peregrinos da arte” em vez de turistas: “Os sintomas estão atrelados ao fato de a pessoa já se predispor a buscar nas obras de arte um estado de mergulho e contemplação. Acredito que simplesmente ‘passar o olho meramente curioso’ não leve a pessoa a esse espaço de absorção”.

Renato reconhece a importância da aproximação científica na abordagem desse distúrbio, mas classifica-o como transcendental: “A pessoa que enfrenta esse fenômeno entra em contato com uma carga sentimental que está para além da sua compreensão racional e lógica”.

De qualquer forma, o papel da arte é indispensável para a existência da hiperculturemia. A síndrome revela a desproporção do peso e do valor que as obras podem carregar. “Esse tipo de sintoma só nos mostra como a arte ou mesmo o arcabouço histórico-cultural dialoga com o universo interior bem profundo do ser humano”, conclui o psicólogo.

Vista aérea de Florença, com destaque para o Duomo (cúpula) da catedral de Santa Maria del Fiore, obra mais conhecida do arquiteto e escultor renascentista Filippo Brunelleschi
Vista aérea de Florença, com destaque para o Duomo (cúpula) da catedral de Santa Maria del Fiore, obra mais conhecida do arquiteto e escultor renascentista Filippo Brunelleschi [Imagem: Thinkstock]

 

Magnitude florentina

Florença teve papel fundamental em todo o diagnóstico, a ponto de até mesmo corresponder a um dos nomes do distúrbio. De fato, a capital da região Toscana é reconhecida mundialmente por abrigar muitas obras de arte famosíssimas e imprimir a identidade visual renascentista devido à sua arquitetura conservada. Emocionar-se com a beleza da cidade é uma ideia perfeitamente concebível.

A psicóloga Vanessa comenta que muitos casos da Síndrome de Florença não chegam a ser relatados para profissionais que possam registrá-los e publicá-los, o que acaba prejudicando a estatística. Abaixo estão alguns depoimentos, colhidos pela reportagem, de pessoas não diagnosticadas, mas que se encantam ou se encantaram com essa célebre localidade:

É uma cidade na qual você tropeça em obras de arte. E não obras de arte quaisquer, são obras de Michelangelo, da Vinci, Giotto etc. Elas estão em todos os lugares, não só nos museus incríveis. A Itália tem muito disso, mas Florença parece ser onde tudo aconteceu de uma maneira mais contundente. Florença reacende muito a ideia do ser humano renascentista, que não era uma coisa só, não tinha uma função só, e talvez isso nos aproxime um pouco. É natural se impressionar de maneira absurda. Para mim, não foi essa experiência transcendental, a ponto de surtar e tudo mais. Mas foi uma epifania.

Edison Veiga, 35 anos, jornalista. Passou um ano sabático na Itália com a família, e durante um tour conheceu Florença.

Florença me remete sempre, obviamente, ao Renascimento, e à figura principal de Leonardo da Vinci. Florença me faz referência a uma arte que rompe um padrão, uma arte que traz de novo uma luz para a cultura local. O que eu tenho de mais presente na minha cabeça é sempre esse período e os clássicos que a gente encontra na Galleria degli Uffizi, na Galleria dell’Accademia ou em tantos outros museus que ficam por ali. Mas também o modo como algumas pessoas de lá vêem a vida como se todos fossem um pouco artistas, como se todos vissem na sua atividade um pouco de arte. Isso me parece estar ligado com a atmosfera cultural de Florença. É como se as experiências passadas tivessem influenciado o modo de viver dessas pessoas.

Mikael Oliveira Linder, consultor em desenvolvimento rural e marketing agroalimentar, pesquisador na Libera Università di Bolzano, Itália. Visitou Florença e tempos depois se mudou para Barberino Tavarnelle, uma cidadezinha das redondezas.

Florença não é uma cidade vinculada à arte. Florença é arte em si mesma. Mas atenção, tantas obras de arte tão próximas entre si podem produzir um sério bloqueio mental se forem consumidas visualmente em poucos dias. Isso porque nosso cérebro, coração e alma não foram preparados para digerir e processar ao mesmo tempo tanta beleza e perfeição.

Dario Queirolo, uruguaio, jornalista de viagens e turismo.

Diferentes pessoas em diferentes contextos, cujos depoimentos são unidos não só por Florença como por sua forte ligação com a arte. Dado o espanto e a admiração sentidos por esses personagens, não é de se espantar que exista uma síndrome como a de Stendhal. 

1 comentário em “A doença de Florença: atordoamento pela arte”

  1. Bom dia. Estudando Firenze e Senhoria dos Médici não pude deixar de pesquisar a Síndrome de Stendhal. Lendo seu artigo constatei que a imagem do afresco atribuído a Giotto são, em realidade, de Taddeo Gaddi “Albero della Vita e Ultima Cena” e que está localizado no Cenáculo da Basílica de Santa Croce. Os afrescos de Giotto encontram-se nas Capelas Peruzzi e Bardi, com historias de São João Batista / São João Evangelista e São Francisco, respectivamente. Atenciosamente Jacira

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