Por Mayara Paixão (mayapaixao1@gmail.com)
Pensar o Congresso Nacional a partir da tríade “classe, raça e gênero” é enxergar como a democracia representativa brasileira ainda tem muito a construir. Dois espaços que deveriam refletir os interesses da população, o Senado e a Câmara dos Deputados materializam um álbum de figurinhas repetidas: homens, brancos, ricos e de meia-idade.
Os dados falam por si: mais da metade dos habitantes do país, as mulheres configuram apenas 13,5% do Senado e 10% da Câmara; a população negra, por sua vez, maior parte da composição social, ocupa meros 8,7% das cadeiras do Senado e 20,2% nas da Câmera.
A representatividade, em terras brasileiras, revela-se duvidosa.
Representação: dimensões que importam
Ter a composição de gênero e racial brasileira refletida na estrutura do Poder Legislativo é de ampla relevância. “O que eu costumo dizer em relação à presença das mulheres na política é que, independentemente da defesa que elas façam, o fato de ser mulher já tem diferença por si só”, afirma Beatriz Sanchez, mestranda na USP e estudiosa das relações de gênero na política. “As mulheres partem de uma perspectiva diferente. Por causa das experiências de vida que têm, elas são capazes de perceber coisas que os parlamentares homens não são.”
Segundo Beatriz, essa forma de pensar é defendida pela cientista política estadunidense Iris Young. Foi ela a responsável por levar a ideia de perspectiva para o debate, propondo a desmistificação de uma visão essencialista de mulher. Aqui, o que importa não é mulheres serem mulheres somente, mas o fato de que as experiências que têm em sua vida — proporcionadas, em grande medida, por uma sociedade com amarras patriarcais — fazem com que elas vejam o mundo de forma diferente.
Nascida de um ensinamento da teoria feminista, que crê na experiência vivida como fundamental para o aprendizado, a ideia de perspectiva pode e deve ser estendida para a população negra e a LGBT.
Nesse sentido, Gustavo Venturi, cientista político e professor da FFLCH, tende a acreditar que, do ponto de vista de uma representatividade efetiva, existe, de fato, um limite para a sua transferência, ainda que ela não seja intransponível. É possível que uma pessoa, mesmo não sendo protagonista de um gênero ou de uma raça, possa ser apta a uma perspectiva que garanta os direitos à diversidade e ao reconhecimento de todas as identidades. “Porém, nada como viver sob esses marcadores de diferença para ter uma representação genuína, pelo menos nesse momento em que a afirmação dessas identidades ainda é tão necessária, dada a sua invisibilidade.” Ele ainda diz que esse “universalismo”, no qual todos compreendem e dispõem-se como sujeitos promotores da igualdade social, é ainda muito abstrato. “É necessária a afirmação dessas identidades e seu reconhecimento para que, como plenos sujeitos políticos, se possa equalizar o acesso a direitos, que hoje é absolutamente desigual, favorecendo os tradicionais homens brancos, mais velhos e ricos.”
Para além disso, Beatriz também destaca a dimensão simbólica da representação, “de colocar no horizonte de possibilidades das outras mulheres essa participação política, que, muitas vezes, nem está colocada”. Ela lembra que essa ausência no horizonte feminino tem relação com a divisão sexual do trabalho: em sua criação, as mulheres são instruídas de modo a não participar da vida política.
Brasil: uma cultura e um sistema político que excluem
As barreiras impostas ao ingresso de mulheres brancas e negras, negros e LGBTs no espaço político legislativo têm diferentes naturezas, apesar de interligadas. Para Gustavo Venturi, a questão das sub-representatividades pode ser pensada em aspectos históricos e estruturais, além de aspectos mais recentes, relacionados ao sistema político-partidário de representação brasileiro.
Para iniciar a compreensão, ele menciona que a distorção da representação popular já começa no sistema bicameral. No Brasil, uma vez que o Senado garante a representação dos entes federativos (três senadores por estado), a Câmara deveria ser estritamente rigorosa quanto à proporção da população — o que não acontece. Logo, existem estados sub-representados, como é o caso de São Paulo, e outros, menores, sobre-representados. “Se a gente considerar que, na questão da diversidade, além da diversidade regional, há a diversidade da população, isso seria mais forte e mais presente nos grandes centros”, explica Venturi. “Então, o fato de estados muito populosos, com grandes metrópoles, estarem sub representados, já seria um fator problemático.”
Além disto, o sistema partidário como um todo cria empecilhos para uma relação horizontal e confiável entre a população e aqueles que a representam. “O sistema não favorece a gente pensar nos nossos representantes”, ele diz. “As coligações partidárias”, na verdade, “fazem com que aconteçam fenômenos inversos”.
Entre esses fenômenos, está, por exemplo, o não reconhecimento entre população, Câmara e Senado. Isso acontece, em grande medida, por conta do excesso de partidos — hoje, 35, segundo registro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Essa é uma situação problemática na medida em que introduz, no sistema político, partidos artificiais, sem enraizamento social e que, portanto, acabam não representando ninguém além de seus próprios interesses. “A ideia é que os partidos representem partes de uma sociedade, segmentos com interesses específicos definidos, mas, nem que fizéssemos um enorme esforço para definir o que diferenciaria esses 35 partidos, nós chegaríamos lá”, afirma Venturi.
Segundo ele, uma solução possível para reduzir o número de partidos e vislumbrar um ambiente eleitoral mais assentado na sociedade é a adoção da cláusula de barreira — uma medida que restringe ou impede a atuação parlamentar dos partidos que não alcançam um percentual de votos determinado.
Não são só esses os empecilhos que a estrutura política brasileira impõe à plena representação. Beatriz Sanchez, no decorrer de sua pesquisa, identificou três fatores principais, que, para além da representação feminina, valem para a de outros grupos marginalizados, como as populações negra e LGBT, além do aspecto de classe.
O primeiro deles é o financiamento de campanha desigual entre homens e mulheres. De acordo com Beatriz, vários estudos demonstram que os partidos destinam menos dinheiro de seus fundos para as candidaturas femininas; além disso, os recursos doados para as campanhas, tanto por empresas quanto por pessoas físicas, atendem mais aos homens do que às mulheres.“Por isso que uma das bandeiras do movimento feminista é o financiamento público de campanha”, diz ela. “Porque, dessa forma, você faz com que o financiamento seja mais igualitário.”
Outro fator é o sistema político de lista aberta, no qual os partidos lançam as candidaturas individualmente, e não a partir de uma lista partidária. Beatriz conta que, no sistema político de lista fechada com alternância de gênero — adotado, por exemplo, na Argentina —, os partidos lançam as candidaturas numa lista com alternância “um homem, uma mulher, um homem, uma mulher”, tornando a oferta de candidatos igualitária. Na votação, o eleitor ou eleitora seria encarregado de votar na lista, e não em um candidato específico. Ao final, a porcentagem de votos angariada pelo partido seria, proporcionalmente, a quantidade de candidatos da sua lista a serem eleitos. Ou seja: se, por exemplo, determinado partido conquistasse 40% dos votos nas eleições, os 40% de candidatas e candidatos iniciais de sua lista seriam efetivamente eleitos.
Hoje, o sistema legislativo brasileiro conta com um mecanismo para promover a igualdade de gênero, embora pouco eficaz. Trata-se da Lei nº 9.504, de 1997, que assegura a reserva de 30% das candidaturas nos partidos políticos para mulheres. Essas candidaturas, entretanto, não se refletem em eleitas de fato. Em contrapartida, por iniciativa da bancada feminina, existe uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 134/15), que está em tramitação, e pretende reservar cadeiras para as mulheres no Parlamento. Inicialmente, o projeto tinha a proposta da reserva de 30% das cadeiras, mas, pra que ele fosse para a frente, as parlamentares tiveram que negociar com os parlamentares homens para 10%. Outro problema é que “não existe recorte racial dentro do projeto”, lembra Beatriz.
Por último, a hierarquia interna dos partidos políticos seria um fator que impulsiona a sub-representação. “As mulheres, por exemplo, não ocupam os cargos de chefia dentro dos partidos, e isso tem impacto no não recrutamento desses partidos para as suas candidatura”, diz a mestranda.
Tanto Beatriz quanto Venturi apontam um dado interessante de suas pesquisas: a maioria dos parlamentares homens é casada, enquanto grande parte das parlamentares mulheres não se encontra em uma relação fixa — são solteiras ou viúvas. Como mostra Beatriz Sanchez, isso, novamente, tem relação com a divisão sexual do trabalho, que, ainda em tempos modernos, muitas vezes reserva à mulher os cuidados do lar. “A divisão sexual do trabalho tem impactos concretos na participação das mulheres; elas têm menos tempo para participar de reuniões dos partidos, menos tempo para se dedicar à campanha, que é muito demandante”, diz ela. “O fator tempo é um fator relevante, o fator dinheiro é outro fator relevante. São condições não só culturais, mas também [condições] materiais muito concretas que dificultam a eleição de mulheres.”
Dentre os aspectos históricos e estruturais mencionados por Venturi e que colaboram para essa representatividade ínfima de mulheres, de negros e de LGBTs está o fato de que “a ideia de que qualquer um pode não apenas votar, mas também ser um representante do seu grupo é algo relativamente recente na nossa cultura política”. Mesmo assim, ele destaca que houve um alargamento de horizontes na sociedade e que não podemos perder de vista o quanto a luta negra e a LGBT vêm avançando. Assim, se esses grupos não estão plenamente inseridos no espaço político, isso não se deve a uma falta de mobilização, mas sim às precariedades do sistema.
“É um conjunto de fatores que vão se somando e distorcendo o que poderia ser uma representação mais direta, mais genuína, e, ao meu ver, prejudicando o que seria a expressão de uma diversidade”, frisa.
A política formal e as barreiras à plena representação
Muitas vezes, mesmo que presente no Congresso Nacional, a atuação da mulher no sentido da promoção da igualdade de gênero pode não resultar em uma efetividade, por ação das barreiras existentes dentro do Parlamento.
Beatriz conta que, em relação a essas barreiras institucionais, uma é a marginalização, dentro do próprio Congresso, das mulheres eleitas. “Elas atuam, na maioria das vezes, em temas considerados ‘femininos’, como educação, política social, direitos humanos, e têm dificuldade para se inserir em temas como tributação”, diz ela. Quem decide sobre essa atuação é o próprio partido — responsável por delegar seus representantes para as comissões.
“Outra questão é a ocupação dos cargos no plenário da mesa diretora”, afirma. Na Câmara dos Deputados, a mesa diretora é responsável por decidir quais são os temas a entrar na agenda de discussão do Plenário. Segundo Beatriz, “a composição dessa mesa raramente conta com a presença de alguma mulher; São sempre homens”.
É olhando para essa homogeneidade que Venturi descreve: “O fenômeno do embranquecimento, do enriquecimento, da maior escolaridade, masculinização, é crescente. Conforme vão subindo as instâncias de poder, essa diversidade vai diminuindo e prevalece o que já predomina em todas as estruturas”.
Dentro das pautas LGBTs, também são diversas as barreiras. A população conta com apenas um deputado protagonista da causa, Jean Wyllys, e recebe o apoio de outros parlamentares. Apesar de muitas reivindicações estarem em evidência, os problemas também são muitos. “À medida que conseguimos direitos mínimos e maior visibilidade, há reação dos setores mais conservadores, que passam a querer travar essa agenda de avanço e progresso dos direitos”, diz Maurício Moraes, jornalista e ativista de direitos humanos e LGBTs.
Maurício conta que, muitas vezes, esses mesmos setores conservadores invertem a lógica e propagam que, ao invés de lutarem por direitos iguais, as pessoas LGBTs buscam privilégios. Mesmo com suas pautas mais visíveis, essas pessoas estão, consequentemente, mais expostas ao ódio e à intolerância, além de serem, por vezes, tomadas como “bodes expiatórios” do conservadorismo.
Mulheres negras: o racismo patriarcal há séculos refletido na política
A eleição de 2014 foi a primeira em que os candidatos e candidatas ao processo eleitoral tiveram que autodeclarar cor ou raça. Essa é uma antiga reivindicação do movimento social negro, uma vez que, antes, todas as pesquisas sobre representação de negros no Congresso eram feitas ou por entrevistas com os parlamentares, ou pela metodologia do próprio pesquisador. Tradicionalmente, sabe-se que esse é um caminho errôneo. Como aponta Fábia Barbosa, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), a definição do que é “ser negro”, no Brasil, ainda é fenotípica — ou seja: ainda é relacionada com traços físicos tidos como pertencentes à população afrodescendente, como o cabelo crespo e os beiços grossos.
“Pensar a ascensão da população afrodescendente implica questão de espaço”, reflete Fábia. Olhar para a composição da casa legislativa é ver esse espaço negado. As mulheres negras, em especial, são a maior parte da população brasileira e a menor do Congresso Nacional, representando ínfimos 1,2% do Senado e 2,2% da Câmara.
Falar da sua relação com a política, no entanto, exige a separação de dois campos: a política, enquanto atividade exercida por cidadãos e cidadãs, e a política partidária, que elege representantes. “Se você for ver as comunidades pobres, as comunidades negras onde as mulheres vivem, boa parte das lutas por melhorias comunitárias, por direitos, são lideradas e desenvolvidas por mulheres negras. Isso é fazer política”, diz Jurema Wernek, médica e uma das coordenadoras da ONG Criola. Na política partidária, no entanto, um conjunto de mecanismos age, paulatinamente, excluindo a presença das mulheres negras. Essa não representação objetiva, sem dúvidas, impedir a materialização de uma das principais — se não a principal — pautas dessas mulheres: a distribuição da riqueza nacional. “A ausência de mulheres negras no Parlamento é uma das formas de garantir a apropriação da riqueza pública por homens brancos”, ela afirma.
Fábia Barbosa rememora que, no pós-abolição da escravatura, foram criadas teses que pensavam o embranquecimento e a eliminação de homens e mulheres negras da nação brasileira. A tida elite pensante nacional — que ocupava os cargos políticos e foi responsável pela criação do que é “ser brasileiro” no início da República — fez uso frequente de leis segregacionistas e teorias de superioridade racial.
As causas da situação de sub-representação das mulheres negras nas diferentes esferas, no entanto, não estão no passado. “São escolhas, decisões atuais que vão reeditando os mecanismos de exclusão”, lembra Jurema.
Tanto no passado quando no presente, o racismo é a causa inicial da exclusão. Um racismo antes pautado cientificamente e, hoje, ainda patriarcal.
Importante matéria. O Coletivo Grito os Excluídos e Excluídas de Americana está empenhado na produção de um material que explicite a distorção na representatividade parlamentar. Solicito nos enviar informações a respeito. Obrigado