Por Victória de Santi (victoriadesantiserafim@gmail.com)
Ignorada pelo Censo, pouco se sabe sobre a população albina brasileira. A invisibilidade social os fazia, até pouco tempo, desconhecidos inclusive por si mesmos. No entanto, a luta por reconhecimento hoje tem forma, e já atingiu importantes conquistas.
O albinismo, de forma simplificada, é uma condição genética que faz com que a pessoa nasça com pouca ou nenhuma produção de melanina no corpo. Ausente essa proteína que protege da radiação solar, a pessoa albina é muito mais sensível à luz e ao calor, o que torna necessário o uso constante de protetor solar. Além disso, é muito comum que pessoas albinas tenham problemas de visão e grande sensibilidade à luz, sendo quase inerente à sua condição a necessidade do uso de óculos de grau e de sol. Essas duas características tornam o albinismo uma condição cara, e viver em um país tropical, como o Brasil, aumenta muito o risco de queimaduras e câncer de pele.
Hoje, no país, a referência de luta por direitos da população albina é a Associação das Pessoas com Albinismo na Bahia, a APALBA. Surgida em 2001, é tida como uma das mais organizadas associações brasileiras para discutir as necessidades dessa população. Em Salvador já há a distribuição gratuita de protetor solar, que se intensifica no verão, além do atendimento oftalmológico e dermatológico preferencial na rede municipal de saúde. Essas conquistas são atribuídas à luta que a entidade realiza.
Segundo avalia Roberto Bíscaro, ativista e autor do Blog do Albino Incoerente, no restante do país a mobilização de grupos albinos ainda é majoritariamente virtual, em especial no Sudeste. “Acho que a falta de uma organização do tipo [como a APALBA] no sul e sudeste contribui muito para que não tenhamos esse tipo de programa [assistencial] por aqui”, afirma.
A luta no Sudeste
A mobilização da população albina no Sudeste do país surge na época do Orkut. Andreza Cavalli foi uma das primeiras a criar uma comunidade na rede social, em 2004, voltada para essa população. Chamada de “Albinos do meu Brasil”, foi através desse meio que diversas outras pessoas albinas puderam ter contato entre si para compartilhar histórias de vida e se identificar.
Andreza, que tem dois irmãos também albinos, conta que à época eles não conheciam outras pessoas albinas e, ao buscar na rede social comunidades sobre o tema, se deparava com grupos preconceituosos. Sentiu, então, a necessidade de criar algo voltado para as pessoas com albinismo, e a partir da criação do grupo começaram os encontros, o primeiro foi em uma pizzaria em São Paulo. “No final de 2004 a gente criou essa comunidade, e aí começaram a aparecer essas pessoas. Em fevereiro de 2005, de albinos éramos eu, duas moças e os meu irmãos”.
Reconhecimento e representação
A comunidade foi impulsionada com matérias em diversos meios de comunicação, e o número de membros cresceu. Com o tempo, o grupo foi levado ao Facebook e renomeado como “Albinos do meu Brasil e do mundo” e conta hoje com o significativo número de mil membros.
Foi através dessa mesma comunidade que Roberto Bíscaro teve contato com outros albinos, o que o motivou a criar, cinco anos depois, em 2009, seu blog. Meio encontrado de desmistificar preconceitos, o site não foca apenas na questão das peculiaridades da vida da população albina, mas tem conteúdo variado, uma forma de mostrar que a vida dos albinos, tomando os cuidados que a condição exige, pode ser perfeitamente normal.
A comunidade permitia que acontecessem fóruns de discussão. Andreza relembra que, com o lançamento do filme O Código da Vinci, em que o personagem albino era o vilão, veio à tona o questionamento sobre a representação que era dada à população no cinema. “Aí começou a ter aquela discussão: por que o albino é o vilão, é o revoltado, ou como no filme ‘Eu, eu mesmo e Irene’, é o bobão?”.
Andreza, que já participou de diversos ensaios fotográficos artísticos e de moda, sabe a importância da visibilidade pra comunidade albina, além da questão da autoestima. É importante que haja a presença de albinos nos meios de comunicação para que as pessoas tenham conhecimento da condição. Da mesma forma que Roberto faz no blog, é através da informação que os preconceitos são desconstruídos e o albino naturalizado no imaginário popular.
Para isso, Andreza usa seus trabalhos como um estímulo: ela conta que cita e compartilha os trabalhos com o grupo e propõe a ressignificação da beleza albina. “Não é porque não está no padrão físico de cor que a gente não tenha uma beleza”, diz.
Barreiras sociais
Tanto Andreza quando Roberto sofreram, principalmente na infância e adolescência, com o preconceito. A falta de conhecimento sobre a condição fez com que tivessem que lidar com apelidos dos colegas e o despreparo de professores.
Em diversos vídeos do canal de seu blog no Youtube, Roberto narra a sua trajetória na infância e adolescência como o centro das atenções e o foco do bullying em uma pequena cidade na qual era o único albino. De maneira divertida, conta que era apelidado com uma infinidade de alcunhas, algumas sem qualquer sentido: “Embora eu não seja verde, ouvia [me chamarem de] marciano”. As ofensas eram ditas diretamente a ele, por vezes gritadas na rua.
Andreza conta que durante alguns anos, no ensino fundamental, tinha a sua cadeira colocada em cima do tablado – forma que a professora encontrou para tentar transpor a dificuldade visual da menina, mas que apenas reforçava a exclusão com o deslocamento de Andreza em relação ao restante da classe. Além disso, sofria com professores que atribuíam nota ao caderno: como tinha dificuldade em enxergar o quadro, ela costumava tirar xerox do caderno de amigos para estudar. Era, então, obrigada a ter uma outra tarefa todos os dias, a de transcrever todas as matérias. A falta de preparo era também evidente nas aulas de educação física ao ar livre, que limitavam a participação dos alunos albinos, mais sensíveis ao sol.
Implicações políticas da invisibilidade
Sabe-se que a ocorrência do albinismo é mais comum em populações negras. Estima-se que em comunidades europeias e norte-americanas a proporção seja 1 albino em cada 17 mil pessoas, enquanto em certas comunidades africanas esse número é bastante maior, 1 em cada 1500¹.
Diante disso, acredita-se que haja, no Brasil, uma distribuição desigual da população albina: em função da descendência africana presente mais fortemente na região nordeste e em estados como Rio de Janeiro, é esperado número maior de albinos nesses locais. No entanto, não há dados oficiais; o censo do IBGE não apresenta a opção de se declarar albino, o que deixa essa população reduzida às estimativas.
Além de refletir na própria representatividade, não saber quantos são afeta outros aspectos fundamentais na luta por direitos.“Isso [não ser contado no censo] nos coloca numa desconfortável e contraproducente posição de invisibilidade, porque fica mais complicado planejar políticas públicas de saúde realmente eficazes e eficientes sem saber quantos somos e onde estamos. Teoricamente estamos em todo o território, mas deve haver regiões onde a concentração seja maior”, explica Roberto.
Andreza e seus irmãos já perceberam o reflexo da ausência de números oficiais na prática: “Há uns anos atrás meu irmão chegou a escrever para o Ministério da Saúde falando das necessidades das pessoas com albinismo. Se teria algum meio de o protetor solar ser mais facilmente adquirido, porque é visto como cosmético pela Anvisa, por isso justificam que ele não pode ser distribuído de forma gratuita”. No entanto, a resposta do Ministério afirmava que não havia como saber a relevância da distribuição, já que não há números oficiais sobre a população.
Pró-Albino Santa Casa
Existem algumas iniciativas, à exemplo do que acontece em Salvador, que dão assistência à comunidade, como o Programa Pró-Albino, da Santa Casa de São Paulo.
Idealizado pelo dermatologista Marcus Maia e o oftalmologista Roberto Yuti Sano, o Programa Pró-Albino foi criado em 2012. Andreza participa do programa desde o ano de sua criação. “Uma vez ele [o Marcus] me encontrou na rua e falou desse programa. Fui conhecer e desde 2012 estou nele . Tem mais de cem albinos cadastrados aqui de São Paulo”.
Ela conta ainda que o programa é voltado para a prevenção. “Eles começaram a receber na Santa Casa muitas pessoas albinas, mas com câncer avançado […] já com casos de doenças espalhadas pelo corpo. O médico resolveu fazer um programa de prevenção, de acompanhamento”. A cada três meses é feito o acompanhamento dermatológico e, quando necessário, o atendimento oftalmológico.
Apesar de iniciativas como essas, o quadro ainda está muito distante do ideal. São assistências limitadas geograficamente, restritas. Em artigo², Roberto explicita: “deduz-se a existência de um contingente albino no país, que, além dos problemas inerentes à condição genética, não dispõe das condições mínimas para a aquisição dos produtos que nos são indispensáveis – bloqueador solar e óculos, por exemplo”. Essa população está espalhada em todo o Brasil; por isso, é necessário que o acesso a esses produtos seja garantido pelo governo, a nível nacional.
1, 2 – BÍSCARO, Roberto Rillo. Albinos do meu Brasil: a luta para não passar em branco. Oralidades, 2012. Disponível em: <http://diversitas.fflch.usp.br/files/9.%20B%C3%8DSCARO,%20R.R.%20Albinos%20do%20Meu%20Brasil%20-%20a%20luta%20para%20n%C3%A3o%20passar%20em%20branco2_0.pdf>
Que texto esplêndido! Não consigo descrever com outras palavras a não ser magnífico e genial!