por Natalie Majolo
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A arte da poesia no cinema se aflora nos campos semeados de Lavoura Arcaica (2001). O diretor, Luiz Fernando Carvalho, coloca seu dedo como fio condutor de uma grande obra cinematográfica brasileira. O filme, inspirado no romance de mesmo nome do brasileiro descendente de libaneses Raduan Nassar, reflete a prosa poética (ou poesia prosada?) que o escritor colocou em tantas linhas.
O longa é denso, confuso, e absolutamente lírico, assim como o livro. Entre típicos detalhes alencarianos e reflexos de Saramago, Nassar conta a história de uma família cristã descendente de libaneses. Nela, o conservadorismo do século XIX é evidente.
A trama gira em torno da fuga de um dos filhos, André (Selton Mello), do seio da família. Nascido num teto de valores empedrados, o peso do patriarcado cristão recai sobre a liberdade da casa, esmagando-a. O pai (Raul Cortez), tão firme e duro, é o tronco principal da árvore da família. Adjacente, vêm os filhos mais velhos; o primeiro filho homem, como o galho mais grosso depois do tronco. Em seguida, as três irmãs. A mãe (Juliana Carneiro da Cunha), por causa de suas emoções e afetos pelos demais, é galho que capenga entre os filhos mais novos: André, Ana (Simone Spoladore) e Lula (Caio Blat), o caçula.
À mesa, o pai discursava sobre os valores morais que a família deveria ter. Sobre sua união para com os irmãos, sobre sua obediência perante os pais. Sobre o tempo, a terra e as virtudes humanas, sendo a maior delas, a paciência. A monotonia e as regras sólidas fazem com que André fuja. No livro, o período apresenta-se como “A partida”. O moço vai para a cidade, se perde nos bordéis; longe da fazenda, sofre de delírios. Acometido por epilepsia, a doença se agrava. Em sua casa, a família agonizava. Mandam em busca dele o irmão mais velho (Leonardo Medeiros). Ao encontrá-lo, André passa a lhe contar os motivos que o levaram a sair de casa. Dá-se “O retorno” do filho. A trama acontece durante esse encontro e sua posterior volta ao ninho.
Lavoura Arcaica critica duramente os valores da família tradicional e a moralidade que as cerca: André, além do filho fugitivo, também é apaixonado pela própria irmã, Ana. Os valores cristãos extravasam as telas por meio da parábola bíblica do filho pródigo, em que o rebento que foge, torna à casa. Também critica aqueles indivíduos que a sociedade exclui por não conseguirem se adaptar à todas as normas impostas. André, que não se adequou, sofre a estigma social e familiar por ser diferente dos demais.
O delírio de André deixa livro e filme confusos. O protagonista converge e diverge em suas certezas; entre as certezas da própria família, como os ensinamentos dos discursos do pai; e entre as incertezas da vida, o acaso, e de que nada é certo no além das cercas da fazenda. A narrativa, que acontece em múltiplos tempos, abrange as diversas possibilidades de interpretações daquilo que aflige André.
Chama muito a atenção a fotografia, dirigida por Walter Carvalho. As imagens são cheias de contrastes, luzes e sombras, cenas focadas e desfocadas. Sem muitos diálogos, a trilha sonora preenche o vazio sonoro das ricas imagens poéticas. A fidelidade entre o filme e o livro é surpreendente. As falas do roteiro são, em sua maioria, literais da obra de Nassar.
No âmbito social, “tradição” é o argumento do opressor para que o oprimido não o questione; é sinônimo de legitimizar as injustiças que o poder impõe aos mais fracos. É nítida a diferença de influências que os personagens desenvolvem. Como supracitado, as mulheres são vistas como “adjacentes” ao pilar da casa. Elas não ajudam a guiar o futuro da família pois a tradição não dá essa espaço: a tarefa é regrada ao pai, ao tronco da árvore. As mulheres cuidam da casa, enquanto os homens, do campo – mas em diversas cenas, as mulheres também aparecem trabalhando a terra. Ana, a irmã fruto do incesto, não diz uma palavra sequer em todo o filme. Seria esse o resultado de uma submissão da oprimida?
Lavoura Arcaica é o primeiro longa metragem de Luiz Fernando Carvalho, que já tinha produzido obras como a telenovela “O Rei do Gado” (1996) e, anos depois, a minissérie “Hoje É Dia de Maria” (2005). O filme ganhou mais de 25 prêmios, como os de melhor fotografia, melhor filme, melhor ator (Selton Mello), entre outros. Longo e cansativo, não ganhou sucesso de público. Mas para quem admira obras verdadeiramente singulares, vale (e muito!) os 163 minutos poéticos.