Por Gabriela César (gabriela.oliveiracesar@usp.br)
Uma pesquisa realizada pelo Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) , com dados de 2024, demonstra que 37% dos brasileiros entre 50 e 64 anos são considerados analfabetos funcionais. A porcentagem cai se comparada à população brasileira entre 15 a 64 anos, que registra cerca de 22% de analfabetismo funcional.
De acordo com a instituição, indivíduos com analfabetismo rudimentar, popularmente conhecido como analfabetismo funcional, é aquele que consegue identificar informações explícitas, mas não é capaz de interpretar textos longos e complexos.
Em entrevista à Jornalismo Júnior, Filomena Assolini, professora de letramento nos cursos de Pedagogia e Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), destaca que a pessoa com analfabetismo funcional não é proficiente na leitura e na escrita, ainda que consiga decodificar alguns signos.
Segundo Filomena, essa terminologia foi criada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) durante os anos 70 e se popularizou nos anos 90. “O indivíduo com analfabetismo funcional é aquele que acredita que consegue ‘se virar’. Por exemplo, ver a placa de um ônibus e saber em qual embarcar.”

Perspectiva histórica
O levantamento do Inaf demonstra que os brasileiros mais velhos são os mais afetados pelo analfabetismo funcional. Esse apontamento não é por acaso, já que a própria instituição afirma que a população mais nova evidencia “o efeito positivo das políticas de inclusão e valorização da escola realizadas nas últimas duas décadas.” A faixa de brasileiros entre 15 a 29 anos são os que possuem maior funcionalidade na alfabetização, com cerca de 84%.
Apesar dos avanços na educação brasileira observados pelo instituto, os dados ainda são preocupantes quando se analisa a faixa etária sênior. Esse cenário é consequência de anos de políticas públicas específicas no âmbito do ensino, especialmente a partir do governo militar, em 1964.
De acordo com Maurício Dias, professor de Literatura Comparada no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFCLH) da USP, as escolas anteriores ao regime militar ofereciam maior qualidade de ensino, mas tinham seu acesso restrito a uma parcela da sociedade. Essa qualidade caiu com o golpe, diante da adoção de políticas de sucateamento da educação. “É com a reforma do ensino, durante o regime militar, que esses centros de excelência começaram a ser desmanchados”, afirma.
Em 1961, durante o governo de João Goulart, a Lei de Diretrizes e Bases foi aprovada. Pela legislação, a União deveria investir anualmente na educação 12% de seu PIB (Produto Interno Bruto), enquanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no mínimo 20% de sua receita de impostos. A Constituição de 1967, durante o regime militar, retirou essa obrigatoriedade e abriu espaço para as iniciativas privadas de ensino.

Para Filomena, o sucateamento da educação ocorreu durante todo o período político brasileiro, mas se intensificou durante o regime militar. “O Brasil sempre tentou minar o pensamento, mas na ditadura não precisou nem disfarçar”. É por isso que a professora acredita que a atual taxa de analfabetismo funcional entre adultos está relacionada às políticas educacionais no período militar, já que não era permitido questionar e não se formam pessoas críticas sem a liberdade de questionamento.
Ela ainda diz que não há projetos educacionais no Brasil de longa duração. No geral, a professora entende que as políticas públicas são partidárias, momentâneas e interesseiras. “A ausência de planejamento, consciente ou inconscientemente, é uma forma de manter a situação”, declara.
“A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”
– Darcy Ribeiro.
Maurício destaca que os países vizinhos da América Latina, tiveram uma escolarização mais ampla e rápida. A Argentina, por exemplo, universalizou o acesso à educação no século 19. Segundo o professor, a escolarização tardia no Brasil ocorreu devido à história brasileira de transformações realizadas pelas elites políticas e econômicas. A Independência do Brasil foi realizada pela própria Coroa Portuguesa e a Proclamação da República pelos militares. “Por termos uma sucessão de estados de exceção, como o Estado Novo e depois 21 anos de regime militar, esse tipo de controle social fez com que o país não olhasse priorizasse a formação de cidadãos.”
Foi ainda no contexto do regime militar, em dezembro de 1967, que o programa MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) foi criado. De acordo com o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, o movimento “tinha por objetivo ocupar os espaços de alfabetização e educação de adultos anteriormente preenchidos por programas ligados aos movimentos sociais ou ao governo deposto em 1964.”
Por outro lado, para Filomena, as aulas ministradas eram extremamente infantilizadas e com forte teor ideológico, o que teria criado um padrão de ensino para adultos que se mantém até hoje no EJA (Educação de Jovens e Adultos). “Nós estamos falando de pessoas que vem de uma vida dura, porque trabalharam a vida toda para sobreviver, ainda necessitam trabalhar e precisam ir à escola à noite. Não é fácil.”
Consequências do analfabetismo funcional
A pesquisa do Inaf revela que a população negra é a mais afetada pelo analfabetismo funcional. Cerca de 56% dos brasileiros com analfabetismo funcional são pretos ou pardos. Filomena afirma que isso representa a origem histórica dessas pessoas, pois esses cidadãos tiveram poucas oportunidades de estudo em seu passado, e por isso, enfrentam dificuldades para conquistar bons trabalhos. Em busca da sobrevivência da família, as pessoas aceitam empregos com condições precárias, os quais, muitas vezes, possuem baixa remuneração e sérios riscos.
Outra questão relacionada ao tema é a intensificação da polarização na internet, agravada pela falta de interpretação e pensamento crítico. De acordo com Maurício, pessoas com baixo nível de letramento têm mais facilidade para acreditar em fake news, por exemplo. “A falta de interpretação e leitura adequada afeta até a escolha de representantes políticos” .
Pela primeira vez, no ano passado, mais da metade da população brasileira afirmou não ter lido ao menos um livro nos últimos três meses, conforme a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, do Instituto Pró-Livro. Quando questionados sobre os hábitos no tempo livre, grande parte dos entrevistados respondeu que o principal uso é voltado às redes sociais e à internet.
Para o professor, o analfabetismo funcional e o baixo índice de leitura entre os brasileiros estão interligados, pois pessoas que lêem menos também sabem interpretar menos – ou seja, ler pouco intensifica o analfabetismo funcional. “As pessoas estão abdicando de dedicar algum tempo de suas vidas para usufruir de textos mais complexos, principalmente com a internet”.
Maurício acrescenta que, na era da internet, as pessoas necessitam permanecer sempre conectadas e produtivas, o que dificulta a formação de cidadãos com pensamentos críticos.
“A otimização do tempo, pautada por uma lógica de produtividade, anula a capacidade crítica. Não é para preparar indivíduos que tenham posições ou saibam discernir certas realidades, mas pessoas que entram nesse mecanismo da produtividade sem nem refletir o motivo”, destaca Maurício.

Filomena ressalta que a perda de leitores representa uma estagnação econômica, sociocultural e educacional. “Quem não lê, não adquire conhecimentos e, consequentemente, não cria.”
O tempo livre gasto nas redes sociais ocupa momentos que poderiam ser dedicados à leitura, de acordo com a professora. Os textos na internet precisam ser curtos e prender a atenção do leitor, que se acostumou com os mecanismos das redes sociais, pouco propícios ao tempo de contemplação, por exemplo. Essa noção, para Filomena, também está ligada aos valores sociais da sociedade contemporânea de extrema rapidez e impaciência.
