Shonda Rhimes é roteirista, cineasta, produtora norte-americana e mulher. Mulher negra. Mãe solteira de três filhas aos 46 anos que defende abertamente seu direito de não querer se casar e o empoderamento feminino. Fundadora de um verdadeiro império, suas séries Grey’s Anatomy, Scandal e How To Get Away with Murder são recordes de audiência e é unanimidade entre as espectadoras femininas que essas três séries realmente conversam com as mulheres. Isso porque suas personagens são fortes, independentes e muito bem sucedidas em suas carreiras, demarcando seu território em um ambiente predominantemente masculino.
Como escritora e produtora, acha graça quando a confundem com suas criações, mas afirma que há certa beleza em estar por trás dessas personagens. “Todas elas tem uma vida muito mais excitante que a minha, elas dizem tudo aquilo que eu um dia quis dizer ou fazer, mas não tive coragem. Há um pouco de mim em todas elas. Há muito da Cristina Yang em mim e há muito da Olivia Pope em mim agora que me permiti ser essa mulher empoderada.”
Nessa reportagem, destacaremos algumas dessas mulheres de Shonda Rhimes. Os estilhaços de sua alma, bem como de sua ideologia.
“There is no other day. Every day is like this. Every day is a crisis.”
(“Não há outro dia. Todo dia é assim. Todo dia é uma crise.”)
Grey’s Anatomy é uma série médica que leva o nome de sua protagonista Meredith Grey. Traz a rotina de internos, residentes e atendentes cirúrgicos, inclusive suas vidas pessoais entrelaçadas. É marcado por romances, amizades, traições e perdas. Uma grande quantidade de perdas.
É fácil notar uma predominância feminina na série e no hospital, o que pode ser exemplificado pelo quadro de chefes de cirurgia do Grey-Sloan Memorial Hospital na décima segunda temporada.
Meredith Grey
Meredith é a protagonista da série. Sua jornada se inicia como interna no hospital em que sua mãe trabalhara, sempre preocupada em ser o oposto do que ela fora: uma mulher comprometida apenas com seu trabalho, que sequer demonstrava amor pela própria filha.
Ela se apaixona por um atendente, o neurocirurgião Derek Shepherd. Essa relação é cheia de reviravoltas, o que só alimenta seu medo de se comprometer:
“There’s a reason I said I’d be happy alone. It wasn’t ‘cause I thought I’d be happy alone. It was because I thought if I loved someone and then it fell apart, I might not make it. It’s easier to be alone, because what if you learn that you need love and you don’t have it? What if you like it and lean on it? What if you shape your life around it and then it falls apart? Can you even survive that kind of pain? Losing love is like organ damage. It’s like dying. The only difference is death ends. This? It could go on forever.”
(“Existe uma razão pra eu dizer que seria mais feliz sozinha. Não que eu pensasse que seria mais feliz sozinha, é que eu pensava que se eu amasse alguém e desse errado… Eu não conseguiria aguentar. É mais fácil ficar sozinha. Por que e se você aprender a amar e depois não tiver a quem amar? E se você gostar de amar e ficar dependente? E se você mudar a sua vida a volta do amor e então ele acabar? A gente consegue sobreviver a esse tipo de dor? Perder um amor é como perder um órgão, é como morrer. A única diferença, é que a morte é o fim e isso, isso pode durar pra sempre!”)
A personagem, que já possuía certa carga de traumas, irá sobreviver a outros tantos durante a série. É inquestionável sua força e evolução durante as 12 temporadas de até então. Venceu seu medo e casou com o amor de sua vida, adotou uma criança da África, teve mais dois filhos e se tornou chefe de Cirurgia Geral (seguindo, por fim, os passos profissionais da mãe).
Ellis Grey
Ellis é a mãe de Meredith. Foi a primeira mulher a participar do programa cirúrgico do hospital e a primeira a ganhar um Harper Avery. Possuía um histórico exemplar como médica, mas uma desilusão amorosa a fez tentar suicídio em frente a sua filha. Alguns anos depois, ainda jovem, desenvolveria Alzheimer o que comprometeria a única coisa que ela ainda valorizava: seu trabalho.
Cristina Yang
Cristina Yang é uma das personagens mais aclamadas pela crítica. Ela é confiante, decidida, sarcástica e, por vezes, insensível. Sua relação com Meredith vai além de uma amizade: elas precisam uma da outra. Essa deve ser a única relação que Cristina considera estritamente necessária.
Se revelará, desde o princípio, um destaque entre os internos, decidindo sua especialidade muito antes dos demais: cirurgiã cardiotorácica.
Mesmo dentro do casamento, não se renderá ao desejo do marido por filhos. Divorciada, porém marcada pelo amor dele, sua escolha será ser brilhante em sua carreira.
April Kepner
Em um oposto polar, está April. Ela é religiosa, amável e dedicada às pessoas. Tida a princípio como tola, possuí uma força que só pode ser mensurada nas últimas temporadas. Enfrenta a perda do filho recém nascido se entregando ao trabalho: cirurgiã de trauma, vai servir o exército, o que acaba comprometendo seu casamento. Certa de que podem superar, ela continua lutando para reconquistá-lo, até, finalmente, ceder o divórcio. É quando descobre estar grávida, novamente.
Miranda Bailey
Bailey foi a responsável por Meredith, Yang e sua turma de internos. Apelidada de “Nazi”, fazia jus a fama. Contudo, é uma das mulheres mais importantes da série. Dedicada e fiel como um cão, é a prova do valor de uma mulher em qualquer meio profissional.
Sacrificou seu primeiro casamento por seu trabalho, mas ninguém é capaz de questionar seu amor pelo filho ou por seu segundo marido. É uma médica talentosa, mas, principalmente, uma líder nata. Assim, conquistará o lugar que lhe é de direito, como Chefe de Cirurgia.
Callie Torres
Callie é cirurgiã ortopédica. Uma renomada cirurgiã em uma área ainda predominantemente masculina. Sua força vai muito além da necessária para quebrar e consertar ossos, ela enfrenta desilusões amorosas com uma crença inabalável no romance.
Ela se descobre bissexual quando se apaixona por Arizona. É durante um tempo desse relacionamento, que engravida de Mark, seu melhor amigo, e sua filha acabará tendo três responsáveis: duas mães e um pai, todos maravilhosos.
Arizona Robins
Arizona é uma mulher linda, alegre e confiante. Homossexual assumida, cirurgiã pediátrica dedicada, esposa apaixonada e ótima mãe, você só fica a se perguntar: como ela consegue?
É quando em um acidente de avião com outros médicos do hospital, ela perde uma de suas pernas. Como a decisão de amputar foi de sua própria esposa, além da perda do membro, ela fica com um casamento conturbado, por não conseguir perdoar Callie.
Ela dará a volta por cima e retornará ao trabalho, inclusive por um tempo, recuperando a estabilidade de seu relacionamento. Contudo, o divórcio torna-se inevitável. Nessa mesma época, ela resolve adquirir uma nova especialização: cirurgia fetal.
Amelia Shepherd
Amelia é a irmã mais nova de Derek Shepherd, neurocirurgião casado com Meredith. Com a mesma especialidade do irmão, ela assumirá o cargo dele no Hospital, a despeito de seu passado conturbado. Além de ter de provar seu valor como toda mulher, terá que provar não ser apenas a “outra Shepherd”.
É uma personagem de grande carga emocional. O pai foi assassinado na sua frente e seu namorado morreu de overdose ao se drogar com ela. Em uma passagem, quando questionada sobre sua fragilidade, ela responde:
“I am not fragile. I’m a drug addict. I’ve fallen off the wagon twice and I’ve gotten back on it. That doens’t make you fragile, Derek, that makes you very freaking strong.”
(“Eu não sou frágil. Eu sou viciada. Eu caí do vagão duas vezes e voltei a bordo. Isso não te faz frágil, Derek, isso te faz extremamente forte.”)
“My white hat is bigger than yours.”
(“Meu chapéu branco é maior que o seu.” – ‘white hat’ é uma expressão norte-americana usada por aqueles que prezam pela justiça, que agem a favor do bem)
Scandal é uma série baseada na rotina de “Olivia Pope e Associados”, uma empresa que se dedida a proteger e defender imagens públicas, resolvendo problemas antes que o mundo saiba que eles já existiram. Usam de meios ilícitos, mas trabalham exclusivamente a serviço do bem, conforme a intuição de Olivia.
Boa parte da trama está associada a relação dela com o Presidente, para o qual trabalhou e de quem não consegue se desvincular. Nem sabe se deseja isso.
Olivia Pope
Brilhante em seu papel de gerenciadora de crises, Olivia guia sua equipe sempre obtendo sucesso. Não acredita em derrotas, nem em mentiras. Aqueles que a procuram, buscam pelo melhor e ela certamente lhes oferece isso.
Apaixonada pelo Presidente, sabe que não lhe convém o papel de amante ou de vítima. Nem por isso exige que ele deixe a esposa, o que não poderia ser feito sem arriscar o cargo que ela o ajudou a conseguir.
É uma mulher poderosa, que corresponde a sua fama e é extremamente sincera. É uma especialista em relacionamentos e são várias as passagens em que manifesta seu descontentamento com seus sentimentos.
“He’s playing you, because you let him. You give him everything he asks for, and you clean up his messes, and you believe him even when he lies to you and that is NOT LOVE. Love is making him face who he is. The best thing you can do for him is to do the best thing FOR him. It’s not your fault what he did, but letting him get away with it, THAT IS your fault.”
(“Ele está jogando com você, porque você o deixa fazer isso. Você dá a ele tudo o que ele pede, e você limpa a bagunça dele, e você acredita nele mesmo quando ele mente para você e isso não é amor. Amor é fazê-lo enfrentar quem realmente é. O melhor que você pode fazer por ele é fazer a melhor coisa para ele. O que ele fez não é culpa sua, mas deixá-lo escapar, isso é culpa sua.”)
“I am not a toy that you can play with when you’re bored or lonely or horny. I am not the girl the guy gets at the end of the movie. I am not a fantasy. If you want me, earn me! Until then, we are done.”
(“Eu não sou um brinquedo pra você brincar quando está entediado, sozinho ou com tesão. Eu não sou a garota que os caras ficam no final do filme. Eu não sou uma fantasia. Se você me quer, me mereça! Até lá, estamos acabados.”)
Mellie Grant
Mellie é a primeira-dama. Há 18 anos ao lado de Fitz, ela sabe de suas traições e não está disposta a deixá-lo. Aqui o amor e o ódio caminham lado a lado. Além do amor, outra coisa a mantém presa a ele: o poder.
Suas habilidades políticas ganham de longe das de seu marido, que diga-se de passagem, poderia ser eleito o presidente mais babaca que já existiu. Frequentemente, seu marido refere-se a ela como um animal político. De fato, ela sabe dissimular como ninguém, é oportunista e cheia de estratégias. Se alguém está comprometida com a Casa Branca, esse alguém sem dúvida é a primeira-dama.
Abby Whelan
Abby é uma dos associados de Olivia e sabe ser incisiva como ninguém. Foi salva por Liv de um relacionamento abusivo, no qual apanhava frequentemente.
Provavelmente, é a feminista mais expressiva da série e carrega rancores de homens conservadores e intolerantes, como os da elite política norte-americana.
Uma passagem marcante na série é quando Josie Marcus, primeira mulher nas primárias das eleições presidenciais dos EUA, se posiciona sobre o machismo de seus concorrentes.
“I don’t know what terrible things you’ve done in your life up to this point, but clearly your karma’s out of balance to get assigned to my class.”
(“Não sei que coisas horríveis vocês já fizeram, mas se vão fazer a minha aula, tem alguma coisa errada.”)
How To Get Away With Murder é uma série de de drama criminal em que Annalise Keating advogada de defesa e professora de Direito Criminal seleciona alguns alunos para trabalharem em seu escritório. Ao contrário de Olivia Pope, o trabalho dela é nos tribunais defendendo indivíduos de caráter duvidoso. Mas é por conta de seu marido que ela e seus alunos, involuntariamente, se verão envolvidos na trama de um assassinato
Annalise Keating
Annalise foi abusada sexualmente quando criança por um parente e, hoje, é uma advogada de defesa bem sucedida que representa clientes de alto perfil. Na classe de aula, sua palavra jamais é contestada e ela faz jus a sua fama nos tribunais em discursos como:
“The question I’m asked most often as a defense attorney is whether I can tell if my clients are innocent or guilty. And my answer is always the same. I don’t care. And it’s not because I’m heartless, although that’s up for debate, but because my clients, like all of us here in this room, lie. And that makes them unknowable.”
(“A pergunta mais frequente que faço como advogada de defesa é se posso dizer se meu cliente é inocente ou culpado. Minha resposta é sempre igual: não me importo. Não é por ser insensível, porém a questão está aberta, mas porque meus clientes como todos aqui dentro, mentem.”)
No âmbito pessoal, seu relacionamento com o marido é quase doentio: ela o ama, o protege, mas sabe que é manipulada por ele. Em meio a isso, mantém um relacionamento extraconjugal com Nate, um detetive.
Apesar de defender criminosos, Annalise tem alguns valores muito bem estabelecidos: ela é a representação da mulher negra, não meramente sexualizada, mas destemida, resistente e inabalável. Algumas passagens que emocionam são os momentos íntimos dela diante do espelho, quando caem perucas, maquiagem e terninhos, entrando em cena pele e cabelo naturais. Ela é uma mulher real que se constrói todos os dias para fortalecer sua imagem de poder e respeito diante dos colegas de trabalho. A atriz que a interpreta, Viola Davis fez um discurso a respeito quando premiada:
“And let me tell you something: The only thing that separates women of color from anyone else is opportunity. You cannot win an Emmy for roles that are simply not there.”
(“E me deixe dizer uma coisa, a única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não consegue ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não existem.”)
Shonda Rhimes
A representatividade que Shonda tem promovido nas telas ao trazer essas personagens tantas vezes negligenciadas contribui para a conscientização sobre questões relacionadas a mulheres, LGBT e negros. A vasta gama de histórias que toma conta de seus shows e produções tem um propósito muito maior que diversificar a televisão: ela mesma afirma que seu intuito é “normalizar” a TV. Porque as mulheres, os negros e as pessoas LGBT não são algo fora do comum, algo raro, o que o termo diversidade sugere. Eles são o normal. “As pessoas deveriam ligar sua televisão e ver alguém que se pareça com elas e que ame como elas. E mesmo que esse alguém não se pareça ou ame como você, que você possa aprender com ele.”
Na história de todas essas mulheres, você enxerga uma escritora muito honesta sobre a dificuldade em conciliar a “mulher empoderada, que se destaca em sua profissão”, e “a mãe e esposa presente”. Há uma verdade muito intensa no discurso de que ao tentar balancear os dois, algo sempre estará em falta, e que nós só podemos aceitar isso, porque sentir culpa é o que nos pega. Se sentir culpada é o que pode te comer viva e isso não é justo. Nós devemos nos dar permissão para não nos sentirmos culpadas por escolher. Talvez nossa missão seja ser uma geração que não sacrificará tudo por seus filhos, mas que ensinará suas meninas a serem poderosas, a ganharem a vida, a falarem por si mesmas e não se submeterem aos outros. A essa altura, nós não necessariamente desistiremos da maternidade, mas muito menos de sermos mulheres independentes.
Por Aline Melo
alinemartimmelo@gmail.com