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Até Que Tenhamos Rostos: o diamante esquecido do autor de Crônicas de Nárnia

Releitura do mito de Psiquê e Eros levou mais de trinta anos para ser concluída
Por Rachel M. Mendes ( rachelmmendes@usp.br )

    Lançado em 1956 e considerado por Clive Staple Lewis a obra preferida de sua autoria, Até Que Tenhamos Rostos (Thomas Nelson Brasil, 2021) é sua narrativa de ficção mais complexa, de abordagem mais densa e madura em relação aos sete livros da saga As Crônicas de Nárnia (Harper Collins Brasil, 2024). Professor na Universidade de Oxford, Lewis extravasa seu conhecimento literário clássico ao unir reflexões a respeito da natureza do amor — provenientes de sua profunda fé cristã — na releitura do mito de Psiquê e Eros.

O mito original

C. S. Lewis utiliza como fonte para a apuração a obra Metamorfoses, também conhecida como O asno de Ouro (Editora 34, 2019), escrita em 125 d.C. por Lúcio Apuleio. Embora, na nota autoral conjunta à edição do escritor irlandês, confesse não tomá-lo à fidelidade como modelo ou influência em seu trabalho de releitura. 

A história original gira em torno de Psiquê, uma princesa cuja beleza arrebatava a todos. Tamanho era seu encantamento que passa a ser endeusada, a ponto de seu reino negligenciar o culto à deusa Vênus.

“A esta donzela suplicavam todos, e debaixo de rosto humano adoravam a majestade de tão grande deusa; quando de amanhã se levantava, todos ofereciam sacrifícios e manjares, como lhe sacrificavam à deusa Vênus”

Lúcio Apuleio na obra Metamorfoses

A suposta face divina da moça impedia pretendentes de se aproximarem romanticamente, o que conduz o pai a consultar o oráculo de Apolo. A resposta, todavia, é devastadora: seria necessário expor Psiquê na montanha, a fim de que se tornasse presa de um dragão. 

Ardendo em inveja, Vênus aproveita a punição para se vingar, por meio de seu filho, Eros (o Cupido). Flechando a jovem, ele faria com que ela se atormentasse em amores pelo pior dos homens. A trama muda quando Eros apaixona-se por Psiquê e a leva para um majestoso palácio secreto, onde a encontra apenas na escuridão da noite, onde a moça não poderia ver a face do deus.

Após um tempo, a princesa reclama a visita de suas duas irmãs à sua morada. Tomadas de ciúme, as duas conspiram para convencê-la de que, na verdade, seu casamento com Eros era o cativeiro privado de uma temível serpente. Assim, fazem com que ela desobedeça à ordem do marido e, quando anoitecesse, levasse um lampião consigo ao quarto, para revelar a verdade de sua identidade e matá-lo. Entretanto, ao iluminar o rosto com a luz, Psiquê se vê encantada pela beleza do próprio deus adormecido. O óleo quente cai sobre o ombro do esposo, que acorda e sofre uma série de punições impostas por Vênus à Psiquê. 

A história finaliza quando, após a mais árdua de suas tarefas punitivas, a princesa sucumbe. Em desespero pela morte de sua amada, Eros resgata e revive Psiquê, casando-se com ela sob a aprovação de Zeus e fazendo-na uma deusa e imortal.

Escultura de Eros e Psiquê.
Psique Reanimada Pelo Beijo do Amor (1793, Antonio Canova)
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

A releitura de Lewis

Em uma articulação narrativa maestral, C. S. Lewis desloca o protagonismo de Psiquê para uma das irmãs da obra: Orual, a narradora da história e a mais feia dentre as princesas. Assim, o livro se apresenta como um relato de acusação aos deuses, na qual a moça exprime a amargura sentida em torno das vivências em que seus últimos anos a colocaram. Sua queixa divina pautava-se sobre o lamento de uma vida sem resposta.

Na releitura, Orual é trazida como uma personagem intensa: seu amor pelas pessoas à sua volta, sobretudo pela própria Psiquê, é constantemente reafirmado.Como a articulada rainha que vem a se tornar, Orual deseja comandar, conquistar, ordenar e proteger. E, segundo sua própria visão, sempre em nome do amor. 

A estratégia de Lewis é de trazer o belo palácio de Psiquê como invisível aos olhos mortais, fato o qual faz com que sua sanidade seja questionada pela narradora e pelo leitor. Assim, a crença de Orual de que protegeria a irmã ao sugerir que descumprisse à ordem do marido parece racional. Com a separação das duas após a punição da bela princesa, a narração se torna mais desesperada: há uma Orual sanguinária, ambiciosa e profundamente sedenta de uma resposta para cada evento por ela presenciado. 

“E, nesse momento, estamos passando para a

parte da história na qual se baseia majoritariamente a

                                                      minha acusação contra os deuses.”

                   Orual após seu encontro com Psiquê no palácio invisível

As referências utilizadas pelo escritor originam-se de clássicos da humanidade: Orual e o questionamento ao divino remetem ao livro de Jó; o desejo por uma despedida digna da irmã (apesar das convenções sociais) é comparada a Antígona, de Sófocles; o injusto sacrifício da moça pura relaciona-se à desgraça de Efigênia na tragédia Agamemnon. Entrelaçando-se à maestria de recursos narrativos e a complexidade do conteúdo moral, o amplo repertório cultural colabora para coroar Até Que Tenhamos Rostos como o livro mais maduro do autor.

C.S. Lewis em preto e branco. O autor está de perfil e fumando.
Clive Staple Lewis dedicou o livro à sua esposa, Joy Davidman, com quem se casou no ano do lançamento
[Imagem: Reprodução/Getty Images]

Devoto cristão, C. S. Lewis insere na história uma mensagem que relaciona a redenção da alma ao amor e à transcendência, a partir do princípio de que, no mito original, é o Amor (Eros) que tornar a Alma (Psiquê) imortal. Todavia, aqui, o contato humano com o amor não provém da alma da princesa sacrificada — cujo ser já ansiava por algo mais elevado que sua experiência humana —, mas do coração angustiado, ferido e ciumento de Orual. Uma alma depravada e egoísta que não conseguia ver para além de seus próprios olhos.

 Na segunda parte do livro, uma série de eventos nostálgicos levam a narradora à reflexão por meio de perspectivas relatadas por outras personagens acerca das atitudes que tomou “em nome do amor”. E é disso que nasce seu doloroso confronto moral: o que chamava de amor, na realidade, denotava uma alma com comportamentos devoradores e egocêntricos, cujos sacrifícios voltavam-se a si própria e à prisão do outro.

Entretanto, é apenas no horror de seu próprio corrompimento que Orual encontra o caminho para redenção. Aqui, ela se arrepende e, ao fim de uma experiência metafísica e transcendente, encontra, na beleza da face do Amor, a resposta que tanto buscava. Apenas nesse amor, superior a si mesma e despido de egoísmo, sua alma fazia-se bela. E então se encerra o arco da personagem Orual:

“Sei agora, Senhor, por que você não me deu

 nenhuma resposta. Você é a própria resposta. Diante do 

seu rosto, as perguntas morrem. Que outra resposta seria suficiente.”

Até Que Tenhamos Rostos, C. S. Lewis


*[Imagem de capa: Acervo Pessoal/Rachel Mendes]

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