Por Matheus Andriani (andrianimatheus@usp.br)
Em meados de 2016, em um cenário musical ainda dominado por estereótipos relacionados a países latino-americanos, surgiu no circuito internacional um nome que rapidamente desafiou esse panorama. Estudante universitário e empacotador de um supermercado na região suburbana de Porto Rico, o jovem Benito, que posteriormente se transformou no astro do pop Bad Bunny, passou a ocupar os palcos mais disputados do mundo com uma proposta artística que mescla irreverência estética, referências da cultura popular caribenha e críticas sociais.
“Só recentemente tive total clareza sobre o que conquistei. Antes, muitas vezes me esquecia, me sentia o garoto do supermercado.”
Bad Bunny, em tradução livre, em entrevista ao El País

Benito Antonio Martinez Ocasio nasceu em 10 de março de 1994, em San Juan, Porto Rico. O artista cresceu como um típico jovem porto-riquenho apaixonado por música. Fã de reggaeton — gênero que mistura elementos de hip-hop e reggae — desde cedo, ele tinha como referências Daddy Yankee, Vico C e Tego Calderón, presenças constantes nas viagens de carro a caminho da escola. Suas influências, no entanto, iam além da música urbana: também ouvia salsa, merengue, rock e, por um tempo, teve os Bee Gees como banda favorita.
Na infância, participou do coral da igreja católica de sua comunidade, onde permaneceu até os 13 anos, quando decidiu se dedicar à criação de sua própria arte e começou a se aventurar em improvisos e produções caseiras. Mais tarde, ingressou no ensino superior na Universidade de Porto Rico e, para custear os estudos, conciliava as aulas com o emprego de empacotador em uma rede de supermercados local.
O nascimento de um astro
Seu nome artístico, Bad Bunny, não foi premeditado. Na realidade, surgiu de maneira inusitada. Ainda criança, o cantor precisou se fantasiar de coelho em um evento da escola e foi fotografado com uma expressão que chamou a sua atenção anos depois. A partir dessa lembrança, decidiu adotar o apelido como identidade artística, apostando na força comercial do contraste. Sua lógica era simples: quanto mais popular fosse o nome, maiores as chances de ser lembrado pelo público. Assim, a dualidade entre a doçura associada ao coelho e a ideia de rebeldia implícita no “Bad” (inglês para “ruim” ou “mau”) criaria uma identidade marcante, capaz de se destacar na indústria musical.

Bunny começou a ganhar visibilidade ao divulgar suas músicas de forma independente na plataforma SoundCloud. No ano de 2016, a repercussão da faixa Diles chamou a atenção de produtores musicais, que passaram a entrar em contato com o artista enquanto ele ainda conciliava a rotina de trabalho no supermercado. A partir desse momento, sua carreira passou a tomar novos rumos.
Em 2017, o cantor consolidou seu espaço no cenário urbano latino com músicas como Pa Ti e Sensualidad. No ano seguinte, seu nome ultrapassou as fronteiras do público latino com o sucesso de I Like It, parceria com Cardi B e J Balvin. A faixa, indicada ao Grammy, chegou ao primeiro lugar da Billboard Hot 100 em julho de 2018, estabelecendo Bad Bunny como um dos principais nomes da música pop global.
A construção de uma nova latinidade
Ao longo de sua carreira, Bad Bunny utiliza não apenas sua música, mas também sua imagem como ferramenta para ampliar as representações e romper com estereótipos relacionados à arte latino-americana no cenário internacional. A obra do rapper se tornou uma verdadeira expressão da realidade vivenciada em regiões marginalizadas de Porto Rico, onde o próprio artista morou.
Ao utilizar elementos da cultura popular caribenha, como expressões populares e a valorização de símbolos culturais periféricos em seus clipes — as motos, as praias, as festas de rua e as referências ao cotidiano das comunidades —, o cantor muda a forma como a latinidade é vista na indústria musical e desafia a imagem estereotipada do latino exótico que, por muito tempo, dominou a representação da América Latina no mercado.
“Agora todos querem ser latinos, mas falta a eles o tempero, a batida e o reggaeton.”
Bad Bunny, El Apagón

Em entrevista à Jornalismo Júnior, Nathalia Fabro, jornalista e pesquisadora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da USP, ressalta que até mesmo o idioma nativo de Bad Bunny, utilizado em suas produções, é parte de um movimento consciente de reafirmação identitária: “Ele já falou que nunca vai querer cantar em inglês, sempre vai cantar em espanhol. Isso também é uma posição política e de identidade muito forte.”
Para a pesquisadora, a linguagem também desempenha um papel central na forma como o artista rompe fronteiras dentro da própria América Latina, ao reunir expressões de diferentes países em suas letras. “Acho muito bacana que ele traz expressões do espanhol da Colômbia, da Argentina, do México, de Porto Rico. Isso é muito interessante porque assim ele não se fecha apenas ao seu país de origem, abraça todo mundo”, comenta.
Política e críticas sociais
Além de sua relevância musical, Bunny consolidou-se como uma das principais vozes da nova geração de artistas latino-americanos no que diz respeito ao posicionamento político e às críticas sociais. Ao longo de sua carreira, o cantor utiliza sua visibilidade para denunciar desigualdades e promover discussões sobre questões que afetam diretamente Porto Rico e a América Latina, como racismo, machismo, homofobia e as políticas migratórias dos Estados Unidos.
Em faixas como El Apagón (2022), Bad Bunny critica a precarização das condições de vida em Porto Rico, especialmente após a negligência do governo norte-americano em relação à recuperação da ilha depois de furacões e crises energéticas.
O artista também está na linha de frente do rompimento de padrões de gênero, principalmente em relação ao ideal de masculinidade atrelado à gêneros musicais como o trap e o reggaeton. Com frequência, ele adota figurinos que misturam referências femininas e masculinas, como saias, unhas pintadas e maquiagem. Assim, questiona a ideia de que masculinidade precisa estar vinculada à virilidade ou agressividade.
Em viagem com a turnê DeBÍ TiRAR MáS FOToS World Tour, o cantor decidiu excluir sua passagem pelos EUA. Em uma entrevista à i-D, Bunny explica que a conduta tem relação com a política anti-imigração estabelecida pelo governo norte-americano, e que tem consciência de que seus shows atraem parte dos latinos que vivem no país.
Ele afirma temer que seus fãs sejam abordados pelo ICE (Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos) na entrada de sua apresentação no país, e sua turnê se transforme numa emboscada para capturar imigrantes.
A importância de registrar momentos
Seu álbum mais recente, Debí Tirar Más Fotos (2025) aprofunda a conexão do porto-riquenho com suas raízes culturais nativas, ao misturar gêneros tradicionais da ilha, como salsa, plena e jíbaro, com as batidas modernas do reggaeton e da música urbana. A obra convida à reflexão sobre a identidade de Porto Rico em meio às mudanças sociais e políticas que o território enfrenta, ao abordar temas como colonialismo, gentrificação e resistência cultural.

Como parte desse projeto, Bad Bunny também lançou um curta-metragem com o mesmo nome, estrelado pelo ator porto-riquenho Jacob Morales, que destaca as críticas sociais presentes no disco. O filme ilustra as consequências da influência externa sobre a cultura local, o que reforça a mensagem do álbum sobre a importância de preservar tradições e o senso de pertencimento.
O álbum foi impulsionado por sucessos como o single DTMF, que chegou ao topo da Billboard Global 200 e da Billboard Hot Latin Songs. O projeto se tornou seu quarto número um na Billboard 200 e quebrou recordes na América Latina, com destaque em países como Porto Rico, México, Argentina e Colômbia, onde liderou rankings de vendas e streaming.
Mas, e quanto ao Brasil?
Com 27 indicações e 11 vitórias no Grammy Latino, Bad Bunny se firmou como um dos principais nomes da música latina no cenário internacional, especialmente entre os países da América Latina. No entanto, apesar desse reconhecimento global, sua arte ainda encontra resistência para conquistar o público brasileiro.
Em entrevista ao Sala33, é o que analisa Valmir Moratelli, doutor em comunicação e colunista da revista VEJA: “O Brasil tem uma certa rejeição à música latina. Não se coloca como país latino, apesar de ser geograficamente, historicamente e politicamente, a gente tem a questão da barreira do idioma. Por sermos o único país da América do Sul que fala em português, cria-se uma barreira de identificação imediata com os outros. A nossa identificação vai para um outro lado que não é o do idioma, algo que seria muito mais fácil de se perceber entre a Argentina, Chile, Uruguai, Cuba” afirma Valmir.
Para Moratelli, a construção dessa conexão com o Brasil ainda está em processo e pode depender de uma aproximação mais direta com o público: “Ainda falta maturar mais essa personalidade dentro do público nacional. Ao fazer entrevistas, shows, e se expor, talvez ele possa, com o tempo, trazer essa singularidade e conquistar mais o público.”
