Por Sofia Matos (sofi.matos@usp.br)
Carla Madeira é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea. Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 18 de outubro de 1964, formou-se em Jornalismo e Publicidade na Universidade Federal de Minas Gerais e, por décadas, atuou como redatora antes de estrear na ficção literária, em 2014, com o romance Tudo é Rio (Quixote+Do, 2014). Desde então, lançou mais dois livros: A Natureza da Mordida (Quixote+Do, 2018) e Véspera (Record, 2021). As obras transitam entre a violência emocional e a delicadeza da existência cotidiana.
Sua escrita é marcada pela combinação de linguagem direta e profundidade emocional. Nas histórias que cria, Madeira investiga com precisão os afetos mais viscerais — o amor, a raiva, o desejo, o perdão —, e revela personagens que vivem no limite entre o humano e o instintivo.
Apesar da estreia tardia, seu sucesso foi explosivo. Tudo é Rio, inicialmente lançado com pouca repercussão, tornou-se best-seller anos depois, impulsionado por clubes de leitura, resenhas no TikTok e leitores que se viam profundamente atravessados por suas histórias. Com isso, a autora passou a ser reconhecida como um dos nomes de destaque na literatura brasileira. Sem recorrer a fórmulas fáceis ou finais felizes, Carla Madeira escreve para provocar reflexões profundas. Seus livros não são apenas histórias, são experiências. Essa entrega emocional a transformou em um fenômeno editorial e estabeleceu sua presença constante nas listas de livros mais vendidos no Brasil.
Tudo é Rio: a força bruta dos sentimentos humanos
Embora tenha chegado ao mercado editorial de forma discreta, sem grande repercussão, Tudo é Rio foi resgatado anos depois pelo entusiasmo dos leitores nas redes sociais. Desde então, passou a figurar entre os romances contemporâneos mais lidos do país: chama atenção pelo estilo direto e pela densidade emocional de sua trama.
O enredo se constrói sobre três personagens centrais: Dalva, Venâncio e Lucy. Suas histórias se cruzam a partir de acontecimentos marcados por perdas, impulsos e escolhas difíceis. A autora não revela tudo de imediato; ela conduz o leitor por fragmentos, vozes alternadas e um tempo narrativo que avança e recua, como a água de um rio. O livro não é apenas a história de um triângulo amoroso; é uma narrativa sobre as perdas e as tentativas — nem sempre bem-sucedidas — de recomeço.
É essa fluidez que dá título ao romance e orienta sua estrutura. A imagem do rio não aparece apenas como metáfora, mas também como uma base para compreender o movimento interno dos personagens. Eles tentam, constantemente, conter o que transborda: a dor, o desejo, o arrependimento.
“Tudo escorre. Tudo escapa. Tudo é rio”
Carla Madeira
O título Tudo é Rio não é apenas uma escolha poética ou simbólica. Ele carrega o sentido mais profundo da obra. Madeira usa a imagem do rio para representar o fluxo contínuo da vida, um movimento que não pode ser controlado, contido ou revertido. Como as águas, as emoções dos personagens escorrem, invadem margens, se agitam em correntezas ou secam em épocas de estiagem.
A história explora temas como maternidade, sexualidade, ciúme, perda e perdão. A linguagem é acessível e direta, mas não superficial. Carla Madeira constrói cenas de alta carga emocional, com economia de palavras e precisão narrativa. Um dos recursos mais marcantes do livro é a forma como a autora expõe os sentimentos mais íntimos dos personagens sem recorrer a grandes discursos. O trecho a seguir exemplifica a tensão da obra: “Era dor demais para caber em silêncio, mas era silêncio demais para caber na dor”.
Lucy, uma das personagens principais, não é apresentada como vilã nem como heroína, mas como alguém moldada por uma realidade dura e pouco afetuosa. Já Dalva e Venâncio vivem um amor intenso, mas marcado por traumas e pela dificuldade de processar o luto. A relação entre eles forma o núcleo do livro, que avança sempre em busca de respostas sobre os limites entre o erro e o perdão.
A narrativa não segue uma ordem linear rígida. Os capítulos são curtos e, muitas vezes, fragmentados, característica que confere ritmo e sustenta a tensão emocional do livro. Essa estrutura também favorece uma leitura contínua, que aproxima o leitor das camadas psicológicas dos personagens.
Ao longo da obra, Madeira faz uso de frases breves e impactantes. Algumas se destacam por traduzirem sentimentos difíceis de nomear: “Não se perdoava por tudo que sentia, nem por tudo que deixava de sentir.” Trechos assim resumem, com simplicidade e precisão, os conflitos que os personagens carregam.
O romance mostra que, mesmo diante da tragédia, da dor ou dos impulsos mais destrutivos, a vida segue. Não porque tudo se resolve, mas porque o tempo não para. E com ele, somos obrigados a continuar. Há uma fluidez inevitável nas experiências humanas. Ninguém sai ileso, mas também ninguém está completamente condenado. Como um rio — querendo ou não — vamos continuar fluindo.
A metáfora do rio marca presença em cada personagem e em cada capítulo. Venâncio age por impulso, Dalva reage aos problemas com silêncio, Lucy escolhe viver à margem. Nenhum deles é inteiramente certo ou errado — são pessoas lidando com o que a vida lhes oferece, com o que têm e com o que perderam.
Sem oferecer respostas fáceis ou finais reconfortantes, o livro propõe reflexões difíceis sobre culpa, perdão e a complexidade dos afetos humanos. Cada personagem carrega dentro de si uma ferida aberta, e o leitor é levado a observar, sem julgamento, como cada um lida com o que foi perdido.
Com esse romance de estreia, Carla Madeira introduz ao público sua escrita que combina intensidade emocional, precisão narrativa e temas universais. Tudo é Rio permanece na lista de livros mais vendidos do Brasil, não apenas por sua trama envolvente, mas também pela forma como mostra as dores humanas com coragem e clareza.
A Natureza da Mordida: as feridas que o tempo não apaga
Publicado em 2018 pela editora Quixote+Do e relançado em 2022 pela Record, A Natureza da Mordida é o segundo romance da mineira. Depois de conquistar milhares de leitores, a autora volta a abordar as profundezas da condição humana, desta vez através de uma narrativa mais intimista, com um ritmo delicado e cheio de camadas. No livro, a dor que silencia, a memória que falha e a necessidade de compreender o que nos falta se entrelaçam com leveza e intensidade.
A história se desenrola a partir do encontro entre duas mulheres: Biá, uma psicanalista aposentada que enfrenta os primeiros sinais de Alzheimer, e Olívia, uma jovem jornalista marcada por uma solidão e pela dificuldade de compreender um trauma da juventude. O ponto de partida é aparentemente banal: as duas passam a se encontrar por acaso, aos domingos, em uma banca de jornal. Mas, a partir dessas conversas, surge uma troca profunda que revela passados marcados por perdas, omissões e lembranças mal resolvidas.
A narrativa é contada a partir de dois pontos de vista. De um lado, estão as anotações de Biá, que preocupada com o avanço da perda de memória, registra sua vida em um caderno. Do outro, estão os escritos de Olívia, fragmentos que fazem parte de uma investigação íntima sobre si mesma, sua família e, principalmente, sua relação com a amiga Rita, com quem rompeu de forma brusca na juventude. A pergunta que desencadeia a trama e orienta o enredo do livro é feita por Biá:
“O que você não tem mais que te entristece tanto?”
Carla Madeira
É a partir dessa provocação que o livro se aprofunda em uma reflexão sobre as ausências que deixam lembranças e perguntas. Biá tenta lidar com o abandono repentino do marido, Teodoro, e com os impactos disso na criação da filha, Teresa. Já Olívia enfrenta a falta do pai, morto quando ela ainda era pequena, e o desaparecimento emocional de Rita, sua melhor amiga. Ambas, de formas diferentes, tentam dar conta daquilo que faltou, que partiu sem explicação, que deixou marcas mesmo sem ter deixado rastros.
Há um contraste potente entre as duas personagens. Biá escreve para tentar lembrar. Olívia escreve para tentar entender. A primeira teme o esquecimento literal, provocado pelo avanço da doença. A segunda teme o apagamento simbólico, a impossibilidade de dar sentido a um passado mal resolvido. Nesse sentido, a escrita é resistência: contra o tempo, contra a dor, contra a sensação de que tudo pode desaparecer sem deixar vestígios.
Biá afirma, em um dos trechos mais marcantes do livro: “O corpo lembra o que a cabeça tenta esquecer.” Essa frase resume bem o fio que costura as experiências das duas mulheres. Por mais que tentem racionalizar ou seguir em frente, há uma parte do corpo — das emoções, das memórias não ditas — que permanece alerta, exposta.
O título do livro, A Natureza da Mordida, é uma das imagens mais fortes da obra. A mordida aqui não é literal. É metáfora para tudo o que machuca sem se explicar. Para o gesto instintivo, às vezes involuntário, que fere mesmo quando parte do afeto. A mordida é a marca invisível de uma dor que não passou, algo que já aconteceu e não pode ser desfeito, mas que continua nos acompanhando e moldando quem somos.
Biá diz: “Somos felizes, Olívia, até o dia em que deixamos de ser. Aí notamos que a felicidade não é uma coisa abstrata. Ela é uma casa, uma roupa, uma rotina. Ela apenas está lá disponível e é sobretudo a ausência do irreversível.” Tal reflexão aparece com força em todas as camadas do livro. As personagens não tentam voltar ao passado, mas sim entender o que dele permanece no presente. O que da mordida ainda pulsa. O que da ausência ainda pesa.
Madeira constrói tudo com uma escrita sóbria, sensível e sem excessos. Há uma contenção intencional no modo como ela revela os dramas, sem melodrama, sem pressa, sem maniqueísmo. Os personagens não são bons ou ruins, certos ou errados. São apenas humanos, tentando lidar com o que a vida deixou em aberto. A leitura é fluida, com capítulos curtos e alternância de vozes que dá ritmo e equilíbrio ao livro.
É um romance que exige escuta. Não pelos fatos que narra, mas pela forma como trata o não dito, o não resolvido. O que prende o leitor é o afeto silencioso entre Biá e Olívia, que cresce página após página, mesmo quando não é nomeado. Há uma empatia entre gerações, uma troca de experiências e dores que se cruzam, mesmo com histórias diferentes.
A Natureza da Mordida é um livro sobre o que sobra quando tudo parece ter partido. Sobre os buracos que o tempo cava e as tentativas de preenchê-los, às vezes com palavras, às vezes com silêncio. Carla Madeira prova, mais uma vez, sua habilidade em explorar o emocional humano com profundidade, sem recorrer a fórmulas prontas. Com personagens densas, diálogos precisos e temas universais, ela oferece ao leitor uma experiência íntima e reflexiva. Não é um livro de grandes revelações, mas de pequenas descobertas. A sua força está em mostrar que as mordidas da vida não precisam de cura, mas de compreensão.
Véspera: o antes que determina o depois
Em Véspera, a autora encerra sua trilogia de romances com mais uma história sobre relações familiares tensas, marcas do passado e a complexidade das emoções humanas. Após impactar leitores com Tudo é Rio e A Natureza da Mordida, a autora retrata uma família envolta em disputas silenciosas, crenças distorcidas e uma atmosfera de culpa que atravessa gerações.
O livro começa com uma cena marcante: uma mulher abandona o próprio filho em uma avenida movimentada. Um gesto extremo, que serve como ponto de partida para que o leitor compreenda os caminhos — e traumas — que levaram até aquele momento. A narrativa, então, retorna ao passado, apresenta a origem dessa família e remonta à história de Custódia e Antunes, pais de gêmeos batizados com os nomes carregados de simbologia bíblica: Caim e Abel.
Obcecada por fé e destino, Custódia acredita que nomear seus filhos como os personagens bíblicos evitaria a repetição da tragédia entre irmãos. A tentativa de controle, no entanto, tem efeito contrário. Ao invés de proteger, os nomes se tornam uma espécie de sentença. Abel cresce introvertido, cercado pela superproteção da mãe. Já Caim é expansivo, amado por todos, o que intensifica as desigualdades entre eles.
Essa rivalidade cresce ao longo dos anos, até atingir consequências profundas. É Abel, já adulto, que se casa com Vedina, a mulher da cena inicial do livro — a mãe que abandona o filho. A tensão entre os irmãos, o controle materno de Custódia e os traumas individuais se entrelaçam na vida do novo núcleo familiar, que se torna palco para o colapso emocional de Vedina.
O título do romance, Véspera, funciona como metáfora da narrativa. A autora não foca na explosão dos fatos, mas no que antecede o desastre. A véspera, nesse contexto, é o espaço da tensão acumulada, do desgaste silencioso e daquilo que quase nunca é dito, mas molda a vida das personagens.
“A véspera é o lugar onde tudo acontece antes de acontecer.”
Carla Madeira
Esse tempo da iminência é explorado em diferentes camadas. Não apenas no abandono do filho, mas também nas décadas anteriores, marcadas por violência doméstica, ausência de afeto, medo, ciúme e frustração. Carla Madeira propõe uma leitura da dor como processo — uma construção que não vem do nada, mas de raízes profundas, muitas vezes negadas ou naturalizadas.
Com uma escrita direta, de frases curtas, ritmo acelerado e capítulos que prendem o leitor pela tensão, a autora mostra como a família pode ser o espaço de maior amor, mas também de profunda destruição. O texto é fluido, mas carregado de densidade emocional, ao explorar com sensibilidade o universo das relações humanas.
O enredo, que poderia escorregar para o exagero, se sustenta com força na humanidade das personagens. Ao final, o abandono do filho é apenas o ponto visível de uma estrutura familiar cheia de rachaduras. A narrativa oferece um retrato honesto da fragilidade emocional, da repetição de padrões familiares e da dificuldade de romper com os modelos herdados.
Véspera é um livro sobre o que vem antes. Sobre os silêncios acumulados e as escolhas que pareciam pequenas, mas se tornaram determinantes. Carla Madeira mostra, novamente, que os maiores desastres raramente são explosões súbitas — são construções longas, feitas de ressentimentos, crenças e medos.Com personagens complexos e enredo bem amarrado, Véspera encerra uma trilogia que se propôs a olhar para a dor com honestidade, sem julgamentos.
