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‘Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia’ e a transitividade do existir

Urano, sétimo planeta do sistema solar. Planeta da inovação, do humanitarismo, do novo, do imprevisível. Descoberto oito anos antes da Revolução Francesa, um ano uraniano equivale a 84 anos terrestres. Em 2013, Urano aproximou-se da Terra. Agora, apenas em 2097.    O título Um Apartamento em Urano (Zahar, 2020) nasce de um sonho de Preciado em que, …

‘Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia’ e a transitividade do existir Leia mais »

Urano, sétimo planeta do sistema solar. Planeta da inovação, do humanitarismo, do novo, do imprevisível. Descoberto oito anos antes da Revolução Francesa, um ano uraniano equivale a 84 anos terrestres. Em 2013, Urano aproximou-se da Terra. Agora, apenas em 2097.   

O título Um Apartamento em Urano (Zahar, 2020) nasce de um sonho de Preciado em que, tendo alugado um apartamento em cada planeta do sistema solar, uma especialista imobiliária lhe oferece uma dica: abandonar o apartamento em Urano, pois é longe demais. 

 

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Uma publicação compartilhada por NASA (@nasa)

A obra é uma coletânea de crônicas escritas por Paul B. Preciado, filósofo transgênero espanhol e expoente da Teoria Queer/Estudos Transviados. Radical em abordagem e filosofia, o livro traduzido por Eliana Aguiar acompanha as transformações ocorridas entre os anos de 2010 e 2018 tanto na vida do autor quanto no contexto geopolítico, em especial dos países-membros da União Europeia. 

Crônicas da Travessia é contemporâneo à transição de Paul. É uma autobiografia de dois nomes, uma única vida. Acompanhamos a morte burocrática, a destruição da “ficção legal” de Beatriz Preciado para testemunhar o nascimento na “configuração administração-imprensa”de Paul B. Preciado (p. 254).

Foto de Paul Beatriz Preciado em 2017. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons/Olaf Kosinsky]
Foto de Paul Beatriz Preciado em 2017. [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons/Olaf Kosinsky]
A travessia, também, é sobre a noção literal de transpor fronteiras. O nomadismo a que Preciado se submete como explorador da Zona do Euro é recorrente, assim como a questão da crise dos imigrantes. Há, para ele, um paralelo entre corpos trans e migrantes, que se dá pela vulnerabilidade decorrente da falta de reconhecimento legal. Gênero e nacionalidade configuram-se como construções sociais delimitantes do “sistema de assemblage [colagem de elementos superficialmente caótica para formar um todo] semiótico” (p. 230) em voga.

Sua escrita é técnica, crítica, direta, filosófica, erudita e academicista, mas inerentemente intimista, crua, satírica e desviada. Preciado subverte a língua a fim de nomear os fenômenos sobre os quais discorre e de referir-se a eles corretamente. A crônica Ne(©r)oliberalismo, por exemplo, elenca mais de 200 neologismos formados pela adição do prefixo “necro-” no intuito de denunciar, para muito além da difundida necropolítica, as tendências homicidas do regime neoliberal. A denominada “farmacopornografia” é um de seus conceitos mais relevantes e trata da política econômica do sexo no sistema capitalista avançado, em que a sexualidade passa a ser mediada por tecnologias biomoleculares e digitais, como a pílula e o PrEP. “Sua livre ejaculação só é possível graças à pílula, ao Truvada, ao Viagra, à imagem pornográfica” (p. 167). 

Ainda que apresente algumas ideias controversas, como a proposta de mulheres brancas se apropriarem de turbantes em homenagem a Simone de Beauvoir, Paul Preciado expõe uma gama de ideias transformadoras direcionadas à valorização e à expressão crítica de putas, travestis, inválidos, soropositivos, viados. Enfim, dos corpos desviantes ao soberano sistema heteropatriarcal. Os uranistas.

Placa comemorativa a Karl Heinrich Ulrichs na cidade de Burgdorf (Alemanha) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons/James Steakley]
Placa comemorativa a Karl Heinrich Ulrichs na cidade de Burgdorf (Alemanha) [Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons/James Steakley]
Assim como Preciado, sou descendente de Karl Heinrich Ulrichs e seu uranismo. Sua coragem e pioneirismo nunca foram em vão. “A voz de Ulrichs treme. Eles ouvem” (p. 22). Por vezes, cutucar a ferida latente que se passa por cicatrizada é a forma de transitar entre os mundos interiores. Sou uma das diversas crianças nascidas após o ano 2000 que aguarda o retorno de Urano. “Sou um uranista confinado nos limites do capitalismo tecnocientífico” (p. 25), proclama o autor. 

Como Preciado e tantos outros dissidentes do sistema sexo-gênero, também me foi relegado o mundinho frio e distante do gigante de gelo, e aprendi a chamá-lo de casa. Talvez, por isso, a sensação de lar ao adentrar seus ideais, seu apartamento em Urano.

 

[Montagem de capa: Filipe Albessu Narciso/Jornalismo Júnior]

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