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América Latina: a luta pela liberdade, ainda que tan-tan

Os hospitais chegaram na América Latina junto com os colonizadores. As primeiras pessoas a serem internadas compulsoriamente foram setenta mulheres, em sua maioria indígenas. Desde então, os hospitais serviram como lugar de aprisionamento daqueles que a sociedade não queria ter por perto. Falar dessas figuras soterradas pela cultura da psiquiatrização é um marco na reconstrução …

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Os hospitais chegaram na América Latina junto com os colonizadores. As primeiras pessoas a serem internadas compulsoriamente foram setenta mulheres, em sua maioria indígenas. Desde então, os hospitais serviram como lugar de aprisionamento daqueles que a sociedade não queria ter por perto. Falar dessas figuras soterradas pela cultura da psiquiatrização é um marco na reconstrução histórica da luta antimanicomial na América Latina. 

Nessa reportagem para o Laboratório, vamos explicar a relação entre a luta antimanicomial e a democracia, além de tratar do passado, do presente e das perspectivas para o futuro dos cuidados com a saúde mental no Brasil e na América Latina, em uma conversa com a tríade especialista no tema: um psiquiatra, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social. 

 

A luta antimanicomial é também uma luta pela democracia

 

Movimento reivindicando atenção à lei antimanicomial .[Imagem: Gabriel Jabur/ Agência Brasília]
Movimento reivindicando atenção à lei antimanicomial .[Imagem: Gabriel Jabur/ Agência Brasília]
A democracia, na sua história, não é muito amável com a loucura”, conta Aisllan Diego de Assis, especialista em Psiquiatria e Saúde Mental. Foram cerca de sessenta mil mortos de fome, frio e maus tratos num dos maiores manicômios do Brasil, alcunhado como “Cidade dos Loucos”: o  Hospital Colônia de Barbacena, no interior de Minas Gerais. Estima-se que 70% dos internados ali não tinham nenhum tipo de diagnóstico psiquiátrico; eram epiléticos, andarilhos, ativistas políticos, prostitutas, homossexuais, crianças indesejadas, indígenas e negros. Ou seja, um antro de pessoas indesejadas pela sociedade.  

Por muitos anos, políticas públicas de genocídio de pessoas tidas como loucas não foram só aceitas, como oficializadas por lei. Quando a luta antimanicomial se ergue como forma de negação a esse dispositivo, ela se une ao movimento de democratização — e, para Assis, sintetiza todas as outras lutas. “Se tem pessoas que foram caladas e subvertidas da sua existência, da sua possibilidade de ser, foram e são aqueles taxados e tidos como loucos ou loucas”, afirma em entrevista ao Laboratório.

A constituição da democracia é a base da luta pelos direitos humanos, pois a primeira não pode existir sem que haja a liberdade concreta de todas as pessoas. “Só há democracia quando a gente tem uma sociedade sem manicômios, sem machismo, sem sexismo e sem LGBTfobia”, reitera Rachel Gouveia Passos, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ), assistente social e militante do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA). Com os manicômios, as práticas de extermínio são perpetuadas e, então, não é possível existir uma democracia.

Hoje, vemos retrocessos acontecendo: “Importante destacar a PEC 95 (projeto de emenda constitucional que impõe um teto para os gastos públicos) que é uma forma de retrocesso que atinge a saúde mental”, ressalta a assistente social. Para Assis, os retrocessos são acompanhados de movimentos de resistência e estes nem sempre partem de políticas públicas: muitas vezes vêm a partir de formas comunitárias, coletivas e de cuidado próprio. Segundo o enfermeiro, todas as vezes que um processo de liberação e de modificação nas normas da reforma psiquiátrica avança, também surge um contramovimento de autoproteção social, que inclui diversas frentes de lutas, não somente a antimanicomial.

 

O manicômio também é reflexo dos problemas sociais

Muitas vezes, o “louco” é colocado como alguém que assenta periculosidade e, com isso, justifica-se os isolamentos e afastamentos aos quais essas pessoas são submetidas dentro das sociedades modernas, associados à constante ideia da busca por uma cura.  

Segundo a assistente social Passos, a ideia de loucura é atravessada pelas lógicas do colonialismo, pelo racismo, pelas relações de gênero e relações de classe, ou seja: muitas pessoas foram internadas porque eram pobres, porque eram negras, porque eram mulheres que não tinham o casamento como objetivo ou que não se submetiam a uma lógica patriarcal centrada no marido, pessoas em situação de rua, prostitutas, usuários de álcool e outras drogas e a população LGBTQIA+.

Passos cita Michel Foucault, filósofo social, em seu livro “História da Loucura”, onde o autor determina que esses corpos e subjetividades citados são os indivíduos que sempre foram internados em manicômios clássicos. É a partir deste ponto que se discute a luta antimanicomial como o movimento social que surgiu no final dos anos 1970 no Brasil, em pleno período do regime militar. A assistente social conta que – com a participação inicial de médicos puxando o movimento dos trabalhadores de saúde mental e, posteriormente, com auxílio de outros profissionais- o movimento questionava os moldes da saúde e a lógica psiquiátrica centrada no modelo manicomial, que se apoiava no saber e poder médico e tinha como objetivo centralizar, internar e isolar pacientes que possuíam sofrimentos e/ou transtornos psíquicos.

 

Quando a medicina psiquiátrica e o Estado se unem

Desde a década de 1950, os governos latino-americanos adotaram políticas extremamente violentas e manicomiais como forma de tortura, exclusão e controle daqueles que eram vistos como um “perigo” para a sociedade. “O acoplamento medicina-Estado se apresenta, em diferentes formas de governo, com a mesma perversidade”, complementa Assis. Esse acoplamento remete ao que Foucault desenvolveu em seu texto “O Nascimento da Medicina Social”: quando o médico, sujeito social responsável por estudar o homem, as suas doenças e, principalmente, como tratá-las, se une ao Estado, a medicina se torna uma estratégia biopolítica de controle social — ou seja, pela dominação dos corpos, ela se integra ao sistema de produção vigente de forma que possa garantir o seu funcionamento, definindo quem é ou não doente; quem é ou não “normal”.

Protestos a favor da Luta Antimanicomial na América Latina. [Imagem: Reprodução/Berón Barreto]
Protestos a favor da Luta Antimanicomial na América Latina. [Imagem: Reprodução/Berón Barreto]
“A ditadura militar brasileira fez isso com requintes de crueldade”, conta o médico. Durante esse período, a psiquiatria e o Estado se acoplaram num “aparelho mortífero” — como define Assis — e a loucura era utilizada como forma de calar os presos políticos. As terapias de eletrochoque eram utilizadas como forma de tortura; havia arbitrariedade nas internações compulsórias. Um caso emblemático foi o de Ivan Seixas: preso aos 16 anos, viu seu pai ser assassinado por torturadores. Em seguida, foi internado na Casa de Custódia de Taubaté, hospital psiquiátrico de onde só saía para receber novas torturas.

Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo; um dos que mais recebeu presos políticos durante a Ditadura Militar. [Imagem: Reprodução/Ronan Humberto do Lago Müller]
Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo; um dos que mais recebeu presos políticos durante a Ditadura Militar. [Imagem: Reprodução/Ronan Humberto do Lago Müller]

 

A patologização da loucura

“Quem nunca tomou uma droga psiquiátrica? Quem não está em sofrimento psíquico?”. Esses são questionamentos feitos pelo Dr. Assis. Para o médico, dentro do sistema capitalista neoliberal, a loucura foi socializada de forma que se tornou um mal coletivo — ela foi psiquiatrizada, medicalizada e se tornou a doença mental. A pandemia do coronavírus evidenciou ainda mais essa condição: estudos feitos pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) apontam um aumento de quase 50% nos casos de depressão e 80% nos de ansiedade, desde o início do confinamento. “Antes, o sofrimento psíquico era coisa de doido, de esquizofrênico, de deprimido, de ansioso. Agora é, mais do que nunca, de todos nós”, finaliza.

Atrelado a isso, está um processo de intervenção médica e estatal, também moldado dentro do pensamento capitalista: as drogas psiquiátricas, que entram como um recurso para tentar restaurar a saúde. “Se há cura para esse mal social, é possível produzi-la, distribuí-la e claro, comercializá-la”, explica Assis. Assim, há um engendramento entre doença mental, medicação psiquiátrica e capitalismo que é feito de maneira assustadora. 

 

A doença mental e o sofrimento psíquico

Historicamente, a doença mental já teve outros nomes: alienação, poder sobrenatural, possessão, entre outros absurdos. A caracterização da doença mental aconteceu na passagem do século 18 para o 19, e o protagonista social dessa mudança foi a medicina, conta Assis.

O sofrimento psíquico é um fenômeno social, todos nós passamos por ele em algum momento de nossas vidas. Já a doença mental é um aparato médico, que anda junto com o sofrimento. “O grande desafio é olhar para essas duas coisas, recortar as particularidades cada uma delas, saber onde elas se tocam, mas nunca separá-las”, reitera. O médico explica que enxergar a doença mental como única forma de sofrimento psíquico pode incorrer no processo de psiquiatrização e medicalização da sociedade. Dessa díade entre o sofrimento psíquico e a doença mental é que surgem os diagnósticos psiquiátricos, ressalta Assis.

 

O surgimento do movimento

O movimento antimanicomial começa a questionar as inúmeras violações reproduzidas nas instituições psiquiátricas: uso discriminativo de práticas violentas como a terapia de choque e a técnica da insulinoterapia (choque de insulina, que provocava coma temporário); assim como a medicalização excessiva, que acarretava numa enorme “passividade” dos pacientes. Algumas táticas de restrição também foram utilizadas como forma de controle: cubículos e celas fortes, lençóis de contenção e camisas de força.

Segundo Passos, o emergir desse movimento foi influenciado pelo  psiquiatra e pensador italiano Franco Basaglia, que promoveu a reforma psiquiátrica no sistema de saúde mental na Itália. Em visita ao Brasil, especificamente ao Hospital Colônia de Barbacena, Basaglia teceu a analogia de que a instituição era similar ao Holocausto nazista, já que eram superlotados com milhares de pacientes que habitavam o espaço em condições extremamente precárias. Muitas outras características assemelhavam-no aos campos de concentração do período da Segunda Guerra Mundial.

A especialista elucida que essas longas internações têm efeitos catastróficos na existência desses indivíduos, que passam por uma espécie de mortificação do “eu”, já que os mesmos são submetidos a inúmeras regras cotidianas: hora do almoço, do remédio, de tomar sol, de dormir e acordar. “Malucos” não podem pentear o cabelo, porque não podem ter pente, e “malucos” não podem se ver no espelho, desumanizando-os como indivíduos reais.  

Mulheres internadas no Hospital Colônia de Barbacena. [Imagem: Reprodução: Luiz Alfredo/Acervo da Prefeitura de Barbacena (MG)]
Mulheres internadas no Hospital Colônia de Barbacena. [Imagem: Reprodução: Luiz Alfredo/Acervo da Prefeitura de Barbacena (MG)]
A assistente social conta que Basaglia definiu que o processo de saída de um sofrimento psíquico grave se dá pela construção de uma rede de suporte com psiquiatras, psicólogos,  terapeutas e assistentes sociais, além de incluir familiares e pacientes. Em 1987, o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial tem um de seus grandes marcos no Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental de Bauru (SP) e lá é assinada a importante Carta de Bauru de 1987, que instituiu os princípios éticos e políticos do movimento, além de formar o modelo assistencial para desinstitucionalizar pessoas que foram internadas a vida toda. Dia 18 de maio é celebrado como o dia da Luta Antimanicomial no Brasil, com o lema “por uma sociedade sem manicômios”.

21ª edição do desfile da Escola de Samba “Liberdade Ainda que Tan-Tan”, em Belo Horizonte (MG). O desfile é uma celebração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio. [Imagem: Maíra Cabral - Flickr]
21ª edição do desfile da Escola de Samba “Liberdade Ainda que Tan-Tan”, em Belo Horizonte (MG). O desfile é uma celebração ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, 18 de maio. [Imagem: Maíra Cabral – Flickr]

 

A Reforma Psiquiátrica Brasileira nasceu de mulheres

Uma das primeiras médicas brasileiras, a psiquiatra Nise da Silveira foi reconhecida mundialmente por sua contribuição, revolução e reforma do tratamento de saúde mental no Brasil. Ao dedicar toda sua vida profissional a desenvolver métodos para o cuidado de pacientes, articulando-se contrariamente às formas agressivas de intervenções de sua contemporaneidade, a médica introduziu a terapia ocupacional voltada à produção de arte e interação de pacientes com animais como instrumento de extremo valor para o tratamento.

Nise da Silveira foi a única mulher entre 157 homens da sua turma a se formar como psiquiatra na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB-UFBA) em 1926. Segundo o doutor Aisllan de Assis, a profissão foi por muito tempo centrada apenas em médicos homens e brancos. [Imagem: Reprodução/ Museu de Imagens do Inconsciente]
Nise da Silveira foi a única mulher entre 157 homens da sua turma a se formar como psiquiatra na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB-UFBA) em 1926. Segundo o doutor Aisllan de Assis, a profissão foi por muito tempo centrada apenas em médicos homens e brancos. [Imagem: Reprodução/ Museu de Imagens do Inconsciente]
Em 1944, Nise iniciou seu serviço no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Rio de Janeiro, exercendo uma luta contra as técnicas psiquiátricas que considerava agressivas. Em desacordo com as tradicionais tarefas de limpeza que os próprios pacientes exerciam como terapia ocupacional, a doutora criou ateliês de pintura, com o intuito de reatar os pacientes à realidade através dos simbolismos da criatividade.

Nise fundou em 1953 o Museu de Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro; centro onde eram realizados diversos estudos e pesquisas sobre o universo interior dos pacientes dos manicômios. Assis cita também a Casa das Palmeiras, criada em 1956 pela psiquiatra, que desenvolveu outro projeto revolucionário para a época: uma espécie de clínica de reabilitação de antigos pacientes das instituições psiquiátricas. Por lá, eles também podiam expressar suas criatividades e eram recebidos como pacientes externos, podendo se locomover entre uma rotina hospitalar e uma reintegração à vida em sociedade. Segundo o psiquiatra, Nise elaborou uma técnica chamada de afeto catalisador: um sentimento de humanidade por outro humano, ao gostar da pessoa e aceitá-la como ela é, além de ouvir o que ela tem a dizer.

Na foto, a doutora Nise com alguns dos pacientes que ajudou a tratar por meio da arteterapia. [Imagem: Reprodução/ Museu de Imagens do Inconsciente]
Outra agente muito importante para a Reforma Psiquiátrica brasileira foi Dona Ivone Lara, a conhecida sambista que também era enfermeira e assistente social. Com 21 anos ingressou no trabalho de terapia ocupacional com a doutora Nise e, a partir da década de 1970, passou a tratar dos pacientes com doenças mentais em conjunto aos familiares. O seu serviço baseava-se em apresentar aos parentes uma visão nova sobre os diagnósticos médicos, que anteriormente invalidavam as experiências dessas pessoas em sociedade. Dentro da rotina terapêutica, humanizou o tratamento de saúde mental ao introduzir a terapia musical.

Dona Ivone Lara no Hospital Engenho de Dentro (RJ). Foi uma das primeiras mulheres formadas como assistente social no Brasil, uma das primeiras mulheres negras com curso superior no país, pioneira na Luta Antimanicomial e eterna dama do samba. [Imagem: Reprodução/Acervo familiar de Dona Ivone Lara]
Dona Ivone Lara no Hospital Engenho de Dentro (RJ). Foi uma das primeiras mulheres formadas como assistente social no Brasil, uma das primeiras mulheres negras com curso superior no país, pioneira na Luta Antimanicomial e eterna dama do samba. [Imagem: Reprodução/Acervo familiar de Dona Ivone Lara]

 

A prática da Terapia Ocupacional

O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Coffito) define a terapia ocupacional como uma profissão da área da saúde que promove prevenção, tratamento e reabilitação de indivíduos portadores de alterações cognitivas, afetivas, perceptivas e psicomotoras. 

É uma área que tem sua intervenção voltada para a pessoa e seu grupo social. Foi Nise da Silveira que introduziu a Terapia Ocupacional nos tratamentos de saúde mental no país. No setor, introduziu os tratamentos que chamava de “co-terapeutas”.

A reportagem conversou com Camilla Casaletti Braghetta, que é terapeuta ocupacional do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism) do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela nos explica que o terapeuta ocupacional almeja oferecer diversas práticas em grupo com os pacientes, a fim de promover integração social e cuidado. Esse cuidado consiste em trabalhar com atividades humanas, dando ênfase no ato de fazer. Para isso, utilizam-se atividades concretas como ferramentas terapêuticas, com o propósito de produzir novos sentidos para a vida dessas pessoas. “A partir dessas aprendizagens, o objetivo é construir uma nova narrativa de vida”, explica Braghetta

Ela também diz que a arte é um dos recursos terapêuticos utilizados na terapia ocupacional, uma possibilidade de expressão que permite dar voz às imagens do inconsciente do sujeito, que carrega consigo memórias, desejos e projetos. 

O tratamento pela arte e o contato com animais proposto por Nise da Silveira, no filme Nise: O Coração da Loucura. [Imagem: Reprodução/ TV Zero Produções]
O tratamento pela arte e o contato com animais proposto por Nise da Silveira, no filme Nise: O Coração da Loucura. [Imagem: Reprodução/ TV Zero Produções]

 

A herança dos manicômios nos dias atuais

“Não há como negar que existem algumas heranças dos manicômios, sobretudo na estrutura, em algumas instituições como o Caism de Pirituba, as paredes são todas brancas e há grades por todo lado”, afirma Braghetta. Lá, funcionava o antigo Sanatório Pinel.

Antigamente, os pacientes ficavam internados por longos períodos, as pessoas se tornavam moradoras dessas instituições. Isso porque existiam pouquíssimas possibilidades de tratamento, e os psicotrópicos (as medicações psiquiátricas) ainda não eram uma realidade.

Além das práticas agressivas previamente mencionadas, havia a lobotomia, intervenção cirúrgica na qual o médico faz uma secção em uma região do cérebro. O procedimento era feito em pacientes considerados agressivos — esse quadro de agressividade geralmente era consequência do aprisionamento — e  era usado para provocar um “efeito calmante”, causando, na verdade, a perda da função cerebral. Essa prática deixou de ser usada, porque, além de cruel, não era eficaz, explica Braghetta.

Em adição à estrutura, em algumas instituições de cuidado mental, o uso de contenção ainda é comum e o tratamento com eletrochoques ainda existe. Atualmente, é chamado de Eletroconvulsoterapia (ECT) e  é pouco utilizado, porém pode ser indicado para casos refratários — que não respondem aos tratamentos com psicotrópicos. O procedimento consiste em uma descarga elétrica que provoca uma crise convulsiva, a fim de estimular uma resposta direta no cérebro. A Eletroconvulsoterapia deve ser feita sob supervisão de especialistas e é aplicada com anestesia geral. A terapeuta ocupacional elucida que seu uso é restrito a poucos casos — ao contrário dos moldes usados pelos manicômios — e pode ser benéfico para pacientes com quadros graves.

Ilustração representando a terapia eletroconvulsiva [Imagem: BruceBlaus/ Wikimedia Commons]
Ilustração representando a terapia eletroconvulsiva. [Imagem: BruceBlaus/ Wikimedia Commons]

 

O tratamento em saúde mental atualmente

“O Brasil é referência na América Latina na Luta Antimanicomial e precursor do conceito do cuidar em liberdade”, conta Braghetta. Com a Reforma Psiquiátrica, o modelo hospitalocêntrico, focado na internação, foi desmontado. A partir disso, o foco dos serviços em saúde mental é o tratamento comunitário por meio de, por exemplo, um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O ideal é que a pessoa tenha a possibilidade de fazer o tratamento dentro de seu território, com um cuidado integrado.

CAPS em São Paulo. [Imagem: Leon Rodrigues/ Prefeitura de São Paulo]
É preciso ressaltar que, atualmente, os critérios para internações são muito bem estabelecidos. Assim, a internação tornou-se um recurso terapêutico secundário, que é necessário em casos em que o indivíduo coloca a si mesmo ou pessoas próximas em risco. De acordo com Braghetta, nesses casos, a internação deve ser breve, em enfermarias com ocupação máxima de 30 pacientes, até que a pessoa consiga retomar outras formas de tratamento, estando apta a retornar para seu território e prosseguir com os cuidados recomendados.

A terapeuta ainda ressalta que a lógica manicomial não está só na estrutura dos hospitais, mas sim na prática clínica de alguns profissionais. Se um profissional desrespeita seu paciente, invalida seu discurso ou não o enxerga como sujeito de direitos, ele está adotando a lógica manicomial. Ela ainda acrescenta: “Eu faço da minha prática clínica uma prática antimanicomial, que é oferecer àquela pessoa todo o cuidado, além de garantir, ao máximo, que ela não precise mais de internação. A nossa missão é fazer a prática em saúde mental o mais desinstitucionalizante possível”.  

 

Comunidades terapêuticas

São entidades que realizam o acolhimento de pessoas, geralmente, com problemas associados às dependências químicas. Costumam estar situadas no interior e algumas são administradas por instituições religiosas, promovendo atividades como o trabalho em lavouras e reformas nas instalações da casa onde ficam. Há muitas controvérsias sobre a progressão do tratamento nessas comunidades, ex-pacientes já relataram práticas violentas que incluem aprisionamento e a proibição de contato com a família.

O cotidiano em uma comunidade terapêutica. [Imagem: Agência Brasília/ Flickr]
O cotidiano em uma comunidade terapêutica. [Imagem: Agência Brasília/ Flickr]

 

Residências terapêuticas

O Sistema Único de Saúde define as residências terapêuticas como casas destinadas a pessoas com transtornos mentais que permaneceram em longas internações psiquiátricas e estão impossibilitadas de retornar às suas famílias de origem. Essas pessoas geralmente tiveram perdas de laços familiares e de convivência social, já não conseguindo retornar à vida como era antes. Nessas residências, trabalham cuidadores e uma equipe multiprofissional, formada por psicólogos e terapeutas ocupacionais e contam com uma média de dez pessoas vindas de instituições psiquiátricas, que moram lá. O tratamento médico é feito no Centro de Atenção Psicossocial da região e a residência consiste em uma moradia assistida, na qual os moradores cuidam de alguns afazeres domésticos e, dependendo do grau de autonomia, circulam livremente pela casa e podem passear pelo bairro

 

A Lou(cura) da sociedade latino-americana

Tratar sobre o horror dos manicômios e a luta antimanicomial é um assunto urgente há meio século. Mesmo com todos os avanços conquistados, a lógica manicomial ainda permeia o cuidado com a vida e a saúde mental. 

Assis, Braghetta e Passos foram questionados sobre o futuro do cuidado em saúde mental e os três profissionais, de diferentes áreas da saúde mental coletiva, concordam com o princípio de que se deve combater a lógica manicomial.

Fotos de painéis de arte produzidos por conviventes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre (RS). [Imagem: Reprodução/ Instagram - @juliasytia]
Fotos de painéis de arte produzidos por conviventes do Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre (RS). [Imagem: Reprodução/ Instagram – @juliasytia]
Para isso, é imprescindível que a mentalidade da sociedade mude como um todo, afetando todas as camadas sociais, principalmente considerando que quem sofre as consequências dos manicômios, prisões, hospitais públicos e favelas de toda a América Latina são pessoas desamparadas no âmbito social e econômico. Para se obter uma sociedade latino-americana sem manicômios, a mudança precisa ser humanizada e coletiva.

Imagem de capa: [Imagem: Bruno Manfredi/Flickr]; [Imagem: Berón Barreto/Wikimedia Commons]; [Imagem: Fernando Frazão/AG Brasil]; [Imagem: Aisllan Assis]; [Imagem: Reprodução/Plenarinho]

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