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A história feita por elas

A luta diária das mulheres que atuam em profissões dominadas por homens   Por Mariangela Castro (mariangela.ctr@gmail.com) Hipátia nasceu em 350, no Egito, foi astrônoma, filósofa e uma das primeiras matemáticas das quais se tem notícia nos dias de hoje. Ela foi também a primeira mulher professora em Alexandria, era conhecida como “a egípcia mais …

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A luta diária das mulheres que atuam em profissões dominadas por homens

 

Por Mariangela Castro (mariangela.ctr@gmail.com)

Hipátia nasceu em 350, no Egito, foi astrônoma, filósofa e uma das primeiras matemáticas das quais se tem notícia nos dias de hoje. Ela foi também a primeira mulher professora em Alexandria, era conhecida como “a egípcia mais inteligente” e está retratada no afresco “A Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio. Mary Anning nasceu em 1799, na Inglaterra; foi colecionadora de fósseis e paleontóloga; com apenas 12 anos, ela descobriu o primeiro esqueleto de ictiossauro encontrado na história. Suas descobertas foram importantíssimas para provar que a extinção de uma espécie pode acontecer e seu trabalho mudou completamente a visão que o mundo tinha sobre a vida na pré-história. Mary é descrita pelo jornal The British Journal for the History of Science como “a maior estudiosa de fósseis que o mundo conheceu” e, apesar de todas as suas descobertas, ela não tinha permissão de publicar pelo fato de ser mulher; os geólogos homens usavam as ideias dela nos seus trabalhos.

Nettie Stevens nasceu em 1861, nos Estados Unidos, foi geneticista e descobriu que o sexo é determinado pelos cromossomos “X” e “Y”. Isso mudou a forma com a qual estuda-se embriões e citologia; entretanto, suas publicações foram recebidas pelo público com muito ceticismo, assim ela foi desconsiderada e esquecida. Marie Curie nasceu em 1867, na Polônia; foi física e química e a única pessoa do mundo a receber um prêmio Nobel em duas disciplinas diferentes; criou a palavra “radioatividade” e foi a pioneira nesse estudo. Descobriu os elementos polônio e rádio, foi a primeira mulher a realizar um doutorado na França e a primeira mulher a receber homenagens por suas realizações.

Essas são apenas algumas das centenas de mulheres que ajudaram a mudar o mundo e que, infelizmente, não possuem espaço na nossa memória; o legado deixado por elas faz parte do cotidiano e, apesar terem feito grandes descobertas, poucas pessoas são capazes de citar o nome de cinco mulheres que foram importantes na história (diferente do que acontece quando se pede para alguém citar cinco homens). A socióloga Maria Rosa Lombardi realiza estudos de gênero há mais de 15 anos e explica que a divisão “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”, apesar de existir desde sempre, ao contrário do que muitos defendem, não é natural: “Essas concepções são transmitidas através das gerações pelo processo de socialização. É necessária a conscientização de que são construções sociais e não são ‘naturais’. A questão é que pela divisão sexual do trabalho os homens foram privilegiados em termos das atividades desenvolvidas, das remunerações recebidas e do status das suas posições sociais ancoradas no trabalho.”

O maior problema, na realidade, é que além da sociedade não reconhecer determinados postos como uma opção para as mulheres, as próprias mulheres, desde muito novas, não se veem em determinadas profissões. A revista “Science” publicou um estudo no qual pesquisadores liam histórias de personagens inteligentes ou importantes para meninas e meninos de cinco anos e perguntavam: “esse personagem é um homem ou uma mulher?”; as meninas responderam que era uma mulher e os meninos que era um homem. Entretanto, aos sete anos isso muda: as meninas já não reconhecem mais essas personagens como mulheres. Isso acontece porque, aos seis anos de idade, elas já perderam a sua autoconfiança; não veem mais na matemática, na física e ou na engenharia um espaço que elas possam ocupar.

Isso acontece por inúmeras razões: como a falta de representatividade e de incentivo. As meninas são bombardeadas com milhares de informações que, explicitamente ou não, colocam limites em suas mentes e em seus sonhos. Essas informações reforçam o papel da mulher como mãe e dona de casa, não como cientista, por exemplo. Isso se reflete diretamente na sociedade: uma pesquisa feita pelo IBGE mostra que as mulheres dedicam 20 horas e 30 minutos semanais aos cuidados da casa, isto é, mais do que o dobro de tempo dedicado pelos homens. Ao se deparar com isso desde muito nova, a criança incorpora essas informações e passa a acreditar que existe um lugar definido para ela, e esse lugar não é realizando descobertas para mudar o mundo.

O que mais preocupa é que, mesmo a sociedade se dizendo “tão moderna”, afirmando que o papel da mulher como “do lar” já está no passado, esse estereótipo é reforçado por figuras públicas importantes, como o próprio presidente de república. Na homenagem que o presidente Michel Temer realizou às mulheres, no dia internacional da mulher, ele revela sua visão sobre o papel da mulher na sociedade: “Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos. E, se a sociedade de alguma maneira vai bem e os filhos crescem, é porque tiveram uma adequada formação em suas casas e, seguramente, isso quem faz não é o homem, é a mulher […] ela é capaz de indicar os desajustes de preços em supermercados e identificar flutuações econômicas no orçamento doméstico.”

Todos esses fatores são responsáveis para que, por exemplo, nos últimos cinco anos, dos integrantes da Escola Politécnica da USP — a melhor faculdade de engenharia da América Latina — apenas 27% sejam mulheres.

 

Mulheres na melhor faculdade de engenharia da América Latina

Victória Marques Robles tem 21 anos e está no 7° período de Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP (POLI). Ela conta que, dos 60 alunos ingressantes em seu ano, apenas 15 eram mulheres: “Representatividade importa muito. Se você não vê um monte de mulher sendo engenheira, talvez você fique na dúvida se pode ser engenheira também. O ambiente na POLI não é acolhedor, acho que só de não ter mulher você já se sente menos pertencente, tem também o fato dos professores e colegas sempre terem piadinhas. No começo você fica pensando se está no lugar certo, vai mal em uma prova e duvida de você por ser mulher e não se achar capaz.”

 

Victória lembra de um trabalho que realizou no primeiro ano, no qual foi excluída por ser mulher: “Estava fazendo um laboratório em trio, os dois caras passavam o relatório um para o outro e não me deixavam ver, aquilo me marcou muito. O que também percebo bastante é que eu falo uma coisa e as pessoas não escutam, mas quando um cara ao meu lado fala exatamente o mesmo as pessoas dizem: ‘nooossa, brilhante’.”

Catarina Scacciota também estuda engenharia civil na POLI, tem 20 anos e está no 5° semestre. Ela comenta sobre a relação das mulheres com os docentes e com a universidade: “Eu acho que as mulheres têm mais dificuldade em ir falar com os professores, elas sentem receio, de fato não é muito confortável. O próprio ambiente da Poli é repleto de brincadeirinhas e preconceitos, escuto direto pessoas de fora da USP falando surpresas: ‘nossa, você faz POLI?’, como se eu não tivesse capacidade.”

 

Catarina lembra de ter visto vagas de estágio que tinham como um dos requisitos o gênero masculino; ela acredita que o fato da própria POLI ter pouquíssimas professoras mulheres colabora para a resistência. Hoje ela é vice-presidente do centro acadêmico da engenharia civil: “As pessoas devem enxergar de um modo meio estranho, eu represento os alunos. Não é nem pelo fato da POLI ter mais homens, as pessoas acham muito estranho uma mulher representando eles.”

 

Diante de todos esses problemas a Nathalia Sadocco – estudante do 9° semestre de engenharia de produção – teve a ideia de inserir um item feminista no IntegraPOLI, uma gincana que envolve a POLI inteira e que possui uma lista de itens a ser cumpridos. Essa gincana tem um histórico de itens machistas, desde “colocar camisinha em uma banana” até “vídeo de bixetes lavando carro de camiseta branca”. Neste ano a Nathalia estava na comissão organizadora do Integra: “O feminismo foi uma coisa que me marcou muito em 2016, então quis fazer um ítem que fosse reproduzir um clipe feminista só com meninas, a ideia inicial era pegar alunas que já se formaram e mostrar onde elas estão hoje. Eu esperava uma coisa muito boa, mas nem de longe imaginava que teria toda essa repercussão.”

 

A Nathalia já foi presidente do centro acadêmico e diz que, na época em que decidiu se candidatar, seus amigos não lhe apoiaram, por dizerem que ela era “muito emotiva”. Ela conta também alguns casos de preconceito que as mulheres por parte dos próprios docentes: “Eu tinha um grupo de amigas que sempre faziam trabalho juntas, só elas, era visível que os professores as tratavam diferentes, muitos falavam explicitamente que não gostavam do grupo, outros duvidavam que o trabalho ia sair. Já teve casos dos professores irem até o grupo e sugerirem que um homem entrasse. No meu centro acadêmico já aconteceu várias vezes de eu dar uma opinião, ninguém ouvir e depois de um tempo chegarem na mesma conclusão.”

Nathalia está fazendo estágio esse ano e percebe uma resistência da própria empresa com as mulheres no mercado de trabalho: “Eu entrei com outros 3 engenheiros; por algum motivo, tinham a impressão de que eles eram mais inteligentes do que eu, no começo eles ganharam uma estrutura muito maior e até hoje eu não sei por que, entende? Eles foram indo para áreas mais estratégicas e eu fiquei bastante perdida. Talvez isso me prejudique mais pra frente, na hora de ser efetivada, eles vão ter conseguido mais coisas e alcançado lugares mais longes, porque as pessoas acreditaram mais neles.”

 

A Victória, a Catarina e a Nathalia comentam que, quando falaram para a família que queriam fazer Poli, os seus pais ficaram com receio, acharam que elas não iam passar no vestibular.

Dentro do mercado de trabalho

Mary Ellen Santos de Oliveira tem 33 anos e trabalha na engenharia desde 2011. Se identificou com essa profissão depois de ter feito um curso técnico em desenho de construção civil. Ela diz que o mercado ainda é prioritariamente masculino e que a engenharia civil tem muita resistência ao novo, sendo que isso se reflete muito na hora de contratar mulheres: “Eu trabalho na área de edifícios, não estou em construção pesada: portos e estradas por exemplo. Em construção pesada a presença da mulher é muito menor, a condição de trabalho é muito difícil, você olha uma obra de estrada e tem um banheiro químico a cada quilômetro, as empresas não colocam no orçamento delas condições mínimas para ter uma mulher naquela obra.” Ela completa dizendo que “falar para você que não existe preconceito é mentira, mas esse preconceito no mercado existe principalmente porque a geração antiga ainda está presente.”

 

Engenheira Mary Ellen. (Crédito: Daniela Castro)

Mary Ellen comenta sobre a dificuldade das mulheres que trabalham no canteiro de obra: “As mulheres que estão tocando obra têm uma dificuldade maior em ter respeito. Às vezes elas tem que se tornar muito mais rígidas na forma de se portar e de falar. Quando estamos dentro do canteiro de obras não tem jeito, a gente tem que fingir que não está ouvindo, existe piadinha, existe olhar vulgar. Mulher no canteiro tem que usar camisa fechada e evitar maquiagem, evitar coisas femininas na verdade, tentamos chamar atenção para a profissional, não para a mulher. Se um engenheiro da um grito na obra, ele está bravo; se uma mulher dá um grito, ela está de tpm.”

Ela acrescenta que a gravidez é uma dificuldade muito grande nesse meio: “Eu conheço várias engenheiras que tocam obra, ficaram grávidas e, quando voltam da licença, são mandadas embora. Isso acontece porque a obra demora cerca de dois anos para ser concluída e, quando uma mulher fica tanto tempo de licença, ao voltar para o trabalho ela não tem mais um local para atuar.” Na construção civil a licença aumenta, podendo levar toda a duração da obra, uma vez que o canteiro é caracterizado como um ambiente de alta periculosidade.

Durante a conversa, Mary Ellen relembra um caso que a marcou muito: “Eu sou consultora e estava na obra conferindo o projeto com a execução, para ver se tinha alguma falha. Ao encontrar essas falhas o engenheiro que tocava a obra ficou muito nervoso, ele tirou o projeto da minha mão e falou que eu não tinha competência suficiente para ler o projeto. Depois de um tempo eu ouvi ele dizendo: ‘essa mulherzinha vem aqui dar uma de quem conhece’, eu devolvi o projeto, falei que não iria ficar mais naquela obra e fui embora. Isso aconteceu novamente em outro obra da mesma empresa, no final do mês a gente senta com a diretoria para falar sobre tudo o que aconteceu. Por fim, a reação que ficou foi de que, mesmo tendo ficado claro que eu estava correta nas minhas constatações, a consultora foi trocada e não os engenheiros foram chamados atenção; a pessoa que me substituiu era um homem e eu acho que eles só perderam.”

 

Ciência e tecnologia

Hoje, no Brasil, pedagogia é o curso mais escolhido pelas mulheres, enquanto direito é o mais escolhido pelos homens. A graduação de física possui 30% de meninas, entretanto essa porcentagem cai na evolução da carreira, no mestrado e doutorado as mulheres são 20%, professoras universitárias são apenas 15% e topo de carreira 5%. Na Academia Brasileira de Ciência, as mulheres são 4%. Apenas um terço dos profissionais da área de ciência e tecnologia são mulheres.

Thaisa Storchi Bergmann tem 61 anos e é uma astrônoma brasileira. Ela é professora no departamento de Astronomia da UFRGS, membra do Comitê Supervisor da AURA (Association of Tuniversities for Research in Astronomuy), membra da Academia Brasileira de Ciências, ganhadora do prêmio da UNESCO para mulheres na ciência (em 2015) e, em 2004, estava no grupo de 12 pesquisadores brasileiros mais citados em publicações internacionais, segundo a revista Veja. Thaisa acredita que a ausência das mulheres nas áreas de ciência e tecnologia é cultural: “Eu fico pensando sobre os pontos de estrangulamento, os momentos de estrangulamento, na minha época de jovens tinha uma divisão de que as meninas se davam melhor nas áreas das humanas e os meninos nas de exatas as áreas científicas. Eu acho que dá para falar que uma parte importante é preconceito e outra parte é cultural, as próprias famílias e a própria mídia vendem imagens de que as mulheres que são reconhecidas e são festejadas, que são famosas, são as apresentadoras de TV, cantoras, atrizes ou modelos, então as meninas nascem com esses estereótipos. Isso não pode ser uma coisa de dentro da criança, é uma coisa muito cultural, a cultura nossa em deusa essas profissões e isso prejudica a dedicação das meninas para as áreas científicas.”

Ela fala sobre as barreiras fictícias que atrapalham as mulheres: “É isso que eu noto, que ainda existe uma diferença, então não dá pra gente descansar, temos que fazer ação afirmativa, por menos que essas ações adiantem, adianta um pouco. Existem dezenas de barreiras fictícias e sociais que impedem o desenvolvimento das mulheres nessas carreiras. Um componente importante é que a mulher quer ter filhos, esse obstáculo é muito maior para a mulher do que para o homem; 70% das mulheres se sente mais responsável que o pai pela criança, isso não é normal. Então eu acredito que falta igualdade entre homens e mulheres com relação ao cuidado dos filhos e a responsabilidade por eles, deveria ter mais creches e instituições. A responsabilidade que a sociedade atribui à mãe é muito injusta com as mulheres.”

 

Thaisa Storchi Bergmann (Reprodução/UFGRS)

A Thaisa tem três filhos e sempre fez de tudo para conciliar a maternidade com a sua carreira. Ela conta um causo que aconteceu com ela, em que ela teria que escolher entre amamentar seu filho e ter a chance de fazer uma observação no maior telescópio do mundo: “Eu tinha um turno de observação e na época eu estava com um filho de quatro meses e eu queria amamentar até os oito pelo menos, era o maior telescópio do mundo e eu não poderia perder essa oportunidade. Eu precisava levar meu filho comigo e o diretor não me autorizou, pois no dormitório deveríamos zelar pelo silêncio. Eu entendi a posição dele, mas por outro lado eu tenho o direito de amamentar meu filho e também de fazer as minhas observações no maior telescópio do mundo. Então eu bati o pé dizendo que era injusto comigo eu não poder observar, não desisti. Eles acabaram arrumando uma casa antiga que tinha lá para eu ficar, acabaram dando uma solução.”

Por fim, Thaisa fala um pouco sobre a vida da mulher nos congressos: “Se eu estava um pouquinho arrumada, coisa assim, achavam que eu era secretária do congresso, às vezes tu tá tentando debater alguma coisa e tem um homem que não te responde, não olha nos teus olhos, ou te ignora, é chato, já me aconteceu algumas vezes.”

 

Entendendo a dinâmica social

Izabel Solyszko, 31 anos, socióloga, assistente social e professora de Serviço Social, se dedica à estudos referentes à gênero, violência e direitos humanos há cerca de 12 anos.

Ela explica que o gênero é uma construção social e faz parte de todas as sociedades, sendo que cada uma constrói “expectativas e concepções sobre a vida e o comportamento dos integrantes de sua sociedade”. O problema do gênero, segundo ela, não é simplesmente sua existência, e sim “o que a sociedade patriarcal faz com ele”: “Entendo por sociedade patriarcal aquela que considera as mulheres como sujeito de segunda categoria, uma estrutura social que domina e explora as mulheres. Isso quer dizer que o patriarcado não é o direito do pai sobre sua família como muitas pessoas podem pensar, mas uma maneira de estruturar a sociedade tão contundente como a estrutura capitalista e mais antiga que está porque as historiadoras e arqueólogas datam o patriarcado como uma sociedade milenar.”

Izabel conta duas principais hipóteses que podem explicar o surgimento do patriarcado: o surgimento do cristianismo – que criou uma divindade masculina – e a descoberta do papel dos homens na reprodução humana. “O controle da sexualidade feminina e a relegação das mulheres ao papel do cuidado foram os grandes instrumentos desse sistema de opressão”, diz.

“Os estereótipos que se reproduzem hoje são tão somente o resultado da construção de um patriarcado capitalista e racista onde o que aparece como natural (‘mulheres sabem cuidar da casa’; ‘homens dirigem melhor’, etc) é produto e resultado direto de uma construção cotidiana e muito bem elaborada dos corpos e dos comportamentos sociais. Basta observar a expectativa e as ações que se mobilizam frente a chegada de um bebê em uma casa para entender como se vão conformando as noções de ser homem e mulher na nossa sociedade brasileira, por exemplo”, continua a socióloga

Ela caracteriza a discriminação e a violência sofrida pelas mulheres ao ocuparem postos de trabalho tradicionalmente de homens como um castigo social à resistência e subversão dessas mulheres por não seguirem os caminhos pré determinados: “As feministas ensinaram há muito tempo que a violência de gênero contra as mulheres é uma mensagem para todas as mulheres para não saírem da linha da expectativa de gênero esperada para nós. No caso da divisão sexual do trabalho não é diferente. As mulheres ocupam um lugar importantíssimo no capitalismo realizando um trabalho gratuito que é simplesmente o responsável por toda a reprodução da vida: a economia doméstica permite que o mundo funcione com o trabalho explorado e não pago das donas de casa, das mães, das mulheres que não cumprem dupla ou tripla jornada senão uma jornada extensa de trabalho que não tem fim.”

“Quanto vale nosso trabalho? Por que somos ótimas cozinheiras durante toda a vida, mas os grandes chefs são homens? Por que somos donas de todos os salões de beleza dos bairros e cuidamos do cabelo das nossas mães, filhas, amigas e irmãs, mas os grandes cabeleireiros são homens? Por que somos as costureiras do bairro e das roupas da nossa família mas quem são os grandes estilistas da moda? Essa lista é grande. Porque simplesmente no capitalismo patriarcal o trabalho das mulheres é gratuito ou pelo menos 24% menos remunerado que o dos homens”, diz Izabel citando dados do último PNUD (Informe de desenvolvimento humano).

Ela finaliza dizendo que “enquanto homens e mulheres não forem considerados pessoas humanas, enquanto vivermos em sociedades desiguais, hierárquicas e consequentemente, violentas, não haverá igualdade nem salarial, nem liberdade como e com o que trabalhar”.

 

“Mulher é cozinheira, homem é chef

A chef Dayse Paparoto, de 32 anos, foi a campeã da 1ª edição do MasterChef Profissionais do Brasil. Ela escolheu seguir essa profissão quando, ainda adolescente, fez um curso técnico de hotelaria e turismo e, ao estagiar na cozinha de um hotel, se apaixonou pelo ambiente descontraído e dinâmico: “Não é muito certinho, é tipo tranquilo, e eu achei o mais legal, por isso escolhi essa profissão.”

 

A chef Dayse Paparoto (Reprodução/Masterchef)

Ela conta que, diferente do que ocorre na maioria dos lares brasileiros, nos quais a mulher é a responsável pela cozinha e pela alimentação da família, as cozinhas dos grandes restaurantes são um ambiente majoritariamente masculino: “Geralmente é muito pouco mulher na cozinha, bem pouco mesmo. Mulher na cozinha geralmente fica na salada ou sobremesa. Quando você é mulher você não é chef, você é cozinheira, homem é chef. Às vezes o cara nem é chef, mas ele é chef, o pessoal não dá muita credibilidade para a chef mulher. Eu acho que as pessoas glamourizam o homem na cozinha pra trabalho, sabe? ‘Ah, mulher cozinha em casa, tanto faz, o homem não.’ Eu mesma nunca tive nem chefes nem professoras mulheres em toda a minha vida, só homens.”

Na edição do Masterchef que a Dayse participou, ocorreram alguns casos de machismo: em uma das provas o participante Ivo a mandou pegar uma vassoura e varrer o chão. Nessa mesma prova, os participantes Ivo e Dário não escutaram o que ela dizia e depois descobriram que estava correta. Ao relembrar desses casos ela reforça que esse é o ambiente normal da cozinha: “A cozinha é daquele jeito que vocês viram, é daquele jeito.”

 

Seis mil a menos pelo mesmo trabalho

A primeira policial brasileira surgiu apenas há 57 anos, em São Paulo. Uma pesquisa realizada pelo IBGE revela que, ironicamente, as mulheres ocupam a maior parte das vagas universitárias, constituindo assim 55,1% do corpo de alunos do país e, ta exmbém, 58,8% dos universitários que efetivamente concluem o curso.

 

Tabela desenvolvida pelo site Catho (Reprodução)

Apesar de constituírem essa maioria nas universidades, elas ainda recebem menos que os homens com a mesma escolaridade e pelo mesmo carg aso, como é revelado por uma pesquisa feita pelo site de empregos Catho. A pesquisa analisa 12 funções, de estagiários a presidentes, e revela que, em todas elas, o salário do homem é maior que o da mulher. Para o cargo de vice presidente essa diferença é a mais gritante, os homens ganham em média um salário de R$26.048, enquanto as mulheres ganham R$20.000.

 

Do lado de fora da universidade

A divisão de trabalho entre os gêneros atinge absolutamente todas as instâncias da nossa sociedade, desde a engenharia, a ciência até as oficinas, o gerenciamento dos negócios, etc.

Cicera Alexandre Silva nasceu em 1937, em Alagoas. Veio para São Paulo com 25 anos, na esperança de ter aqui uma vida melhor. Hoje ela tem 11 filhos, mora há 54 anos na comunidade Jardim São Remo e se descreve como “o homem e a mulher da casa”. Seu marido não trabalha, pois é muito doente, e dona Cicera cuidou de todos os filhos, arca com as despesas e compra os remédios para seu marido. Em 2000, ela abriu uma quitanda na entrada de sua casa, pois apenas com o valor da aposentadoria não conseguia se sustentar: “Comecei a trabalhar com 8 anos de idade. Meu marido é doente, tadinho; tem remédio caro que eu pego lá no hospital, faz mais de 40 anos que eu sou o homem e a mulher da casa. Como ele não sai de casa para canto nenhum eu sou obrigada a controlar o dinheiro, a comprar, a vender, a falar com os comerciantes e clientes, a ir atrás de todas as coisas mesmo. Eu acho que as mulheres têm mais dificuldades que os homens para passar por essa situação.”

 

Cícera Alexandre Silva em sua quitanda (Mariangela Castro/J.Press)

Thais Costa de Jesus também mora na comunidade Jardim São Remo. Tem 36 anos e trabalha em uma oficina de carro: “Faço de tudo, funilaria, pintura, polimento, higienização. Comecei a trabalhar em oficina há 4 anos, comecei lavando carro e fui aprendendo, quando vi estava fazendo sozinha, não tinha nenhum conhecimento de mecânica, só de lavagem e limpeza.” Ela comenta que todos os seus chefes foram homens e que já sentiu resistência dos seus amigos ou até mesmo de clientes por causa do seu trabalho: “Sempre tem um cliente que é chato, reclama e duvida de tudo que eu faço. Uma vez eu estava desempregada e fui em uma entrevista, o cara ficou ‘meio assim’ por eu ser mulher e não me deu a oportunidade, depois de um tempo ele soube que eu era boa e, quando ele foi me chamar, eu já estava empregada. Conheço algumas mulheres que queriam aprender o trabalho na oficina, mas acham que é muito difícil ou que o marido não ia deixar ir trabalhar devido à quantidade de homens. Os meus amigos mesmo falam que eu sou doida, não deveria trabalhar em oficina porque isso é coisa pra homem, eu falo que não existe mais isso.”

A história da Jamila Sube é um pouco diferente: ela tem 47 anos e é motorista de Uber já há 8 meses — começou a trabalhar com isso depois de passar dois anos desempregada. Ela conta que passa por várias situações de medo por ser mulher: “Já agorinha mesmo passei por uma, 3 caras ali pedindo, olhei, achei que não era muito o perfil das pessoas que pedem, daí eu vi que eles iam para Guarulhos, em um lugar super perigoso, acabei cancelando a corrida. Passamos por isso direto, tiveram vezes também que já entraram contando histórias, eram 3 rapazes novos falando sobre os assaltos que tinham feito no dia anterior e que não sabiam para onde iam. Eu mesma não trabalho à noite, é muito perigoso.”

 

Jamile Sube trabalhando no Uber (Mariangela Castro/J.Press)

Jamila conta também sobre o machismo dentro da profissão e a resistência que alguns clientes têm com seu trabalho: “Nunca falam nada explicitamente, mas a gente percebe né? Têm muitos machistas ainda, eles querem estar no meu lugar, eles querem dirigir o carro, ficam falando: ‘ah, vai para aquela pista’, ‘ah, segura aqui’, é assim… A gente percebe a resistência, a gente sabe, principalmente da parte masculina, isso acontece por causa do machismo, muitos deles acham que só eles podem, que as mulheres tem que ficar lavando roupa e louça, como no passado. Essa é a principal dificuldade da mulher motorista de Uber, querem que você corra, falam para você ‘dirigir como um homem’… Mas eu não posso me deixar abater, manter a segurança das pessoas é o mais importante.”

 

Do pioneirismo feminino ao “trabalho de homem”

Ironicamente, existem muitas profissões consideradas hoje como “profissões de homem” que tiveram mulheres como pioneiras. A programação, por exemplo, é uma área majoritariamente masculina, as mulheres constituem uma parcela menor que 25% e a programação foi, na realidade, “fundada” por uma mulher.

Ada Lovelace, primeira pessoa a criar um programa de computador (Pintada por Alfred Edward Chalon, 1840)

Ada Lovelace foi matemática, escritora e também a primeira pessoa do mundo a criar um programa de computador. Ela era filha de uma matemática e um poeta, descrevia a si mesma como uma cientista poética. Começou a trabalhar com computação quando tinha 17 anos e, em 1843, publicou um artigo com suas próprias anotações.

Isso também aconteceu na medicina, por exemplo, as mulheres foram as primeiras médicas da humanidade. Elas trabalhavam como curandeiras, como parteiras, no Egito e na Grécia antiga eram médicas especializadas, na Idade Média as chamadas “bruxas” nada mais eram do que mulheres praticantes de medicina. Apesar desse pioneirismo, a medicina é hoje uma profissão dominada pelos homens e excluiu a participação das mulheres durante séculos.

 

Ações feitas para melhorar a situação

Carolina Brito é professora do departamento de física da UFRGS, ela é coordenadora do projeto “Meninas na Ciência”, o qual se dedica a estudos de gêneros e estereótipos e também incentiva a entrada (e permanência) das mulheres nas áreas de ciência e tecnologia. “Sabemos é que a graduação da física tem 30% de meninas, o problema não tá aí, o problema é que ao longo do tempo elas vão caindo, por exemplo, no mestrado e doutorado são 20%, professoras universitárias 15%, topo de carreira 5%, na academia brasileira de ciência somos 4%”.

Ela fala sobre estereótipos e explica porque acontece o que chama de “efeito tesoura”: “O estereótipo que existe desde idades muito jovens, as meninas não se enxergam em espaços, elas acham que não é para elas. Agora, o porquê de elas irem caindo, temos uma teoria chamada ‘teoria do beliscão’, tu recebe um beliscão um dia, tudo bem, outro dia tudo bem, só que tu vai cansando… Na universidade a cultura é super machista, ano passado fizemos uma campanha ‘Esse é o Meu Professor’, adquirimos 200 frases machistas que os professores falavam, em 48 horas; frases do tipo: ‘mulher só vem pra universidade para arranjar marido’, então tudo isso faz com que as meninas na universidade vão se cansando.”

 

Carolina Brito apresentando o projeto “Meninas na Ciência” em “Encontro Ismart com Educadores” (Reprodução/Ismart.org)

Carolina explica que existe um viés de seleção que beneficia os homens e faz com que as mulheres não consigam avançar na carreira, “existe uma espécie de teto de vidro, obstáculos invisíveis”. Ela rebate o mito de que “as mulheres não querem investir na carreira” contando de um estudo com 200.000 pessoas que trabalham em empresas privadas da Europa. Ele mostra que, no início de carreira, as mulheres possuem uma ambição maior que os homens; entretanto, ao longo do tempo elas vão sendo minadas e essa ambição diminui, o que ela defende por “teoria do beliscão”.  

A professora conta que, quando estava no terceiro semestre da graduação de física, um professor ficou surpreso com o fato de ela ter passado direto em física e cálculo 1 e 2; entretanto, essa não foi a razão pela qual ela trabalha com gênero nos dias de hoje. Carolina diz que a razão que a levou a

se dedicar a esse trabalho não é pessoal, e sim numérica: “Eu olho as estatísticas e elas são assustadoras, pra tu ter uma ideia o efeito tesoura é universal em todas as carreiras, mesmo a enfermagem que tem só professora e aluna mulher, no CNPq só tem homem. Essas coisas me fazem chocar.” Ela acredita que o principal problema para as mulheres não é a abertura de portas, e sim manter as portas abertas: “Para tu manter a porta aberta tem que fazer bem mais que os homens, tem sempre que provar que não está lá porque deu para o chefe, e sim porque é competente.”

Logo do Meninas na Ciência (Reprodução)

O projeto “Meninas na Ciência” surgiu a partir de um edital lançado pelo governo em 2013, com a finalidade de promover ações efetivas que atraiam meninas para as áreas de ciência e tecnologia. O projeto se baseia em dois fatores: apenas 2,2% da população brasileira se dedica à área de ciência e tecnologia, sendo que as meninas constituem apenas um terço dessa porcentagem; e o “efeito tesoura”, que faz com que o projeto pretenda, além de atraí-las, mantê-las na carreira.

Para realizar esse objetivo, elas realizam oficinas que colocam em prática temas como a sustentabilidade, as mudanças climáticas, a física, as questões de gênero, etc. Nesses espaços também debatem estereótipos. Outra ação importante do projeto é o “Lugar de Mulher”, uma série de vídeos de 5 minutos nos quais elas entrevistam diversas mulheres, desde as que já possuem carreira estabelecida até as que ainda estão no ensino médio; elas se preocupam também em entrevistar mulheres negras e trans: “Tentamos abranger ao máximo para mostrar que o lugar de mulher é, de fato, onde ela quiser; produzir conhecimento é um dos pilares do projeto”. O “Meninas na Ciência” realiza diversos estudos, sobre o perfil dos pesquisadores da Academia brasileira de Ciências por exemplo, “Esse é o Meu Professor” e “O Mapa do Medo” são alguns exemplos de campanhas realizadas pelo projeto.

Carolina fala sobre a definição dos estereótipos de gênero, que ocorre entre os cinco e sete anos de idade: “Temos uma teoria do porquê isso acontece tão cedo, é só pensar, como são as princesas da Disney? São bonitas, não tem amigas e possuem como objetivo de vida ser feliz com o príncipe encantado. Ao digitar ‘jogos de laboratório para meninas’, no Google, o primeiro que aparece é um jogo no qual o cientista homem fez uma sujeira e objetivo da mulher é limpar. A criança está rodeada por todos os lados. Aos seis anos ela já perdeu a autoestima.”

Por fim, Carolina conclui dizendo que “as mulheres foram responsáveis por grandes descobertas que estão presentes no nosso cotidiano e, o fato da autoria dessas descobertas não chegarem na gente é um reflexo do preconceito.”

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