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O Excêntrico Lar dos Artistas: conheça o Hotel Chelsea através de cinco canções 

De Bob Dylan à Phoebe Bridgers, o icônico edifício nova-iorquino inspira e abriga artistas há mais de um século, servindo como um farol de criatividade na cidade que nunca dorme
Por Davi Madorra (davimadorra@usp.br)

O Chelsea parecia uma casa de bonecas de Além da Imaginação, com uma centena de quartos, sendo cada um deles um pequeno universo. Eu vagava pelos corredores tentando encontrar seus espíritos, mortos ou vivos”.

– Patti Smith em Só Garotos (Companhia das Letras, 2010)

Imagine só: você acorda em quarto de hotel durante os anos 60, desce as escadas, e lá está um pálido Andy Warhol, com grosseiros óculos de grau, batendo fotografias de alguma socialite por ele apadrinhada. Mais a frente, Janis Joplin entra em um elevador e Jimi Hendrix aperta o botão do terceiro andar. Ali ocorria uma festa, Bob Dylan usava uma camiseta de gola alta, e Leonard Cohen se declarava para três mulheres ao mesmo tempo. Patti Smith e Robert Mapplethorpe entravam em êxtase ao descobrirem que o poeta Dylan Thomas dormiu no quarto ao lado e, há alguns anos, vomitou no exato sofá em que sentavam. Alguns viciados em heroína vão fazer um show de noite – eles tem uma banda chamada The Velvet Underground

Imaginou? Bem, essa descrição, que mais parece o sonho de um adolescente roqueiro, também pode corresponder ao que seria um dia normal no Hotel Chelsea, o gigantesco prédio nova-iorquino que, durante grande parte do século 20, foi lar e inspiração para os inúmeros artistas que tentavam a vida na ilha de Manhattan. De Mark Twain a Jack Kerouac, de Chet Baker a Iggy Pop, todos carregam um pouco do local. Em tempos mais recentes, Uma Thurman e Ethan Hawke não só lá viveram, como gravaram o filme Chelsea Walls (2001). De lá para cá, o Hotel fechou diversas vezes, quartos foram reformados, gerentes foram substituídos, mas a importância do patrimônio e suas icônicas histórias permanecem firmes e fortes. Certas coisas, claro, se perderam com o tempo. Algumas, só quem as viveu sabe. E outras resistem e sobrevivem através da arte, gravadas como canções. Aqui vão algumas músicas para conhecer melhor o icônico edifício.

Fachada do Hotel Chelsea
Fachada do Chelsea 
[Imagem: Reprodução/Wikimedia Commons]

Chelsea Girls (1967) – Nico

“Aqui está o Papa, querido Ondine / Rona o tratou tão mal / Ela queria outra cena / Ela queria ser um ser humano”

Apenas seis meses depois de gravar o icônico álbum The Velvet Underground & Nico (1967), a artista alemã estava de volta aos estúdios, mas, desta vez, sozinha. Abandonando as guitarras distorcidas e a bateria sem bumbo de seus ex-companheiros de banda, Nico estava pronta para produzir seu primeiro álbum solo, Chelsea Girl (1967), que, recheado de arranjos folclóricos e de vocais lancinantes, é praticamente um olho mágico para a alma da cantora — e falar da alma de Nico sem falar do Hotel Chelsea parece ser uma tarefa difícil, especialmente ao ouvirmos a canção que dá nome ao disco. 

Inspirada no longa-metragem de Andy Warhol com o mesmo título, a faixa Chelsea Girls parte de um olhar intimista sobre o icônico edifício erguido na vigésima terceira rua de Manhattan e seus excêntricos personagens. Citando os nomes reais de modelos, atores e demais artistas que habitavam o hotel, Nico perpassa pelas diversas histórias que até então se mantinham escondidas entre as suítes do prédio. Aqui, ela canta sobre os bastidores do filme e sobre as drag queens que o estrelam, expõe os episódios de sadomasoquismo que ocorriam no quarto 115 e comenta sobre as guerras de ego e o abuso de drogas cometido por muitos ali. Acima de tudo, Nico fala na canção sobre aqueles que não se encaixavam, sobre todos que lutavam para sobreviver de sua arte. Sobre seus amigos e sobre outras mulheres que, assim como ela, eram orgulhosamente e para sempre, “garotas do Chelsea”.

Chelsea Morning (1969) – Joni Mitchell

Acordei, era uma manhã de Chelsea, e a primeira coisa que ouvi / Foi uma canção do lado de fora de minha janela, e o trânsito escreveu a letra”

Em meio aos barulhos dissonantes e ao trânsito caótico que compõem o coração novaiorquino, Joni Mitchell mostra que é possível encontrar paz. Inquilina do hotel durante o auge dos anos 60, a cantora canadense narra, em Chelsea Morning, uma manhã típica de quem acorda nos arredores do prédio. Arte por todos os lados, pingentes de cristal, um arco-íris refletido na parede e, como diz a canção, “uma amostra de sol a cada segundo”. Rodeada pelas torradas com leite servidas no café da manhã e pelos pombos que enchiam as avenidas urbanas, Mitchell canta sobre o início de um dia cheio de esperanças, acompanhada de um instrumental alegre, que complementa com maestria o espírito inocente e eufórico da canção — como se tudo fosse possível nas redondezas do hotel. 

A música, presente no álbum Clouds (1969), foi um dos primeiros grandes sucessos da compositora que, na época, estava apenas no início de sua longa carreira. Durante a década de 90, em uma entrevista ao jornal Los Angeles Times, Mitchell chegou a comentar sobre a canção e afirmar que não era uma de suas favoritas, mas que carregava certo carinho por ela e pela época em geral: “Foi um tempo muito jovem e gostoso… antes de eu assinar um contrato com uma gravadora (…) Para mim, a maioria dessas primeiras canções parecem obras de uma pessoa ingênua”. 

Chelsea Hotel #2 (1974) – Leonard Cohen 

“Nós estávamos correndo atrás do dinheiro e da carne / E aquilo era chamado de amor”

Certa vez Bob Dylan disse que as canções de Leonard Cohen mais parecem orações e, claro, o tema religioso realmente permeia quase toda a obra do compositor. Cohen canta sobre o momento que Abraão quase sacrificou seu filho a mando de Deus, em Story of Isaac, e comenta, com vocais dolentes, diversas passagens do velho testamento bíblico, na icônica Hallelujah. Dedica praticamente todas as faixas de seu último álbum lançado em vida, You Want It Darker (2016), para tratar sobre sua relação com a religião judaica e com a figura do Divino como um todo. Mas se em muitas de suas obras Cohen se utiliza de elementos sacros para falar sobre o que sente, em Chelsea Hotel #2 Ele parece fazer exatamente o contrário, abrindo-se à profanidade para falar de amor. E a canção não poderia começar de outra maneira: “Eu lembro bem de você no Hotel Chelsea / Você falava com tanta coragem e doçura / Me pagando um boquete na cama desarrumada”.

Aqui, o compositor folk conta, de maneira crua e saudosista, sobre o breve relacionamento que teve com Janis Joplin, na época em que ambos moravam no hotel e pouco antes da cantora falecer, em 1970, vítima de uma overdose. A música está presente no álbum New Skin For The Old Ceremony (1974) e é a única do disco inteiro que consiste apenas de voz e violão, sem qualquer outro instrumento. Nela, Cohen canta, embriagado pelo luto, sobre o adeus que não pôde dar e sobre nunca ter ouvido um “eu preciso de você” sair dos lábios de Joplin. Em meio a altos e baixos, a canção também fala sobre o que significava ser uma estrela do rock no período e trata de temáticas que vão desde a busca por dinheiro, até a procura por sexo e amor — como se as três coisas, às vezes, se entrelaçassem em uma só, e pudessem ser encontradas somente através da arte. “Bem, não importa / Nós somos feios, mas nós temos a música”. Amém.

Sara (1976) – Bob Dylan

“Eu ainda posso ouvir os sons daqueles sinos metodistas / Eu tinha encontrado a cura e eu passei por isso”

Sara, diferente das músicas anteriores, não se passa exatamente no Hotel Chelsea e muito menos é uma homenagem ao local. Bob Dylan, na verdade, canta aqui uma canção apaixonada para sua esposa e dedica apenas uma estrofe da letra para falar sobre o prédio nova-iorquino, na qual relembra os momentos em que compunha as canções de seu álbum Blonde On Blonde (1965): “Ficando por dias no Hotel Chelsea / Escrevendo ‘Sad-Eyed Lady of the Lowlands’ para você”. E apesar de sucinta, essa breve menção também parece ser suficiente para tornar Sara uma das canções mais lembradas pelo público quando o assunto é o Hotel.

           A questão é que ao falar do Chelsea, falamos, também, de seus fantasmas: de pessoas que lá viveram e, de certa forma, ainda habitam seus corredores em memória. Por isso, ouvir Dylan retornar, quase dez anos depois, à suíte em que compôs uma de suas grandes canções, é tão significativo. É como um espírito que volta dos mortos e nos relembra, através de sua arte, que muito daquilo que consumimos dessa “geração Chelsea”, carrega consigo — mesmo que de maneira indireta — um pouco do icônico edifício. E vale a pena se questionar: Será que os renomados trabalhos de Dylan na época seriam os mesmos não fosse o hotel? Até que ponto as experiências ali adquiridas afetaram a obra dos artistas que lá residiam? Sara, para além de uma bela canção de amor, também é um lembrete de que músicas não surgem do nada, mas, na verdade, são escritas em lugares e levam muitos desses lugares consigo. 

Chelsea (2017) – Phoebe Bridgers

E por gerações, eles vão nos romantizar / Nos tornar mais ou muito menos do que éramos / Antes do Chelsea e do chão / Nos erguerão diante das massas / Como dois alto-falantes para os pobres / Enquanto não havia revolução alguma / Nada que nós tenhamos lutado por

Aqui, temos um belo salto temporal. Falamos do disco Ghosts (2017), lançado por Phoebe Bridges em uma época em que o Chelsea já havia, mais do que nunca, transcendido sua posição de simples hotel para se tornar um símbolo. Uma espécie de monumento da contracultura, que carrega, em todos os seus 12 andares, as dramáticas histórias de seus mais notáveis inquilinos. E é exatamente sobre uma destas chocantes histórias que Phoebe se debruça para escrever sua canção: o fatídico dia em que Sid Vicious assassinou sua namorada, Nancy Spungen, no quarto de número 100 do hotel, em 1978. Se equilibrando numa linha tênue entre a morbidez e a beleza, Phoebe parece encarnar o corpo de Nancy e cantar como se estivesse ali, vivendo tudo aquilo — sentindo em si mesma o golpe que não levou, do amante que não tinha. E em meio aos acordes abertos de um violão de aço, ouvimos sobre as dores de sua morte e sobre os abusos em sua vida:Estamos ambos muito doentes, nossos músculos estão desgastados / É como se tivéssemos cem anos / Saiba que não estarei mais aqui / Porque eu me apaixonei”.

Não se limitando, porém, a somente narrar os fatos, a compositora também parece escancarar o lado sujo daquela relação, tentando romper com a visão romantizada atribuída ao casal, que com o passar dos anos, tornou-se queridinho da cultura pop. E ao fazer isso, Phoebe também questiona, de certa forma, toda a estética do Rock ‘n’ Roll na época. Aqui, é como se o espírito revolucionário do gênero se esvaziasse perante a realidade de seus mártires. A canção de Phoebe se situa em um mundo em que artistas não usam drogas para serem transgressores, mas simplesmente porque são viciados em drogas. Em que rockstars não cometem atos agressivos por revolta, mas simplesmente porque são mentalmente instáveis. Chelsea é uma música que rompe com os símbolos que criamos e mais do que isso, mostra que por trás desses símbolos existem humanos. E humanos fazem coisas terríveis. 

*Imagem de capa: Domínio Público / Wikimedia Commons 

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