Hugo Nogueira
Na década de 40, o cinema norte-americano produziu um gênero inédito, marcado pela modernidade, pela força da realidade urbana e pela ambivalência da natureza humana. O film noir foi uma estética cinematográfica caracterizada pela indistinção entre o bem e o mal, pela crítica feroz ao establishment e pela desilusão quanto à bondade humana. Naturalmente, a eterna guerra entre os sexos também adquiriria conotações neo-hobbesianas no film noir: homens e mulheres revelam-se perfeitamente talhados para se destruírem mutuamente em sagas sanguinolentas de pura ambição e vilania. Por todos estes motivos, o film noir foi a vitrine de uma América profundamente perturbada.
Em larga medida, a estética noir, que fez do suspense sua matéria prima principal, manifesta um caráter insuspeitadamente musical e algumas melodias tornaram-se elementos paradigmáticos de inúmeras obras do gênero. Os temas de erotismo e de degradação sexual permeiam as letras da maioria das canções nem sempre de forma implícita. Tais músicas celebram a experiência erótica esvaziada de culpa e exaltam a livre sensualidade física dispensando todas as demais complexidades do amor. Ainda assim, a despeito da sugestão subliminar de promiscuidade nas canções do film noir, não há nelas traços de nenhuma vulgaridade barata posto que, em inúmeras obras, elas foram interpretadas pelas maiores divas cinematográficas de Hollywood. Na década de 40 e de 50, dando voz às sensuais melodias do film noir mediante as damas fatais (as célebres femmes fatales do cinema negro), a cinematografia estadunidense marcou uma fronteira definitiva entre o erotismo estético e a mera pornografia.
No film noir, a mulher sexualmente emancipada converte-se numa fonte de problemas terríveis para o homem. A guerra entre os sexos é desnudada com certo sarcasmo impessoal pelas femmes fatales nos seus números musicais. É o caso Jacques Press em Alma Torturada (This Gun for Hire de Frank Tuttle, 1942) interpretada pela loura acetinada Veronica Lake.
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Nesta canção, a glamurosa estrela, numa performance que envolve vários truques mágicos de desaparecimento de objetos, aconselha àqueles que já enxergaram a luz do amor nos olhos de uma mulher a ficarem atentos, pois, de uma hora para a outra, tudo pode desaparecer: “that’s love…”
No gênero noir, os ambientes exóticos do Terceiro Mundo podiam se transformar em cenários tão expressivos quanto os becos escuros das grandes metrópoles norte-americanas. Em Macau (Macao, de Josef von Sternberg, 1952), Jane Russel apresentou para uma impassível platéia chinesa o número You Kill Me de Jule Styne e Leo Robin descrevendo quase explicitamente o clímax sexual da paixão carnal em versos como “você me nocauteia, você me deixa louca, você me dá arrepios, você me mata e me mantém tão viva”.
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Lauren Bacall sugere um erotismo mais subliminar na encenação de How Little We Know de Johnny Mercer e Hoagy Carmichel (o qual acompanha a atriz ao piano) em Uma Aventura na Martinica (To Have or Have Not, de Howard Hawks, 1944), descrevendo a paixão como algo que “talvez seja mesmo deste jeito, talvez dure penas um dia: nós sabemos tão pouco…”.
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Os filmes caracteristicamente noir estrelados por Rita Hayworth eram, em sua maioria, thrillers e dramas tropicais. À obscuridade noir, foi adicionado o tempero latino com resultados bastante variáveis. Deitada sensualmente no convés de um iate sob a luz do luar, Hayworth evoca uma fragilidade transcendente na canção Please Don’t Kiss Me de Allan Roberts e Doris Fisher em A Dama de Shangai (The Lady from Shangai, de Orson Welles, 1948).
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Seguindo a tradição do film noir, esta fragilidade irá se revelar extremamente ambígua. Hayworth volta aos trópicos com mais duas performances musicais no rotineiro Uma Viúva em Trinidad (Affair in Trinidad, de Vincent Sherman, 1952). O número The Trinidad Lady, composto por Lester Lee e Bob Russel parece involuntariamente cômico, mas a canção que descreve uma mulher a qual faz o coração dos homens disparar quando com ela adentram num quarto é perfeitamente compreensível quando esta mulher se trata da própria Rita Hayworth. Neste mesmo filme, aliás, Rita encenou I’ve Been Kissed Before de um modo exuberante, narrando a vasta experiência da protagonista em assuntos amorosos. Foi, no entanto, ao encarnar a personagem-título de Gilda (Gilda, de Charles Vidor, 1946), uma mulher surpreendentemente disposta a trair seu marido para enciumar o amante eventual de ambos (tanto dela quanto do marido), que Rita Hayworth alcançou a imortalidade cinematográfica. Seus dois números musicais neste filme pervertido e brilhante converteram-se em momentos iconográficos da Sétima Arte. Se, em Amado Mio, também de Doris Fisher e Allan Roberts, remanesce a vaga insinuação de um convite para um encontro sensual, nada de vago subsiste no número Put the Blame on Mame, cujos versos descrevem uma mulher que arrasta tudo e todos sob o signo de seu irresistível apelo sexual enquanto Hayworth performava um dos mais célebres strip-teases cinematográficos.
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As canções sensuais trouxeram um contraponto essencial à dureza dos dramas de ambição e sordidez e tornaram mais palatáveis os brutais assassinatos a sangue frio do gênero noir. Na sensualidade da melodia das femmes fatales, o film noir encontrou uma parte integral de sua própria essência.