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Como o PL das Fake News pode transformar a sua internet

O debate sobre o Projeto de Lei e a regulamentação das Big Techs representa um marco no combate à desinformação

Por Diego Facundini (diegofacundini@usp.br) e Gabriel Alves (gabriel.carvalhoreis@usp.br)

Durante o último mês, muito se falou sobre o Projeto de Lei nº2630/2020. Conhecido como “PL das Fake News”, ele propõe a criação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, e institui uma série de responsabilidades para as plataformas digitais.

De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o projeto propõe diversos mecanismos para a identificação e prevenção da circulação de notícias falsas, obrigando as redes sociais a adotarem medidas relacionadas a isso. Além de desenvolver mecanismos, elas deverão fornecer informações claras sobre o funcionamento do seu algoritmo e de seus mecanismos de recomendação.

Sen. Alessandro Vieira no plenário do Senado Federal em junho de 2019 [Imagem: Roque de Sá/Agência Senado]

Propostas do Projeto de Lei das Fake News

Se transformado em lei, a proposta do Projeto faz com que as empresas sejam responsáveis por notificar as autoridades em caso de identificação de atividades que configurem crimes – como disseminação de notícias falsas, discurso de ódio, incitação a violência, entre outros – e tomem as medidas cabíveis, como remoção de publicações, suspensão de usuários, colaboração com investigações judiciais e medidas que possibilitem aos usuários denunciarem publicações.

Sobre os usuários, a PL exigiria a identificação ao se criar uma conta – para se evitar perfis falsos e anônimos – além de fazer com que as plataformas mantenham registro por no mínimo três meses de atividades e mensagens privadas do usuário para uso judicial em caso de denúncia.

A PL propõe a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que seria uma entidade autônoma responsável pela fiscalização das plataformas e pela instauração de processos administrativos e sanções em caso de descumprimento da lei. 

Além do cumprimento imediato de decisões judiciais, também é previsto que, ao menos uma vez ao ano, as empresas responsáveis pelas redes sociais publiquem um relatório que analise possíveis riscos em seus algoritmos que possam facilitar a propagação de conteúdo criminoso.

Fica determinado que as punições cabíveis às empresas no caso de descumprimento da lei variem entre advertência e aplicação de multa de no máximo R$ 50 milhões, até a suspensão completa das atividades da plataforma no país. Aqueles que promoverem, produzirem, e/ou financiarem a divulgação em massa de notícias falsas podem pegar de um a três anos de prisão além do pagamento de multa. 

O projeto de lei também propõe a remuneração de conteúdo jornalístico circulado nas redes. A negociação de valores e maneiras que a remuneração seria aplicada ficará à cargo das empresas e dos veículos de comunicação a serem remunerados. Tal remuneração não trará nenhuma espécie de cobrança ao usuário final.

Tipos de regulação das redes em outros países

Em busca de amenizar os impactos da circulação de informações falsas nas redes sociais, diversos países vêm formulando suas próprias propostas de regulação e proteção do ambiente online, e o Brasil – que foi pioneiro no mundo na criação de normas específicas para a internet através do Marco Civil da Internet – não ficou para trás.

“Nós estamos vendo uma combinação de modelos de regulação. No Brasil, nós começamos com o ‘modelo de não responsabilização’ proposto pelo Marco Civil da Internet, para depois começar a vir um modelo de transparência que é o que em partes esse PL propõe” comentou Vitor Blotta, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e professor do Núcleo de Estudos de Violência (NEV/USP). Quanto aos outros países, ele adiciona: “Esse modelo  também é usado na Alemanha, com relatórios de transparência sobre o funcionamento dos algoritmos. O modelo mais recente está ligado à norma europeia dos serviços digitais, cujo propósito é manter o cuidado com o ambiente digital enquanto ambiente compartilhado por todos nós”.

Similar a proposta brasileira, o modelo de regulamentação alemão também estabelece que as redes sociais devem retirar conteúdo ilegal do ar em até sete dias, com o risco de sofrerem sanções e multas. 

Na União Europeia, as plataformas só podem ser responsabilizadas caso estejam cientes dos conteúdos criminosos e não ajam para removê-lo, além de fornecer relatórios de transparência. De maneira a garantir a liberdade de imprensa, as normas europeias incluem exceções para remoção de conteúdo jornalístico, e caso seja feito, as redes devem informar os veículos de mídia previamente explicando os motivos para a remoção do conteúdo.

No Reino Unido e nos Estados Unidos, as empresas não podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros. No Reino Unido, porém, os usuários podem recorrer judicialmente sobre decisões de moderação.

As redes sociais como palco da desinformação

O projeto surgiu dois anos após as Eleições Presidenciais de 2018, marcadas pelo grande uso de mídias sociais, e principalmente, de notícias falsas. Foram registradas 346 fake news diferentes somente durante o período eleitoral, que juntas somaram milhões de compartilhamentos.

Disseminadas principalmente através de disparos em massa em aplicativos de mensagens como Whatsapp e Telegram, grande parte da desinformação espalhada tinha temas como “fraude nas urnas” e outros tipos de manipulação do pleito, “ideologia de gênero” e outras pautas morais como “escola sem partido”, criminalidade e corrupção, e principalmente informações relacionadas ao atentado contra a vida do então candidato Jair Bolsonaro, a grande maioria girando em torno de tópicos que despertam medo ou apreensão no eleitor.

Vídeo com mais de 900 mil visualizações espalha desinformação sobre “ideologia de gênero” no Facebook [Imagem: Reprodução/Facebook]

Segundo Matheus Machado, psicólogo pela Universidade de São Paulo e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano, essa sensação de ameaça causada pelas notícias falsas faz com que elas se tornem ainda mais compartilháveis. “É a ameaça a um lugar social, ao seu grupo ou, em última instância, a você mesmo. Qualquer ameaça a esse movimento de massa provoca reações de muita agressividade e de fácil adesão, o que faz com que se aja no movimento de manada sem muita reflexão”.

Durante os quatro anos seguintes, as fake news se consolidaram como parte do cotidiano brasileiro, e com a pandemia de Covid-19, veio também uma epidemia de desinformação. Durante a crise sanitária, circularam nas redes sociais teorias conspiratórias sobre o vírus, vídeos defendendo o uso de remédios ineficazes, e inúmeras publicações desencorajando a vacinação e o uso de máscaras – de autoria, inclusive, de figuras importantes do governo brasileiro.

Em transmissão ao vivo no Facebook em 2020, Bolsonaro exibe uma caixa de hidroxicloroquina, defendendo o “tratamento precoce” contra a Covid, que já havia sido provado ser ineficaz [Imagem: Reprodução/Facebook]

Publicação na plataforma TikTok manipula trechos de vídeos para defender o uso de hidroxicloroquina no combate à Covid [Imagem: Reprodução/TikTok]

Esses vídeos e publicações circularam nas redes sem restrições, só sendo removidos através de processos judiciais. Em plataformas que permitem a monetização de conteúdo através de propagandas, muitas publicações receberam permissão para serem monetizadas, gerando lucro tanto para as empresas quanto para os autores do conteúdo enganoso.

“Em 2020 e 2021 a gente teve um movimento muito forte no país de médicos fora da do circuito acadêmico, que por vários motivos, decidem propagar essas notícias e acabaram atraindo atenção e seguidores. Isso nos leva de volta pra lógica dos cliques do algoritmo: quanto mais cliques, mais visibilidade, mais propaganda e mais clientes”, pontuou o psicólogo Matheus.

Nesse período, a esmagadora maioria das notícias falsas era veiculada através de redes sociais e aplicativos de mensagens, como o Whatsapp e o Facebook. O algoritmo responsável por gerir a recomendação de conteúdo para os usuários consequentemente “cria” grupos de indivíduos que compartilham das mesmas crenças e interesses, o que faz com que esses grupos se fechem em torno de tais crenças, criando as chamadas “bolhas digitais”, constantemente alimentadas por conteúdos e perfis recomendados pelo algoritmo.

O psicólogo ainda adiciona: “Existe um conceito interessante trazido por Freud do ‘narcisismo das pequenas diferenças’, essa ideia que os grupos vão se formando por uma relação de similaridade de preferências e identificações, e o senso crítico pode se perder no meio deles. Esse tipo de desinformação não é propagado em grandes veículos de comunicação, ele funciona muito através do boca a boca, de grupos de WhatsApp, meios de comunicação muito nichados”.

Convívio com a desinformação

Julia Zacchi, estudante da Universidade de São Paulo, relatou o convívio com a desinformação nos meios digitais, e a maneira com que a desinformação se espalha: “É como se fosse uma cadeia, um boato vai corroborando em função do outro. Para que a fake news de que ‘o Lula vai fechar as igrejas’ colar, por exemplo, você teve muito trabalho de desinformação antes sobre partidos de esquerda, todo um trabalho para inventar que essas pessoas, ‘odeiam à Deus’, que essas pessoas ‘adoram o aborto’ e etc. Não é do nada, você tem uma construção muito bem feita.” 

Ela comenta que isso é algo que o ambiente digital traz muito forte. Em grupos fechados, membros da família não têm vergonha de espalhar desinformação, visto que não há contra-argumentação presente: “Chega um ponto onde esse senso de comunidade criado em torno da desinformação culmina em tragédias como a gente viu no começo do ano com os ataques terroristas em Brasília.”

No início de 2023, as redes sociais foram novamente peça fundamental na circulação de desinformação e no planejamento de crimes. Desde o fim das eleições do ano anterior, na qual o então presidente Jair Bolsonaro foi derrotado, seus apoiadores vinham se reunindo em manifestações antidemocráticas na frente de quartéis, exigindo que o pleito fosse anulado. Tais manifestações culminaram nos atos terroristas de 8 de janeiro, onde bolsonaristas organizados através do Facebook e grupos de Telegram depredaram os edifícios da Praça dos Três Poderes numa tentativa de iniciar um golpe de estado.

Publicações que convocavam manifestantes para atos antidemocráticos circulavam nas redes desde o fim das eleições, em outubro do ano anterior. Observadores nacionais e perfis relevantes já alertavam para o risco que essas publicações traziam. Depois do ocorrido em 8 de janeiro, o apoio ao projeto de regulamentação aumentou entre o público geral.

Mensagem compartilhada no Telegram convoca manifestantes para “Tomada de Brasília” [Imagem: Reprodução/Telegram]

Posição das Big Techs sobre o PL 2630

As grandes empresas de tecnologia – como Google, Telegram e Meta -, conhecidas como Big Techs, têm grande parte de seu faturamento através de publicidades que circulam nas plataformas: segundo relatório financeiro da Alphabet, empresa que gerencia a Google, só no último trimestre de 2021, a Google faturou 6,1 bilhões de dólares somente com propagandas. Sabendo do alcance que as notícias falsas têm nas redes e de que parte desse conteúdo acaba sendo monetizado e impulsionado automaticamente por meio dos critérios individuais de cada plataforma, nota-se o lucro obtido com a desinformação.

Quando o PL das Fake News voltou a entrar em pauta principalmente após os atos golpistas de 8 de janeiro, o tema rapidamente virou tema de debate nas redes sociais, o que desencadeou reações das grandes empresas de tecnologia. O Google disponibilizou em sua página inicial um artigo que afirmava que “[…] o PL das Fake News pode piorar sua internet”, afirmando que o projeto era inconsistente e abria brechas para inconstitucionalidades, e o Telegram encaminhou aos seus usuários uma mensagem em tom alarmista, afirmando que o mesmo dava poder de censura ao governo e que “democracia está sob ataque no Brasil”.

Link disponibilizado pelo Google afirma que o PL os obrigaria a monetizar conteúdo falso, causando prejuízos para o usuário [Imagem: Reprodução/Telegram]

Após denúncias na internet sobre as manifestações das empresas, o Ministro da Justiça, Flávio Dino, acionou a Secretaria Nacional do Consumidor para apurar a possibilidade de prática abusiva das empresas. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, determinou que o Telegram tirasse a mensagem do ar, caso contrário, o aplicativo pagaria multa e teria suas atividades suspensas por três dias.

O Telegram é uma rede social que já tem um longo histórico com fake news no Brasil. Muito usado durante a pandemia para espalhar desinformação, a plataforma virou refúgio para grupos extremistas se organizarem, pois opera sob uma lógica de “liberdade de expressão irrestrita”.

Mensagem enviada pelo perfil oficial do Telegram para seus usuários dissemina informações falsas sobre o PL das Fake News [Imagem: Reprodução/Telegram]

No começo do ano, após os repetidos atentados contra escolas infantis, a Polícia Federal descobriu uma ligação entre os autores dos ataques e grupos neonazistas presentes na plataformas que incentivavam mais crimes, além de fornecerem tutoriais de assassinato e montagem de explosivos. A  PF solicitou ao Telegram que enviasse os dados dos membros e administradores dos grupos, mas não foi atendida. Após a recusa da entrega dos dados, a Justiça determinou a suspensão do aplicativo no país por 72h, além da aplicação de multa.

Ainda no caso dos atentados às escolas, o Ministério da Justiça publicou uma portaria que obrigou as redes sociais a removerem todo conteúdo que fizesse apologia aos atentados e/ou aos assassinos. Alguns dias antes, a advogada que representa o Twitter no Brasil afirmou em reunião com o Governo Federal que compartilhar as fotos com os rostos dos assassinos das crianças não configurava apologia ao crime, e não violava os termos de uso da plataforma. 

Termos de Uso e suas implicações legais

Segundo o Professor Vitor Blotta, como os termos de uso das redes sociais não são negociáveis, o contrato pode ser visto como um contrato de adesão, onde o consumidor se configura como a parte juridicamente inferior a ser protegida pelo Direito.

“O PL das Fake News cria pelo menos um modelo mínimo de moderação no qual as pessoas têm o direito de resposta e o poder contestar decisões. Com isso você também cria uma espécie de esfera pré-judicial que permite a pessoa entender, por exemplo, a questão da remoção de conteúdo e não precisar entrar direto na justiça”, acrescentou o professor.

Em 2023, o Brasil atingiu a marca de 131,5 milhões de usuários ativos nas redes sociais, tornando-se o terceiro maior consumidor no mundo. O uso de ferramentas de comunicação em massa como as plataformas digitais se tornou extensão fundamental do espaço de debate público, e é inegável sua importância no exercício de direitos fundamentais como o direito à informação e o direito de livre expressão de ideias.

No dia 2 de maio, o relator do projeto na Câmara – o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) – pediu que a pauta fosse retirada da discussão, mesmo após a votação do mesmo ter sido aprovada em regime de urgência. Segundo o deputado, essa aprovação levantou muitas propostas de emendas à lei, o que fez com que ele optasse por estender a discussão quanto à formulação do PL e adiasse a votação. Ainda não há uma nova data para a votação da proposta de lei.

Dep. Orlando Silva no Senado Federal, em abril de 2019 [Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

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