Jornalismo Júnior

Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Casa das Caldeiras: cultura, lazer e preservação de memórias que São Paulo escondeu

Espaço das antigas indústrias da família Matarazzo se perpetua e preserva lembranças frágeis de São Paulo ao unir história, entretenimento e uma cervejaria com pratos apetitosos
Por João Victor Vilasbôas (joaovilasboas.jvvp@usp.br)

Um grande terreno no bairro da Água Branca rodeado por prédios imponentes, shoppings, grandes avenidas e o estádio de futebol de um dos maiores times do país — o Palmeiras. Em meio à modernidade da arquitetura do dia a dia paulistano, um prédio pequeno destoa do restante e revela memórias e histórias por muito tempo ignoradas pelos cidadãos. Essa é a Casa das Caldeiras, que a Jornalismo Júnior visitou.

Um dos únicos prédios remanescentes do enorme complexo industrial de Francisco Matarazzo no século 20, a Casa das Caldeiras recupera não só seu vasto passado, como se torna um espaço de incentivo à cultura com opções de lazer para os mais diversos gostos e públicos.

Entrada da Casa das Caldeiras, com vista para as chaminés
Na entrada da Casa das Caldeiras,  é possível observar a locomotiva Filomena e parte de duas das três chaminés da fábrica. Elas têm mais de 30 metros de altura. [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Nasce uma descoberta fascinante

Quem passa pela movimentada Avenida Francisco Matarazzo, na altura do estádio Allianz Parque, e vê um terreno com uma placa de obras da prefeitura pode não compreender a dimensão da construção que está por trás. Logo na entrada, porém, ao descer escadas que conduzem a uma área subterrânea, o tamanho do local e sua aparência antiga impressionam.

Casa das Caldeiras
A Casa das Caldeiras convive com os modernos prédios da Água Branca — a persistência das memórias de um passado quase apagado de São Paulo [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Construída originalmente nos anos 1920, a Casa das Caldeiras foi erguida para gerar energia para as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM), e, com a falência do império fabril da influente família da capital paulistana nas décadas de 1970 e 80, foi abandonada.

Renascimento Cultural

Segundo Catarina Schiesari, arquiteta e funcionária do local, com a iniciativa dos Matarazzo de demolir os prédios do complexo industrial, o poder público, por meio  do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), realizou um tombamento emergencial para impedir a derrubada dos últimos imóveis — a Casa das Caldeiras e a vizinha Casa do Eletricista. Impossibilitados de fazer intervenções que desrespeitassem as regras de preservação do patrimônio histórico, os Matarazzo abandonaram o espaço, que foi a leilão por dívidas. 

Placa indicativa do tombamento da Casa das Caldeiras
Uma placa ao lado de uma das portas, no térreo, fala sobre o tombamento do imóvel, um patrimônio histórico industrial da cidade [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Adquirido pela incorporadora Ricci e Associados Engenharia e Comércio, o imóvel passou a década de 1990 fechado para restauração. Durante esse período, o edifício foi utilizado pelo projeto Arte Cidade, que promoveu intervenções artísticas e culturais em prédios subutilizados ao longo das linhas férreas da capital. Concluída a reforma em 1999, a Casa das Caldeiras passou a ser um espaço para eventos culturais, corporativos, sociais ou privados.

Linha ferroviária
No início do século 20, a ferrovia anexa transportava produtos para o porto de Santos e trazia matérias-primas para as IRFM. Hoje, as linhas férreas 7-Rubi e 8-Diamante do trem, passam ao lado da Casa [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Fundou-se, então, em 2005, a Associação Cultural Casa das Caldeiras, para, conforme o site da instituição, promover a defesa de bens e direitos sociais relativos ao patrimônio cultural e realizar variados eventos, valorizando o espaço e sua memória material e imaterial. Catarina conta que a Casa já recebeu desde casamentos e coquetéis até uma ação da Nike, a abertura de uma temporada do reality show gastronômico Masterchef (2014-presente) e a gravação de cenas da série Cidade Invisível (2021-2023) — dentro das regras do Patrimônio Histórico.

Direto do túnel do tempo

Uma visita guiada pela Casa das Caldeiras é oferecida semanalmente aos visitantes — exceto quando há eventos no espaço interno —, em paralelo ao funcionamento da cervejaria que fica entre o lado externo e uma das entradas.

Casa das Caldeiras
A visita guiada leva o visitante a entender a Casa das Caldeiras para além da indústria: propõe reflexões sobre a importância dela e dos prédios demolidos para as pessoas que lá trabalhavam [Imagem: João Victor Vilasbôas]

A visita em grupo, comandada por dois colaboradores da Casa, Jussara Bracco e Plínio Meireles, é muito proveitosa e rica em informações sobre a história do lugar. Cada espaço é visitado — do vagão da locomotiva Filomena, na entrada, aos túneis que conectam as três chaminés, no andar inferior. E a narração sobre a expansão, a falência e a ressignificação do espaço ganha contornos de comédia dramática com os trocadilhos e a atuação da dupla — de carisma e sintonia afinados.

O percurso, desde a entrada para a Avenida Francisco Matarazzo até a cervejaria no andar térreo, dura cerca de uma hora e é proveitoso, seja para conhecer o espaço e sua história, seja para se emocionar e refletir com as interpretações de Jussara e Plínio na condução do passeio.

Caldeira
Uma das imponentes caldeiras da Casa – a que está no meio do prédio. Atrás, é possível ver parte da caldeira mais conservada, com tijolos ao redor. Toda a estrutura metálica laranja das caldeiras é tombada e está no prédio desde meados da década de 1950 [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Entranhas de uma obra centenária

Após passar por toda a parte superior do complexo, é no térreo que se encontra um dos espaços mais fascinantes da fábrica: o túnel que conecta as bases das chaminés. Lá se pode ver de perto um dos projetos realizados pela Casa: o Térreo Ateliê, que promove instalações artísticas em meio aos túneis que outrora eram o local de trabalho dos operários das caldeiras.

Chaminé central
Na chaminé central, vê-se a abertura no topo e a luz ao adentrar o espaço escuro [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Na ocasião da visita da Jornalismo Júnior, ocorreu a ocupação Fantasmáquinas, concebida pelo artista Marcelo Salum. Segundo ele, a instalação remete aos supostos fantasmas das entranhas da Casa que saem para fora das paredes, transpassados por entre os túneis.

Marcelo, que já havia realizado duas ocupações em 2022 e frequentado algumas mostras desde 2010, diz que sempre viu a Casa das Caldeiras como um lugar instigante. Sobre a instalação, ele conta: “Resolvi ouvir mais o espaço, para ter uma experiência sensorial com ele. O fantasma vem de algo desconhecido que, por outro lado, te atrai. Já a máquina vem da ideia de um acoplamento de engrenagens que gerenciam o mundo, indo além da ideia motora”.

A primeira instalação, De volta ao Mito da Caverna, que faz referência à alegoria do filósofo grego Platão, foi inspirada em pensamentos do escritor português José Saramago. “Na condição contemporânea imersa das redes sociais, Saramago pensa que retornamos à caverna pois só lidamos com espectros: eu publico o que quero que seja a minha imagem e o outro faz o mesmo. Nos relacionamos apenas com as imagens e não alcançamos o real. Por isso o jogo de espelhos precários”, comenta, em referência à distorção das imagens que as sombras promoviam na gruta da história platônica.

Ao longo dos túneis, pôde-se ver ainda uma fantamáquina que dialoga com a luz por meio de projeções, criadas por lanternas, da sombra de uma luva pendurada no túnel — em referência às utilizadas pelos operários. Além dessa, havia várias composições representando tripas e banha de porco, colocadas de forma a parecer que saíam das entranhas das paredes, “como se estivéssemos pondo as vísceras da fábrica para fora”.

*Imagens: João Victor Vilasbôas

Das entranhas da Casa para fora

Antes do Térreo Ateliê, a Casa já contava com outras ocupações diversas. Segundo Catarina, a casa era aberta a artistas que ocupavam o espaço com suas obras por cerca de três a seis meses. 

A gente sempre tem esse movimento circular de relacionamento, dessa rede que criamos, e fortalece a potência da casa

– Catarina Schiesari

Segundo ela, grande parte das ocupações acontecem pela influência que os artistas presentes na Casa exercem sobre outros. Um dos objetivos das instalações é aproximar o público do espaço, de modo a despertar sensibilidade. 

Janelas no andar superior da casa
Parte das janelas do andar superior da Casa, onde estão as caldeiras, com vista para as plantas do lado de fora [Imagem: João Victor Vilasbôas]

Além do Térreo Ateliê e das visitas guiadas, a Associação Cultural ainda promove o projeto social Manual em Família, que leva a “energia produzida pela Casa para fora do espaço”, como diz Catarina. A equipe de facilitadores, que conta com arquitetos, pedagogos, psicólogos e atores, trabalha com famílias em territórios de alta vulnerabilidade social no estado de São Paulo, como já ocorreu em Franca, Registro e Franco da Rocha. “Nesses trabalhos com as famílias e os profissionais do município, fazemos uma rede para fortalecer a relação das pessoas com o território e traçar estratégias de políticas públicas no local.”

Um espaço, diferentes formas de ocupação

Além da visita e dos eventos privados que ocorrem no espaço interno da Casa das Caldeiras, há outras experiências que o visitante pode ter no local. No térreo, está a cervejaria Brass Brew, que opera desde 2020. 

Parte interna da cervejaria Brass Brew
Parte interna da cervejaria presente nas instalações da Casa das Caldeiras, que oferece uma variedade de bebidas, com e sem álcool, para o consumidor [Imagem: João Victor Vilasbôas]

A Brass Brew comercializa bebidas e mantém uma churrascaria, que vende pratos como a saborosa linguiça artesanal (com vinagrete, chimichurri e pão de levain) e o suculento bife de vacio, experimentados pela Jornalismo Júnior. Os pratos, apesar de terem um preço relativamente caro — à depender do quanto o consumidor pretende gastar —, são deliciosos e muito bem preparados. O tempo de espera até o pedido estar pronto não é longo e o freguês pode se sentar nas mesas da área externa da Casa e aproveitar o espaço fresco e aconchegante.

Pão, linguiça e antepastos
A linguiça artesanal com pão de levain e acompanhamentos é um dos pratos deliciosos oferecidos na churrascaria da Brass Brew [Imagem: João Victor Vilasbôas]

O espaço da cervejaria é bem aproveitado, dentro das normas de conservação do Patrimônio Histórico, com uma lojinha com camisetas e outros produtos personalizados da Brass Brew.

Ainda segundo Catarina, as festas promovidas pela cervejaria aos finais de semana trazem novos públicos para o local e ajudam a difundir o ideal de fazer daquele um espaço de promoção da cultura, dos artistas que o ocupam e da memória histórica da Casa das Caldeiras. Assim, com o trabalho de sua reduzida e bem coordenada equipe, a Casa se perpetua como uma testemunha das transformações ao seu redor.

A gente sempre retorna a esse lugar de tentar interagir com o público mais diverso possível. Existe aqui um lugar de troca, de mescla de públicos, convergência e convivência. É um diálogo constante em equipe para chegar às exposições com o melhor espaço possível.

– Catarina Schiesari

*Imagem de capa: João Victor Vilasbôas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima