Por João Victor Vilasbôas (joaovilasboas.jvvp@usp.br)
Um grande terreno no bairro da Água Branca rodeado por prédios imponentes, shoppings, grandes avenidas e o estádio de futebol de um dos maiores times do país — o Palmeiras. Em meio à modernidade da arquitetura do dia a dia paulistano, um prédio pequeno destoa do restante e revela memórias e histórias por muito tempo ignoradas pelos cidadãos. Essa é a Casa das Caldeiras, que a Jornalismo Júnior visitou.
Um dos únicos prédios remanescentes do enorme complexo industrial de Francisco Matarazzo no século 20, a Casa das Caldeiras recupera não só seu vasto passado, como se torna um espaço de incentivo à cultura com opções de lazer para os mais diversos gostos e públicos.
Nasce uma descoberta fascinante
Quem passa pela movimentada Avenida Francisco Matarazzo, na altura do estádio Allianz Parque, e vê um terreno com uma placa de obras da prefeitura pode não compreender a dimensão da construção que está por trás. Logo na entrada, porém, ao descer escadas que conduzem a uma área subterrânea, o tamanho do local e sua aparência antiga impressionam.
Construída originalmente nos anos 1920, a Casa das Caldeiras foi erguida para gerar energia para as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM), e, com a falência do império fabril da influente família da capital paulistana nas décadas de 1970 e 80, foi abandonada.
Renascimento Cultural
Segundo Catarina Schiesari, arquiteta e funcionária do local, com a iniciativa dos Matarazzo de demolir os prédios do complexo industrial, o poder público, por meio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), realizou um tombamento emergencial para impedir a derrubada dos últimos imóveis — a Casa das Caldeiras e a vizinha Casa do Eletricista. Impossibilitados de fazer intervenções que desrespeitassem as regras de preservação do patrimônio histórico, os Matarazzo abandonaram o espaço, que foi a leilão por dívidas.
Adquirido pela incorporadora Ricci e Associados Engenharia e Comércio, o imóvel passou a década de 1990 fechado para restauração. Durante esse período, o edifício foi utilizado pelo projeto Arte Cidade, que promoveu intervenções artísticas e culturais em prédios subutilizados ao longo das linhas férreas da capital. Concluída a reforma em 1999, a Casa das Caldeiras passou a ser um espaço para eventos culturais, corporativos, sociais ou privados.
Fundou-se, então, em 2005, a Associação Cultural Casa das Caldeiras, para, conforme o site da instituição, promover a defesa de bens e direitos sociais relativos ao patrimônio cultural e realizar variados eventos, valorizando o espaço e sua memória material e imaterial. Catarina conta que a Casa já recebeu desde casamentos e coquetéis até uma ação da Nike, a abertura de uma temporada do reality show gastronômico Masterchef (2014-presente) e a gravação de cenas da série Cidade Invisível (2021-2023) — dentro das regras do Patrimônio Histórico.
Direto do túnel do tempo
Uma visita guiada pela Casa das Caldeiras é oferecida semanalmente aos visitantes — exceto quando há eventos no espaço interno —, em paralelo ao funcionamento da cervejaria que fica entre o lado externo e uma das entradas.
A visita em grupo, comandada por dois colaboradores da Casa, Jussara Bracco e Plínio Meireles, é muito proveitosa e rica em informações sobre a história do lugar. Cada espaço é visitado — do vagão da locomotiva Filomena, na entrada, aos túneis que conectam as três chaminés, no andar inferior. E a narração sobre a expansão, a falência e a ressignificação do espaço ganha contornos de comédia dramática com os trocadilhos e a atuação da dupla — de carisma e sintonia afinados.
O percurso, desde a entrada para a Avenida Francisco Matarazzo até a cervejaria no andar térreo, dura cerca de uma hora e é proveitoso, seja para conhecer o espaço e sua história, seja para se emocionar e refletir com as interpretações de Jussara e Plínio na condução do passeio.
Entranhas de uma obra centenária
Após passar por toda a parte superior do complexo, é no térreo que se encontra um dos espaços mais fascinantes da fábrica: o túnel que conecta as bases das chaminés. Lá se pode ver de perto um dos projetos realizados pela Casa: o Térreo Ateliê, que promove instalações artísticas em meio aos túneis que outrora eram o local de trabalho dos operários das caldeiras.
Na ocasião da visita da Jornalismo Júnior, ocorreu a ocupação Fantasmáquinas, concebida pelo artista Marcelo Salum. Segundo ele, a instalação remete aos supostos fantasmas das entranhas da Casa que saem para fora das paredes, transpassados por entre os túneis.
Marcelo, que já havia realizado duas ocupações em 2022 e frequentado algumas mostras desde 2010, diz que sempre viu a Casa das Caldeiras como um lugar instigante. Sobre a instalação, ele conta: “Resolvi ouvir mais o espaço, para ter uma experiência sensorial com ele. O fantasma vem de algo desconhecido que, por outro lado, te atrai. Já a máquina vem da ideia de um acoplamento de engrenagens que gerenciam o mundo, indo além da ideia motora”.
A primeira instalação, De volta ao Mito da Caverna, que faz referência à alegoria do filósofo grego Platão, foi inspirada em pensamentos do escritor português José Saramago. “Na condição contemporânea imersa das redes sociais, Saramago pensa que retornamos à caverna pois só lidamos com espectros: eu publico o que quero que seja a minha imagem e o outro faz o mesmo. Nos relacionamos apenas com as imagens e não alcançamos o real. Por isso o jogo de espelhos precários”, comenta, em referência à distorção das imagens que as sombras promoviam na gruta da história platônica.
Ao longo dos túneis, pôde-se ver ainda uma fantamáquina que dialoga com a luz por meio de projeções, criadas por lanternas, da sombra de uma luva pendurada no túnel — em referência às utilizadas pelos operários. Além dessa, havia várias composições representando tripas e banha de porco, colocadas de forma a parecer que saíam das entranhas das paredes, “como se estivéssemos pondo as vísceras da fábrica para fora”.
*Imagens: João Victor Vilasbôas
Das entranhas da Casa para fora
Antes do Térreo Ateliê, a Casa já contava com outras ocupações diversas. Segundo Catarina, a casa era aberta a artistas que ocupavam o espaço com suas obras por cerca de três a seis meses.
“A gente sempre tem esse movimento circular de relacionamento, dessa rede que criamos, e fortalece a potência da casa”
– Catarina Schiesari
Segundo ela, grande parte das ocupações acontecem pela influência que os artistas presentes na Casa exercem sobre outros. Um dos objetivos das instalações é aproximar o público do espaço, de modo a despertar sensibilidade.
Além do Térreo Ateliê e das visitas guiadas, a Associação Cultural ainda promove o projeto social Manual em Família, que leva a “energia produzida pela Casa para fora do espaço”, como diz Catarina. A equipe de facilitadores, que conta com arquitetos, pedagogos, psicólogos e atores, trabalha com famílias em territórios de alta vulnerabilidade social no estado de São Paulo, como já ocorreu em Franca, Registro e Franco da Rocha. “Nesses trabalhos com as famílias e os profissionais do município, fazemos uma rede para fortalecer a relação das pessoas com o território e traçar estratégias de políticas públicas no local.”
Um espaço, diferentes formas de ocupação
Além da visita e dos eventos privados que ocorrem no espaço interno da Casa das Caldeiras, há outras experiências que o visitante pode ter no local. No térreo, está a cervejaria Brass Brew, que opera desde 2020.
A Brass Brew comercializa bebidas e mantém uma churrascaria, que vende pratos como a saborosa linguiça artesanal (com vinagrete, chimichurri e pão de levain) e o suculento bife de vacio, experimentados pela Jornalismo Júnior. Os pratos, apesar de terem um preço relativamente caro — à depender do quanto o consumidor pretende gastar —, são deliciosos e muito bem preparados. O tempo de espera até o pedido estar pronto não é longo e o freguês pode se sentar nas mesas da área externa da Casa e aproveitar o espaço fresco e aconchegante.
O espaço da cervejaria é bem aproveitado, dentro das normas de conservação do Patrimônio Histórico, com uma lojinha com camisetas e outros produtos personalizados da Brass Brew.
Ainda segundo Catarina, as festas promovidas pela cervejaria aos finais de semana trazem novos públicos para o local e ajudam a difundir o ideal de fazer daquele um espaço de promoção da cultura, dos artistas que o ocupam e da memória histórica da Casa das Caldeiras. Assim, com o trabalho de sua reduzida e bem coordenada equipe, a Casa se perpetua como uma testemunha das transformações ao seu redor.
“A gente sempre retorna a esse lugar de tentar interagir com o público mais diverso possível. Existe aqui um lugar de troca, de mescla de públicos, convergência e convivência. É um diálogo constante em equipe para chegar às exposições com o melhor espaço possível.”
– Catarina Schiesari
*Imagem de capa: João Victor Vilasbôas