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Cringetopia: o que o termo “cringe” diz sobre nossa sociedade?

Mesmo com todos os avanços sociais, o humor cringe evidencia a intolerância a culturas diferentes na contemporaneidade

Sabe quando você está tentando dormir e, de repente, seu cérebro te faz lembrar de algo vergonhoso que fez quando tinha 15 anos de idade? Ou quando está rolando o Tik Tok e surge alguém dançando com expressões faciais exageradas? Quando vê uma foto sua de 2010 e sente uma vergonha quase fatal? 

O que é aquele sentimento quando vemos algo vergonhoso? Aquela humilhação alheia que nubla a visão e nos leva a uma espiral de incerteza? Aquela sensação como se a alma pegasse fogo e nos fizesse querer sair do nosso corpo e fugir para outra dimensão? Todos esses eventos podem ser resumidos em uma palavra: cringe.

Para aqueles não familiarizados com a palavra, o significado do termo pode não ser tão claro. De acordo com o dicionário Cambridge, em inglês, a palavra é um verbo que significa “recuar de desgosto, encolher de medo, servilismo ou contrair os músculos involuntariamente (como por frio ou dor)”. A segunda definição mais popular é “quando alguém age ou é tão vergonhoso que faz você se sentir extremamente envergonhado e/ou estranho”. Em português, é um estrangeirismo adjetivo semelhante a vergonha alheia. 

É normalmente uma reação física ou mental a alguma coisa vergonhosa, estranha e humilhante, tão ruim e desconfortável que você não consegue suportar. Como quando você  tem que se encolher ou colocar distância entre você e a dita monstruosidade fechando os olhos, levantando os ombros ou simplesmente desviando o olhar. 

Definição do verbo cringe [Imagem: reprodução/arquivo pessoal]

As duas naturezas de cringe 

No livro Cringeworthy: uma teoria do constrangimento, a editora sênior do The Cut da Revista New York, Melissa Dahl, afirma que o ato de sentir vergonha de si necessariamente envolve a autoconsciência: “Os momentos que nos fazem sentir constrangidos são quando somos arrancados da nossa própria perspectiva, e podemos nos ver pelo ponto de vista de outra pessoa”.

No livro, a autora também faz uma distinção entre outros dois tipos de cringe alheio: de compaixão e de desdenho.

O primeiro envolve uma identificação emocional e empática com a pessoa por quem você sente vergonha alheia. Em entrevista à Jornalismo Júnior, Márcio Silveira, psicólogo graduado na Universidade de Franca (UNIFRAN), esclarece que um dos motivos pela grande popularidade desse fenômeno é realmente a identificação humana. A ação de rir coletivamente dessas situações vergonhosas traz união em volta da fragilidade compartilhada. “Reconhece-se que somos humanos e fazemos coisas erradas às vezes. Rir do absurdo compartilhado, das inseguranças, das pretensões ridículas diminui a solidão”.

Por outro lado, segundo ela, a vergonha de desdenho “é uma forma de garantir que você está pactuado com a grande massa e, portanto, está afastando a possibilidade de estar no alvo da ridicularização. Antes que seja alvo do ataque, eu disparo o ataque. Contudo pode ser também, uma reação vingativa de ataques que sofridos no passado”

O psicólogo entrevistado comenta que “sentimos vergonha porque esse sentimento é um regulador social e moral que nos orienta sobre o quanto estamos ressonantes ou dissonantes com os valores que norteiam a comunidade em que estamos inseridos”. 

Ele também explica que se sentimos vergonha, é sinal que, de alguma forma, podemos estar ferindo os códigos e regramentos em que estamos inseridos. “Em uma perspectiva social e psicológica, a vergonha alheia projeta no outro os mesmos parâmetros que tenho, que quando feridos por ele, provoca em mim sensação de ter cometido o erro”. 

Qual a origem do cringe? 

Apesar de ter ganho popularidade na última década, a palavra cringe, em si, é muito mais antiga e pode ser rastreada aos meados do século V em partes do que são hoje a Inglaterra e o sul da Escócia. 

Segundo o Etymologeek, o parente mais antigo é o termo proto-indo-europeu “grenǵ”, desenvolvido antes do III milênio a.C., e traduzido como virar ou cair. Mais à frente, aproximadamente 750 d.C., a língua proto-germânica transformou-o em algo como “kringana”, de mesmo significado – inclinar ou tombar.

O proto-germânico se desenvolveu nas línguas germânicas modernas, incluindo o inglês antigo. Por volta do século V a XII, existiam duas formas de escrita para o mesmo derivado: “crenġan” e “crenċan”, os quais significavam “curvar-se ou fazê-lo curvar”. 

Apenas no século XVI, com inglês médio “crengen”, o significado do termo, além do literal, ganhou uma linha mais metafórica: curvar-se ou, enrolar-se de medo e constrangimento. Assim se desenvolveu a atual palavra inglesa “cringe”.

O desenvolvimento do termo cringe data desde III milênio a.C

De onde vem? 

Os japoneses têm um ditado: “Os infortúnios dos outros têm gosto de mel”. Os franceses falam de joie maligne, um deleite diabólico com o sofrimento alheio. Os dinamarqueses falam de skadefryd e os holandeses de leedvermaak. Em mandarim xìng‑zāi‑lè‑huò, em russo zloradstvo e em “brasileiresco”, ditados como pimenta no * dos outros é refresco. 

Após várias tentativas de descrever e nomear esse sentimento comum em diversas sociedades, em 1853, surgiu a palavra alemã Schadenfreude, da junção de Schaden, que significa dano, e freude, alegria resumiu o desfrutar malicioso dos infortúnios de outras pessoas. Cunhada por Richared Chenevix Trench, tem significado entre o prazer e desgraça. Entretanto, para Trench,“a mera existência da palavra Schadenfreude é profana e terrível, um registro triste das estranhas maldades que o gênio do homem, tão fértil no mal, inventou”. 

Embora Schadenfreude e cringe não sejam sinônimos, nota-se a semelhança entre seus significados e significantes. Cringe é o melhor termo atualmente para descrever o sentimento de alegria do sofrimento alheio, assim como Schadenfreude foi em alemão no século XIX. 

Richared Chenevix Trench, arcebispo e poeta anglicano [Imagem: reprodução/wikimedia]

Essa ressurgência da palavra se deve principalmente à disputa geracional ocorrida na última década entre a geração Y (os millennials) e a geração Z, atingindo seu pico em 2021.

Segundo o professor de sociologia Francisco Porfírio: “Os jovens da geração Z, nascidos entre 1996 e 2010, começaram a apontar como vergonhosas algumas características comuns da geração Y, nascidos entre 1980 e 1995. Pagar boleto, calça skinny, nostalgia nos filmes da Disney, saudosismo dos anos 90 e usar

Facebook são hábitos vergonhosos associados aos adultos da geração Y”.

Ele também explica que a geração Y se engajou para mostrar o outro lado e apontar o que para eles é considerado vergonha alheia da outra geração – identitarismo, fazer terapia, brigar no Twitter, entre outros. 

No Brasil, esse termo apareceu graças ao estrangeirismo, um processo de empréstimo linguístico e cultural, alavancado pela globalização dos meios de comunicação. Inicialmente, utilizado no Twitter, cringe apareceu no mesmo contexto de disputa geracional como um adjetivo semelhante a vergonha alheia. Após os anos, cringe tornou-se parte do léxico brasileiro, sendo mais comum falar cringe para se referir a algo vergonhoso do que vergonha alheia.

Mas mesmo esse sentimento sendo tão desagradável, se tornou um ícone na cultura pop, ao ponto de compilações de conteúdo cringe com até 30 minutos de duração poderem ser encontradas na internet. Shows dedicados ao humor cringe também dominam as televisões e sites de streaming. Mas por quê? 

Popularidade? 

O fenômeno cringe não nasceu na Internet, mas foi exacerbado pelo mundo, sendo presente desde os bobos da corte na Idade Média, os circos dos horrores na Modernidade e, na atualidade, os vídeos cassetadas do Faustão. 

Conforme a pesquisadora estadunidense Alena Saucke explicita em sua tese de mestrado, “Tão engraçado que dói. Comédia cringe e performances de desconforto”, em uma época de consciência cada vez maior de vigilância constante – por meio de câmeras de telefones, televisão, reality shows, mídia social – a inevitabilidade da observação traz uma autoconsciência de qualquer um que se desvie do ideal, constrói um nicho curioso entre as performances exigidas, assim, se cria uma sensação de fama. 

O psicólogo Marcio Silveira acrescenta:  “A internet favoreceu a socialização, mas ao mesmo tempo criou uma sensação de inconsequência ou impunidade. Se você faz o ataque ao diferente de forma presencial, o risco de contra-ataque com consequências físicas é maior que no universo virtual”. Ele também explica que como o ataque frequentemente é feito a partir de perfis falsos, essa facilidade de atingir o outro em qualquer lugar ou a qualquer momento alimenta as fantasias destrutivas e vingativas dos que não querem ser atingidos pelo coletivo.

“em uma época de consciência cada vez maior de vigilância constante, a inevitabilidade da observação traz uma autoconsciência de qualquer um que se desvie do ideal” – pintura aquarela [Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal] 

Convenciona-se chamar de cultura cringe o abrangente que abriga comunidades como canais no Youtube, subreddits, threads no Twitter e grupos no Facebook dedicados a reunirem-se e compartilhar o conteúdo cringe de outras pessoas a fim de ridicularizá-lo em massa. Assim, percebe-se um movimento contraditório: reconhecemos a necessidade humana de comunidade, enquanto pisamos nela, ao zombar de comunidades diferentes. 

Esses conteúdos cringe normalmente tem como alvo pessoas mais velhas, minorias – mulheres, pretos, LGBQIA+, pessoas fora dos padrões, PcD, neuro divergentes, interesses nichados, como otakus, emos, góticos, furry e/ou pessoas gordas. O termo rejeição social engloba o perfil dos atingidos. 

No cerne da cultura cringe, está o entendimento de que a razão pela qual as pessoas estão rindo de outras que foram cringe é porque elas não estão atribuindo coisas convencionais na sociedade ou não estão alinhadas com formas aceitáveis de expressão.

“Historicamente, tudo o que é diferente causa algum tipo de incômodo. Zombar ou atacar o diferente é uma forma ilusória de o afastar ou de garantir que ele não me atinja ou contamine.” explica o psicólogo. Ademais, ele complementa que, muitas vezes, esse recurso é utilizado em debates políticos contra as minorias, como uma forma de desumanizar e invisibilizar suas causas, reduzi-las a pixels”. 

“O monstro na caixa” – Pintura aquarela [Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal] 

Maria Luiza Monteiro, estudante, conta sua experiência ocorrida quando tinha 15 anos: “No período da pandemia, durante uma ligação com meus amigos no Discord, estávamos todos conversando falando sobre animes, quando comentei que eu não curtia um anime e todos ficaram em silêncio e depois de um tempo começaram a me criticar e me chamar de “cringe” por não seguir o padrão de gosto do pessoal. Ela conta que também aconteceu quando disse que gostava de bandas antigas e com um gênero alternativo do popular atualmente. e conta que, após isso, evitou conversar e debater sobre qualquer assunto evitando expor o que pensava sobre seus gostos.

E agora? 

“Eu era organizador de um servidor grande no Discord e a cada dia entravam mais pessoas na comunidade. Era comum nos depararmos com pessoas agressivas, preconceituosas e desrespeitosas e puníamos com expulsão”, conta Hariel, artista independente paulista. 

Ele conta que foi vítima de diversos ataques no privado e em outros servidores da plataforma, sendo zombado por seu estilo e personalidade logo após ter imposto regras de convivência e não tolerar preconceitos difundidos em alguns grupos. “Como na época a palavra cringe estava ficando em alta, acabei sendo categorizado assim”. 

Nascido no interior de São Paulo, o artista se considera uma pessoa extremamente expressiva e que sempre está presente em reflexões e debates sobre problemas sociais, engajando-se nas lutas antirracistas desde muito cedo. 

“Toda tendência surge de algo que representa ou gera curiosidade na sociedade. Então o surgimento e a explosão deste termo pejorativo nada mais é do que as pessoas encontrando uma palavra que representa todo o ódio guardado ou rejeição a culturas diferentes”, continua Hariel.

Poesia autoral do artista entrevistado [Imagem: Reprodução/Instagram/@gabliqui]

O psicólogo Márcio Silveira reforça a importância da família, principalmente na adolescência, e da sensação de pertencimento a uma comunidade para o bem-estar mental: “A adolescência é o período da existência em que confirmamos nossa identidade, e temos medo de não pertencer a grupos e isso é um terreno fértil para possibilidades de ataques, assédio, cyberbullying e invasão de privacidade”

Muitas vezes esses ataques são a projeção do medo que o adolescente sente de não conseguir ser reconhecido e respeitado. Como explica o psicólogo, “Se o adolescente for alvo desses ataques, sua saúde mental pode ficar severamente afetada, implicando na supressão de seus próprios interesses e sentimentos a fim de ser aceito”

O entrevistado salienta que viver é uma atitude que demanda um quantum de agressividade, o que não é natural é não saber se relacionar com a manifestação da agressividade interna e a externa. A Internet, como ágora contemporânea, abre a possibilidade para abertura dessas expressões e cringe se tornou a expressão da antiga intolerância para com os diferentes

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