Jornalismo Júnior

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Da criação à fraude: as cotas no Brasil

Junto a profissionais da área do direito e educação, analisamos a implementação da Lei 12.711/2012. Uma avaliação sobre sua criação, importância e, especificamente, sobre o fenômeno da fraude – e o que ele nos explica sobre o Brasil

No dia 25 de maio de 2020, George Floyd perdeu sua vida devido à violência policial. 24 horas depois, uma onda de protestos, com epicentro em Minneapolis, estourou por todos os Estados Unidos, reinventando e ressuscitando um movimento que esteve fora do protagonismo internacional durante alguns anos: o Black Lives Matter (do inglês, Vidas Negras Importam), surgido em 2013 após o assassinato de Trayvon Martin, também vítima de um policial. Apesar da pandemia da Covid-19, os protestos se espalharam por mais de duas mil cidades ao longo dos 50 estados norte-americanos, sem contar os 60 países que também apresentaram manifestações se solidarizando com a família de George e reivindicando mudanças não somente na polícia, mas no sistema como um todo. No Brasil, isso não foi diferente. Ocorreram protestos em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, tanto abordando a pauta racial quanto adotando uma postura antifascista. 

Apesar de compartilharmos o racismo estrutural, o abuso das autoridades e uma necessidade urgente de reestruturação das políticas públicas de segurança, as questões raciais brasileiras se apresentam de diferentes formas. Quando focamos nos ambientes acadêmicos do país, surge a necessidade de abrasileirar as discussões do presente e encaixá-las nesse cenário jovem. A juventude que fomentou os movimentos dentro e fora do país – uma jovem de 17 anos que trabalhava na loja em que o assassinato ocorreu foi responsável pelas filmagens; as manifestações tanto no Brasil quanto em outros países foram todas marcadas por meio de redes sociais; as discussões estão ocorrendo no Twitter, Instagram, Facebook e Tik Tok – é a mesma que, aqui, é responsável por um crime recorrente nas instituições públicas de ensino superior: a fraude de cota.

Neste texto, abordaremos inúmeras pautas relacionadas à lei que oficializou as cotas no país, conversando não somente com especialistas atuantes na área do direito e educação, mas também com estudantes que participam de Coletivos Negros. Com isso, tentaremos entender um pouco sobre a criação dessa lei, sua importância e, em especial, sobre o fenômeno da fraude.

Black Lives Matter
Protesto contra a violência policial nos EUA. ]Imagem: Kon Karampelas/Pixabay]

A Criação

Desde o dia 29 de agosto de 2012, a história das universidades brasileiras mudou para sempre. Naquele dia, nascia a Lei 12.711/2012, que oficializava a política de Cotas no Brasil. Essa reservava no mínimo 50% das vagas de federais para estudantes de escola pública, e, dentro dessas, uma porcentagem para pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas e com deficiência. As cotas, mesmo que oficializadas em 2012, já haviam sido implementadas em algumas universidades brasileiras. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), as cotas surgiram em 2003, seguida pela Universidade de Brasília (UnB), nove anos antes da lei ser criada.

Mas, afinal, o que explica ela ter sido criada? Qual era a necessidade dessa política, e o que ela significou para as universidades e, mais do que isso, para a sociedade brasileira? Existem inúmeras explicações. Camila Nascimento, advogada atuante nos direitos das minorias, reitera um ponto jurídico fundamental: “o princípio constitucional da igualdade diz que você tem que tratar desigualmente para trazer a igualdade. Não são todas as pessoas que merecem o mesmo tratamento pois elas vêm de posições diferentes”. Para ela, anos de clamor social resultaram na Lei, com uma tentativa de trazer igualdade para essas populações que foram historicamente prejudicadas. Ou, pelo menos, tentar. Ela também traz a educação como um processo contínuo: “se desde pequeno, a pessoa não tem acesso a um ensino de qualidade, como ela poderá ingressar em uma universidade? E já dizendo estatisticamente: as classes baixas são predominantemente formadas por pessoas da população negra, como essas pessoas poderiam entrar nesses espaços?”.

Ricardo Dias da Costa, professor de turismo e coordenador do LEAFRO (Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) também ressalta o papel dos movimentos negros brasileiros: “além da adoção das cotas permitir e propiciar o ingresso de um segmento da sociedade que sempre foi excluído da possibilidade de estar numa instituição de ensino superior pública e de qualidade, ela resgata parte de um anseio antigo dos movimentos negros”. O que o movimento reivindicava eram as cotas raciais, o que conseguiram em partes. Como esclarecido pelo professor, a lei prevê cotas sociais com recorte étnico, que deixa raça como o terceiro filtro, posterior ao estudo em escola pública e renda. Apesar de não ser o que o movimento queria, diz ele, já era uma vitória. Ainda nessa discussão, o professor ressalta uma questão fundamental: “Os movimentos negros sempre entenderam que o caminho para que o negro possa disputar em pé de igualdade com o branco é a educação, que sempre nos foi negada. Então o que fazemos? Educamos o negro”. Com os movimentos indígenas, não foi diferente.

Como um exemplo de seu sucesso, de acordo com o Censo de Ensino superior do Inep, em 2011, do total de oito milhões de matrículas em cursos de graduação, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, o percentual matriculado subiu para 30%. A Lei, portanto, foi inaugurada no país e permitiu a entrada de milhares de jovens de baixa renda, escola pública e pertencentes a minorias – no sentido social, pois a população negra, que abrange pretos e pardos, e indígenas correspondem a quase 60% da população brasileira – nas universidades públicas. Para muitos, o ingresso representava um marco: esses jovens passaram a ser as primeiras pessoas da família com ensino superior.

Dados do IBGE sobre a população brasileira
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios (PNAD) de 2019, feito pelo IBGE

 A Fraude

Estando inserida na sociedade brasileira, a Lei 12.711 ficou sujeita a todos os problemas, falhas e traços culturais que essa possui. Dentro desse contexto, surgem as primeiras fraudes nas universidades públicas. É importante dizer que essas fraudes se concentram na categoria étnica e especialmente na autodeclaração preta e parda. Isso se deve por alguns motivos. Primeiro, é necessário apresentar histórico escolar ao ingressar em qualquer universidade. Isso anula ou, no mínimo, dificulta tremendamente a fraude, pois o certificado deixa claro de qual instituição escolar é emitido. Segundo, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) emite o RANI, um documento administrativo que comprova a ascendência indígena caso essa seja questionada Terceiro, os alunos com deficiência passam, em algumas instituições, por avaliações médicas, além de possuírem atendimento diferente no vestibular.

Em todos os casos, fica evidente a má conduta, que desencoraja potenciais fraudadores. Contudo, em relação às vagas reservadas a pretos e pardos, não existe nenhum procedimento, documento e, substancialmente, comprovação racial previsto por lei. E é aqui que nasce o problema.

Uma série de questões giram em torno da fraude. A primeira questão que foi abordada com os profissionais é a autodeclaração. Como o vestibulando tem a liberdade de declarar a raça a qual pertence, surgem dúvidas se isso não abriria espaço para a fraude. O professor Otair Fernandes de Oliveira, também associado à UFRRJ, desfaz esse raciocínio: “essa questão da autodeclaração foi muito bem pensada. Ela coloca no sujeito beneficiário da política a responsabilidade e autoconsciência de ele ser o protagonista, dizendo se é preto, pardo etc. Então a autodeclaração não estimula a fraude. O que estimula a fraude é o mau caráter, é a má intenção”. Camila também carrega um ponto de vista similar: “a autodeclaração é, acima de tudo, um critério psicológico. Porque você tem que se conhecer, conhecer a sua história e entender em qual parte você está inserido. A pessoa que frauda as cotas, infelizmente, me parece que vem de um mau-caratismo”. Os profissionais abordam um dos objetivos da Lei: o protagonismo desses grupos minoritários. A autodeclaração não foi pensada para reafirmar a branquitude, mas como uma forma de promover validação e dar poder a esses grupos raciais marginalizados, dando a eles controle sobre sua narrativa e história.

A investigação também é uma questão fundamental. Conversei com algumas assessorias de federais do país e pesquisei em seus sites acadêmicos para entender se existia alguma fiscalização ou atenção especial em relação à fraude. Além dessas, conversei com a assessoria da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e  Universidade de Campinas (Unicamp), instituições não federais, mas bem conceituadas no país.

Esse interesse surgiu depois da criação, no meio desse ano, de uma onda de perfis no Twitter, criados para denunciar fraudes em múltiplas universidades. Os perfis adicionavam fotos do potencial fraudador, sua autodeclaração, e sua posição com e sem o uso das cotas. Entre as universidades que sofreram maior quantidade de denúncias, podemos ressaltar a Federal da Bahia (UFBA), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Federal de Uberlândia (UFU) e a Universidade de Brasília (UnB). O tempo de adesão à instituição por parte de alguns alunos causou choque: os ingressos regressavam a 2015, alguns casos com recebimento de bolsa auxílio. Os perfis foram apagados posteriormente, mas não sem deixar a indignação dos usuários da rede e expor centenas de fraudadores.

Antes e depois de páginas de denúncias de cota
Antes e depois: página do Twitter que denunciava fraudadores no Rio de Janeiro é apagada.

Ao conversar com algumas Universidades, percebe-se que muitas dependiam, até meados desse ano, de denúncias estudantis. A Federal da Bahia, por exemplo, só lançou um Edital em 2019 prevendo a verificação da veracidade da autodeclaração como pessoa negra.  Com a URFJ, ocorreu o mesmo processo, porém no primeiro semestre de 2020. Essa também soltou uma nota de esclarecimento após as denúncias no Twitter. Mesmo sendo a primeira Universidade Federal a aderir ao sistema de cotas, a UnB se pronunciou dizendo que só pode investigar possíveis casos de fraude caso haja uma denúncia formal na ouvidoria, mesmo que, no perfil, houvesse mais de 100 denúncias. A UFU também funciona nessa base, e apesar de possuir uma comissão de averiguação, essa só a utiliza depois da denúncia.

Muitas universidades, ainda que não tivessem tido alunos expostos em redes, seguem a mesma linha de conduta – a USP, por exemplo. Considerada a segunda melhor universidade da América Latina, ainda não dispõe de ações para prevenir o crime, e, como visto acima, denúncias de alunos não são suficientes para garantir o direito aos beneficiários da política. Ela, assim como muitas outras, ainda resiste a um mecanismo utilizado em concurso público e que algumas instituições adotaram, chamadas Comissões de Heteroidentificação.

O que são essas Comissões? O Ministério Público, por meio da Portaria Normativa n º 4, de 6 de abril de 2018, nos termos da Lei 12.990/2014, que reserva 20% das vagas de concurso público para negros, estabeleceu para seus participantes a criação dessas comissões. Formadas pela lei por 5 membros de reputação ilibada – no caso das universidades, por professores, alunos de pós-graduação, técnicos e especialistas – para averiguarem a veracidade da autodeclaração. Esses realizam perguntas e analisam traços fenotípicos do candidato (não adianta, portanto, ter tataravó negra para adentrar na universidade pela cota). “Não é como ela se vê, mas como ela é vista pela sociedade”, Ricardo diz.

Algumas universidades brasileiras, buscando soluções para o problema das fraudes, adotaram esse mecanismo por analogia. Em São Paulo, a Unicamp e Unesp já adotam esse método. Inclusive, em tempos de pandemia, a Universidade de Campinas está buscando realizar essas comissões online. No Rio de Janeiro, a UERJ e a UFRRJ também possuem suas próprias comissões, que foram se aperfeiçoando conforme os anos. Ricardo, que participa da comissão em sua universidade, explica algumas partes do procedimento: “Na Rural, como em muitas universidades, no edital vem claro: quando você for participar da banca, não vá de chapéu, não vá maquiado, não vá de blusa de manga comprida. Mecanismos que com o tempo nós fomos criando”.

Um exemplo que comprova sua eficácia aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De acordo com a Universidade, em 2018, 1336 alunos que se declararam pretos, pardos e indígenas foram chamados para participar da comissão. Após o processo, 43% dos candidatos – ou seja, 574 pessoas – perderam a vaga. Se essa apuração não tivesse ocorrido, quase 50% das vagas daquele ano corresponderiam à fraude. Mesmo assim, perdura a determinação de não estabelecer esse método. Otair Fernandes ressalta um ponto fundamental: “A fraude é um ataque à política e, mais do que isso, um ataque aos beneficiários da política”. A conversa que tive com o Opá Negra, coletivo negro da Escola de Comunicação e Artes da USP, confirma a fala do professor: “em relação ao crime da fraude, mais uma vez somos explorados e nos tiram o que é nosso por direito. O mesmo crime volta a ser repetido justo nesse momento em que estamos tentando nos reerguer, atos desse tipo são inadmissíveis e precisam ser punidos”.

Como solução alternativa a esse problema, a advogada Camila sugeriu uma mudança interessante na composição da certidão de nascimento. “Esse é o primeiro documento que você tem. Ele poderia dizer o que você é: branco, pardo, preto, amarelo, indígena. Estando documentado, é uma forma de dar um pouco mais de concretude nessa política de cotas. Um meio de barrar essa fraude”, diz ela. É uma opção válida porque a chance de mentira na certidão de nascimento, numa sociedade como a brasileira, não traz vantagens. Como Otair mencionou: “Se não tivesse a questão das cotas, a pessoa se assumiria como negra, como preta? Provavelmente não”.

Dito isso, não é viável abordar um tópico como fraude de cota sem abordar o racismo. Sendo o Brasil o último país a abolir a escravidão na América – a cronologia mostra que essa ocorreu há meros 132 anos – e, visto como ela foi feita no país, é improvável defender a ideia de uma nação igualitária, racialmente democrática e livre de preconceitos. Com base na história do povo negro e indígena no país, é só olharmos estatísticas atuais do sistema carcerário, mortes em ações policiais, índices de analfabetismo para perceber: não houve nenhum esforço, conjunto e organizado, para dar justiça a esses povos. A marginalização é geográfica, social e psicológica. E ela, até 2012, era muito clara nas elites acadêmicas brasileiras.

Quem é contra as cotas, então, está se autodeclarando racista? Os profissionais concordaram em partes e divergiram em outras. O advogado Humberto Adami, Presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil,  responde: “Eu acho que não. Não queria fazer uma associação automática, é mais esse slogan de movimento. Às vezes a pessoa não tem informação, pode não ter pensado, o que você tem que fazer é, em princípio, conversar, explicar”.

O advogado cita o exemplo da ex-reitora da UERJ, Nilcéa Freire. A reitora, contra as cotas em primeiro momento, mudou de opinião ao analisar seu corpo docente. De dois mil professores, cerca de 1,5% eram negros. A própria Nilcéa foi responsável pela implementação dessas na Universidade.

Ricardo Dias e Camila Nascimento pensam por outra perspectiva. Ele cita alguns exemplos de falas que são muito comuns para tentar invalidar essas ações afirmativas, como a bandeira da igualdade, levantada por muitos, para justificar suas falas. Se somos todos iguais, por que esses alunos deveriam levar vantagem? Outra citada por ele é: “estão roubando a vaga dos meninos”, como se alunos brancos de classe média e alta tivessem vagas reservadas nas instituições.

Camila pontua que esse negacionismo às cotas vem de uma posição de privilégio. “É não reconhecer que existe desigualdade no país e que, mais do que histórico e estatístico já confirmado, há grupos que foram socialmente preferidos em relação a outros”. Os profissionais mostram que, para cada argumento que os opositores apresentam, existe um contra-argumento forte em defesa da política. Ambos retomam a ideia de que a igualdade só poder ser atingida com tratamento desigual, e denunciam o racismo nas falas daqueles que, mesmo com explicações, recusam a apoiar leis como a 12.711/2012.

Quadrinho sobre desigualdade
Da esquerda pra direita, de cima para baixo temos: Desigualdade, que é o acesso desigual a oportunidades; Igualdade, que é distribuir ferramentas e assistência de forma igual; Equidade, que são ferramentas personalizadas que identificam e abordam desigualdade; e Justiça, que conserta o sistema para que todos tenham acesso igual a tanto ferramentas quanto oportunidades.
[Ilustração: Tony Ruth]

Coletivos: A voz da denúncia

Como dito anteriormente, existem universidades que dependem exclusivamente de denúncias do corpo estudantil para os casos de fraude serem levados adiante. Muitas vezes, não são quaisquer alunos que as denunciam, e não de maneira isolada. Os coletivos negros e indígenas, desde a implementação da Lei 12.711/2012, urgem por medidas concretas de verificação, investigação e punição dos alunos que entraram pelo uso indevido da política.

O Opá Negra, inserido em uma universidade que pouco ouve suas reivindicações – em entrevista com Humberto, o advogado lembra um fato notável: a USP foi a última grande universidade a adotar a política de cotas, em 2017 –, os integrantes precisam buscar por conta própria mecanismos para garantir justiça. Dizem eles: “o nosso coletivo mantém contato com outros grupos negros e nos apoiamos para combater esse tipo de fraude, hoje alguns membros da Opá estão na comissão liderada pela SanFran, Faculdade de Direito da USP, que gerencia os processos jurídicos contra as fraudes da Universidade”.

É visível que, a cada ano de ingresso, os coletivos precisam unir forças para combater o roubo de vagas. “Vemos que outras universidades públicas já começaram a expulsar fraudadores e algumas delas já contam com comissões oficiais e qualificadas para verificar esse crime. Infelizmente a USP fica muito atrás no que tange a essa verificação”, afirmam. O coletivo também deixa claro: a anulação do diploma, independentemente do indivíduo estar no início da graduação, quase formando ou formado, é fundamental caso haja comprovação de fraude.

Em decisão histórica, a Universidade expulsou, em julho de 2020, um estudante por fraudar cotas sociais e raciais. Isso mostra que até a mais conservadora das instituições está evoluindo, contudo, esse é apenas o primeiro passo de uma longa jornada em busca da implementação eficaz e justa da lei.

As iniciativas, por parte de alguns dos perfis de Twitter citados, partiram de coletivos que sentiam essa questão negligenciada. Surgiram discussões por alguns professores que diziam que, apesar desse mecanismo ser muito eficaz na exposição e humilhação dos fraudadores, ele tira o foco de quem realmente deveria ser responsabilizado: as universidades. As denúncias formais, para eles, são mais efetivas do que o chamado exposed de internet.

Camila defende essa posição. Para a profissional, apesar dos estudantes serem carregados de boas intenções, a exposição na internet da vida de terceiros com o intuito de humilhação e exposição não é o caminho correto. Com isso, os responsáveis pela página podem estar incidindo em crimes contra a honra, pois sentindo que sua imagem foi violada, os expostos podem buscar justiça. Ela acredita que os estudantes deveriam direcionar sua energia às ouvidorias das universidades, pois a internet, disse a advogada, “é terra de ninguém”. Do ponto de vista jurídico, portanto, não é o aconselhável.

Há de ser considerado os artifícios que esses estudantes, sejam eles parte de coletivos ou não, dispõem para denunciar a fraude. Em universidades como as que foram expostas, onde as investigações somente ocorrerão se o caso chegar à ouvidoria, eles se tornam escassos. Ricardo fala um pouco sobre isso, mostrando que, nessas circunstâncias, o uso de redes sociais é o caminho que os coletivos possuem no momento. São as ferramentas que eles têm. Como visto agora, esses perfis geraram movimentação nas administrações superiores das universidades para investigar os casos de fraude expostos. Tendo suas exigências categoricamente ignoradas, as redes sociais se mostraram um método eficaz de denúncia. 

Apesar dos esforços precisarem ser mais direcionados a enfrentar a universidade, quando esses se mostram frustrados, a pressão causada pela exposição na internet é uma das únicas saídas. O professor Otair complementa esse pensamento: “Em um país onde a fiscalização é falha, onde a sociedade, as universidades e o próprio Estado não se prepararam de forma devida, essas redes sociais acabam cumprindo um papel fundamental de acompanhamento e vigilância da política pública”.

Integrantes do Coletivo Opá Negra
Foto dos integrantes do Coletivo Opá Negra segurando sua bandeira. 2019. [Imagem: Opá Negra]

E agora?

“O que a experiência dos cotistas ensina? Eles foram verdadeiros heróis”. Essa frase, dita por Humberto Adami, assinala uma questão crucial em qualquer discussão acerca da Lei 12.711/2012. Apesar das falhas em sua implementação, apesar de seus problemas e de carências em alguns aspectos, ela não pode deixar de ser vista como uma revolução. Revolução Silenciosa, como chamada pelo profissional. Ela permitiu com que jovens brilhantes – verdadeiros heróis – tivessem uma oportunidade de formação dada pelo mesmo Estado que os negligenciou e ainda negligencia em muitos aspectos. Um pequeno milagre.  Dentre todas as dificuldades que enfrentaram, hoje esses estudantes fazem parte do meio acadêmico e profissional brasileiro, e vieram para ficar.

Mesmo assim, a luta ainda não acabou. Tendo sido implementada há alguns anos, atualmente estamos formando os primeiros cotistas, e, infelizmente, os primeiros fraudadores. Conclui Otair: “as universidades ficaram limitadas à questão do acesso, sem discutir tanto  uma política institucional da própria universidade em relação às ações afirmativas quanto a permanência efetiva desses alunos”.

Além disso, entrar não significa, necessariamente, permanecer. É necessário a implementação de políticas de acompanhamento a esses alunos, para que dificuldades psicológicas, financeiras, educacionais possam ser endereçadas e resolvidas da melhor forma possível. Com as administrações sendo tomadas por pessoas que não passam pelas dificuldades na pele, essas reivindicações parecem estar em um cenário utópico. “Para falar de mim, tem que ter mim. Para falar de nós, tem que ter nós! Lá dentro do Congresso, das reitorias, para puxar políticas, direcionar, discutir, propor. Senão vai continuar a gente aqui gritando e eles lá em cima, fazendo de conta que não escutam”, afirma Ricardo.

As políticas afirmativas precisam abranger todos os âmbitos da sociedade. Os profissionais entendem a Lei como uma tentativa de reparação de mais de 300 anos de escravidão, e que, apesar de notável, não pode ser a única medida direcionada a essa retratação. Humberto que, como citado anteriormente, é presidente da Comissão que visa esse objetivo, diz que “a luta das cotas está em andamento e precisa ser mantida. É um instrumento importante, e é preciso investir nos estudos da reparação”. Também reitera, como afirma Ricardo, que “muita gente acha que as cotas vão reparar o que aconteceu de 300 e tantos anos. E não vão! As cotas para acesso nas instituições de ensino é um dos mecanismos de políticas públicas de reparação. Mas os mecanismos podem acontecer de diferentes formas em diferentes situações e universos”. Olhando para o contexto histórico e geral, a Lei e sua implementação eficaz se mostram pequenas partes de um projeto maior. “Há que se investir nessa temática, difícil, dura, mas o Brasil precisa se enfrentar para achar no reflexo do espelho, uma cara mais parecida com a sua”, diz Humberto. E, quer a elite universitária brasileira queira ou não, essa cara é preta, é parda, é indígena. E é cotista.

2 comentários em “Da criação à fraude: as cotas no Brasil”

  1. Que matéria sensacional: esclarecedora sobre a politica de cotas, com posições isentas (no que se refere a idoneidade de pontos de vista), realmente abrangente, bem escrita, quase um roteiro de um filme que engrandece que o “assiste”. Obrigado, Sofia, é o que posso dizer.

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